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"Um Pouco só de Goya": A meditação ecfrástica em alguma poesia contemporânea (Parte 2)

Se, por um lado, numa passagem de testemunho geracional que a intimação da mortalidade torna inadiável, se recorda que «a vida é também isso:/ uma fila no espaço, uma fila no tempo/ e que o teu tempo ao meu se seguirá» [55], adverte-se, por outro, «Que as filas só são úteis/ como formas de olhar, maneiras de ordenar/ o nosso espanto, mas que é possível pontos/ paralelos, espelhos e não janelas» [56]. Nenhuma violência normativa, seja ela manifesta ou subterrânea, consegue, a despeito de todas as doxas, suprimir os pontos de fuga. Abalada a acrítica solidez das categorias – entre as quais a da a reconfortante ficção essencialista da preexistência de um género monolítico [57] -, abre-se caminho à expressão da estuante multiplicidade do humano. Uma composição significativamente intitulada «Ode à diferença» condensa, num espirituoso manifesto onde ressoa uma desarmante naiveté infantil, este irrefragável elogio da singularidade. Dela transcrevo os versos iniciais:

Felizmente.
Somos todos diferentes. Temos todos
o nosso espaço próprio de coisinhas
próprias, como narizes e manias,
bocas, sonhos, olhos que vêem céus
em daltonismos próprios. Felizmente.
Se não o mundo era uma bola enorme
de sabão e nós todos lá dentro
a borbulhar, todos iguais em sopro:
pequenas explosões de crateras iguais.
[58]

Arregimentada em fila ou anarquicamente desordenada em «dissonância de novelo», à trajectória vital de cada um é devido «o respeito inteiro e infinito», simplesmente porque «tudo está bem e é bom». Na intenção, é certo que não nos encontramos muito longe do hino à dignidade humana de Sena, embora ele agora deva, porventura, reconduzir-se à natureza mais abertamente sexuada do texto e, portanto, constitua sobretudo legitimação apaixonada do «amor pluriforme e poliglota» [59], na justa formulação de Joaquim-Francisco Coelho:

e nesta noite quente a rasgar junho,
quero dizer-te da fila e do novelo
e das formas de amar todas diversas,
mas feitas de pequenos sons de espanto,
se o justo e o humano aí se abraçam.
[60]

O chiaroscuro que encerra o poema recupera o pretexto ecfrástico do título que, entretanto, a desenvolução poemática tinha dissipado, por meio da evocação pictórica da camisa branca do rebelde mártir de Goya, justaposta agora à imagem vegetalista do bolbo que desponta oferecido pela filha. A isotopia da alternância de morte e fecundidade refracta-se, em consonância com o regime "doméstico" do texto, na esfera dos afectos privados, opondo-se à disciplinada formatação a arte generosa de ajudar a florir:

A vida, minha filha, pode ser
de metáfora outra: uma língua de fogo;
uma camisa branca da cor do pesadelo.
Mas também esse bolbo que me deste,
e que agora floriu, passado um ano.
Porque houve terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos
. [61]

4. Na composição «Os Fuzilados», de António Osório, constante da secção intitulada «Felicidade da pintura» de O Lugar do Amor (1981), acentua-se a esquiva ecfrástica e, em consequência, a escassez do discurso descritivo centrado no referente pictórico. É certo que, como nas Metamorfoses senianas, o texto emparceira com outros de indiscutível cunho ecfrástico [62] – como o «Solilóquio de Greco no enterro do Conde de Orgaz», «Velásquez pintando As Meninas», «Amor de Mondigliani» ou «Amor de Goya» -, mas nele o propósito de emancipação relativamente ao estímulo visual torna–se explícito logo a partir do incipit em modalidade denegativa:

Não apenas os de Goya,
estes que diariamente de olhos vendados
a morte, pela última vez, contemplam.
[63]

A elisão da deixis com função mostrativa, que caracteriza a estrutura remissiva do texto convencionalmente ecfrástico, conjugada com a rasura da descriptio, favorecem a deslocação do olhar emoldurado para a inquirição filosofante desenvolvida para além do quadro. A epígrafe de Maria Ondina Braga, que acompanhava o poema originalmente publicado, em 1979, na revista Colóquio/Letras e então intitulado «Amor dos fuzilados», secundava o alcance generalizante da meditação: «A morte é maior que todas as fraudes e todas as verdades dos homens»[64]
.
Acolhendo o móbil pictórico do fuzilamento como exemplar representação do repulsivo exercício do poder arbitrátio [65], à reflexão de António Osório subjaz um sentido de «humanidade pragmática», expresso numa empatia sensível com os «mendigos da civilização» e os «perseguidos pela impiedade dos homens» [66] que, aliás, constitui um dos veios semânticos nucleares desta «arte mendicante». Detendo-se na prospecção obcecantemente meticulosa das circunstâncias objectivas da execução – a venda nos olhos, o tiro na nuca, as formas de eliminação do cadáver -, o sujeito interroga-se, em seguida, num registo de exasperada execração abjeccionista, sobre a pena a aplicar aos homicidas:

Infâmia de ser, infâmia absoluta de matar.
Que castigo, pronta, pronta e felina justiça
mereceria o fanático homicida, o mandante?
A deslembrança, ser para si um cego,
nada lhe dizer a alma
sequer da casa onde nasceu
como se o sal a tivesse arrasado
e destruído as mais fundas raízes,
um cego que todavia reconhecesse a sua mãe
e perdesse a língua, os lábios, o soluço,
um cego em cujos olhos, lambidos
por moscas impiedosas,
os próprios filhos vomitassem.
[67]


Este anseio vindicativo, que parece alimentar-se de uma sólida confiança teodiceica numa lei retributiva, faz coabitar, como já notou Fernando Pinto do Amaral, as noções de culpa e juízo póstumo, pólos semânticos complementares numa poética que, como esta, presume a crença humanista «[n]um sentido de justiça implícito no mundo» [68]. Em entrevista de 2008, declarava António Osório que «Ao cheiro da morte, aquele fétido odor da morgue, opõe-se tudo o que eu escrevo. Prefiro a ligeireza da luz»69. Mesmo quando essa luz irrompe, como no quadro de Goya, da mais sinistra penumbra, lembrando-nos que é precisamente aí que reside a «felicidade da pintura».

5. O texto epigramático de Jorge Sousa Braga, coligido em A greve dos controladores de voo (1984), integra-se numa série de poemas em prosa – cuja narratividade embrionária os aproxima, não raras vezes, do microconto – que compartilham o cenário do mundus inversus, desregulado pela infracção da ordem natural das coisas – essa «serena angústia do logos perdido», na certeira expressão de Alberto Pimenta [70]. Através da exploração retroactiva do título da colectânea, cada poema-micronto anota o desconcertante impacto fantástico-surrealizante de um súbito caos generalizado. A dessacralização disraptiva da cultura material musealizada, desencadeada pelo inesperado apocalipse, estende-se ao hieratismo mudo da pintura dos grandes mestres. Num registo de corrosiva concisão, assiste-se, nestes apontamentos poéticos situados a meio caminho entre a estética do wit e do nonsense, ao desfile paródico de obras de arte emblemáticas, como a Gioconda – «Resolvido o enigma do sorriso da Gioconda: um dos meninos do Botticelli surpreendeu-a, de noite, com um dedo acariciando o baixo ventre» [71] -, as Demoiselles de Avignon («As demoiselles de Avignon foram surpreendidas numa rusga da polícia, nas imediações do Museu» [72]) ou Os Fuzilamentos, de Goya:

Cansados de estarem sempre na mesma posição, os fuzilados de Goya resolveram inverter os papéis e são agora eles que seguram os fusis.[73]

Porque, em rigor, se concebe uma fantasia reparadora que presentifica plasticamente um quadro inexistente, encontramo-nos perante a modalidade da ekphrasis nocional que assenta na representação de uma obra de arte imaginária [74]. Assim se pacifica, em certa medida, a disputa paragónica: a ficção poética torna possível a emenda – ou, o que é dizer o mesmo, a sabotagem satírica – da pintura (e do mundo), invertendo-a em quiasmo, num evidente propósito de «reavaliação histórica» [75]. O tropo ecfrástico não funciona agora para além do quadro de Goya, mas contra ele. Não sem alguma ironia, os carrascos nele retratados podem bem vir a tornar-se, no capricho poético de Jorge Sousa Braga, as vítimas, numa transparente alegoria dos corsi-ricorsi da História. A implosão da prerrogativa mimética, pela despolarização do olhar em relação à superfície pictórica e pela reconversão da pintura morta em tableau vivant, anula a sujeição heteronómica do verbal ao visual, possibilitando a invenção de um novo museu de imagens, a partir da pulsão transfigurante do olhar poético, assim instaurando uma «comunicação explosiva ou louca com o que o mundo não pode revelar» [76].

Na abertura do belo monólogo dramático intitulado «Caravaggio, um esboço», de Amadeu Baptista, é ao genial pintor italiano que são atribuídas as seguintes palavras: «Eu sei, há uma diferença indizível entre o que ergo/ na luz das minhas telas e a vida» [77]. Também Goya poderia tê-las proferido – ele e os poetas que, com ele, para além dele, ou contra ele, ergueram a luz das suas palavras.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS
1. O conceito de «paragonal energy» é definido por Charles Hill e Marguerite Helmers como «a struggle for dominance over meaning between verbal and visual discourse». Cf. Hill & Helmers, 2004, p. 3.
2. Descrito, de modo penetrante, por Luís Quintais nos seguintes termos: «Sendo uma representação verbal de uma representação visual, dir-se-ia que a ekphrasis trabalha esse hiato entre formas de representação diferenciadas. Celebra a impossibilidade de transporte, mas ironicamente procura uma consistência, afirmando, afinal, o mistério ou a inquietação ou o desassossego dessa impossibilidade». Quintais, 2008, p. 95
3. Heffernan, 2003, p. 7.
4. Acolho a tese da natureza modal que Heffernan reivindica para a ekphrasis e subscrevo, portanto, a justificação avançada pelo autor: «Murray Krieger calls ekphrasis "a classic genre", but this would put it on par with epic and tragedy. Since no formal or syntactic features distinguish the literary representation of visual art from other kinds of literature, and since it can appear within any recognized genre from epic to lyric, it may be more appropriately termed a mode, like pastoral or elegy. But while those two can be largely defined by their subject matter, the subject matter of ekphrasis requires us to define it in terms of representation». Heffernan, 1991, p. 312, nota 5.
5. Como acrescenta Claus Clliver, «Há ainda outra razão porque o Bildgedicht tem atraído atenção crescente: trata-se de um exemplo da antiga rivalidade, no discurso crítico ocidental, entre a descrição e a figuração, o poder da palavra e o poder da imagem, do paragone frequentemente disfarçado por expressões amigáveis como "as Artes Irmãs" e "ut pictura poesis". A discussão ainda é muito viva e envolve reconsiderações sobre a distinção entre média e sistemas de signos, incluindo aí a validade de distinguir entre artes temporais e artes espaciais e de outras oposições binárias, como signos naturais e signos convencionais». Clliver, 2001, p. 354.
6. Recorro às categorias de ekphrasis preconizadas por Laura Sager: attributive, depictive, interpretive e dramatic. Como refere a autora, na «depictive ekphrasis images are discussed, described, or reflected on more extensively in the text or scene, and several details or aspects of images are named and in the film shown in close-ups, zooms, and with slow camera movement. (…) This type of ekphrasis comes closest to the widespread definition of ekphrasis as "verbal representation of visual representation" (…). Sager, 2008, p. 47-48. A ekphrasis interpretativa implica uma «verbal reflection on the image, or a visual-verbal dramatization of it in a mise-en-scène tableau vivant. (…) Often, then, the image may function as springboard for reflections that go beyond its depicted theme. In the case of poetry, a genre in which this category abounds, the poet may additionally emulate the picture's formal construction or aspects of the painter's visual style in the structure of the poem». Ibid.. p. 50-51. Relativamente à ekphrasis dramática, refere a autora que «this category is the most visual of ali four, and has a high degree of enargeia. In other words, texts and films have the ability to evoke or produce the actual images alluded to in the minds of the readers or viewers while at the same time animating and changing them, thereby producing further, perhaps contrasting images. (…) Literary texts can bring characters from one or more images to life and make them characters in the story or drama that speak and act for themselves, thus reflecting on and interpreting the image they come from in the light of their new quotation context». Ibid.. p. 56-57.
7. Ribeiro, 2008, p. 149.
8. Sager, 2008, p. 19.
9. Como já salientou Luís Adriano Carlos, a propósito da ekphrasis em Albano Martins, «o objecto plástico motivador e o objecto poemático motivado, sistemas de base e valor distintos, ligam-se entre si segundo relações de homologia e interpretância, e funcionam em regime de heteronomia correlativa». Carlos, 2002, p. 23.
10. Como, a propósito do quadro de Goya, acentua Robert Hughes, «Most of the victims have faces. The killers do not. This is one of the most often-noted aspects of the Third of May, and rightly so: with this painting, the modern image of war as anonymous killing is born, and a long tradition of killing as ennobled spectacle comes to its overdue end». Hughes, 2003, p. 317.
11. Vd., a propósito da interpretação desta figura como arquétipo crístico, a análise proposta por Elke Buchholz: «No centro do quadro está a próxima vítima. Com os braços erguidos, a sua posição faz
lembrar Jesus crucificado e, de fato, podem-se ver feridas nas palmas de suas mãos. Através desta alusão, Goya deixa a moldura histórica e mostra que o cruel assassinato de gente desarmada é uma realidade que se repete uma e outra vez. Ao mesmo tempo, confere ao condenado uma grande dignidade». Buchholz, 2007, p. 70.
12. Bocola, 1999, p. 76.
13. Segundo Fernando J. B. Martinho, as Metamorfoses senianas inauguram, entre nós, a voga do Bildgedicht, «muito embora o exemplo de Sena, nesse como noutros aspectos, tivesse levado ainda algum tempo a dar os seus frutos. (…) logo desde o autor de Metamorfoses, que, a propósito dos textos aí incluídos, fala de «meditações poéticas», de «meditações aplicadas», muito raramente os poetas citados se cingem na sua escrita da poesia ecfrástica àquela que seria a sua mais imediata definição, como um género de poesia que se caracterizaria "por descrever uma obra de arte", por ser "a descrição poética de uma obra de arte pictórica ou escultórica". Eles vão, antes, ao encontro da definição mais ampla de ekphrasis proposta por Aguiar e Silva, que, para além da descrição, aponta nela também um trabalho de recriação, comentário e exaltação, sendo, assim para o referido autor, a poesia ecfrástica aquela que "descreve, recria, comenta, exalta uma obra de arte (pintura, escultura, etc.)"». Martinho, 1996, p. 258.
14. Refira-se, a título de curiosidade, que do espólio de Jorge de Sena, recentemente doado pela família à Biblioteca Nacional, consta «um postal com a imagem do quadro de Goya que enviou para a "filhotada Sena" e onde escrevia "… este quadro (…) serviu para uma poesia que eu escrevi há anos pensando em vós". Coutinho, 2009, s. p.
15. Como argumenta Fernanda Conrado, «A ekphrasis moderna afasta-se cada vez mais do modelo pormenorizadamente descritivo original, tendendo para tomar o referente como uma motivação ou pretexto para uma meditação sobre um tema, ou para uma crítica social, narrativa, histórica ou genealógica, homenagem ou enaltecimento de um personagem, etc. Deste modo, para que haja algum elemento suficientemente seguro de identificação do objecto, o título torna-se, na maior parte das vezes, se não indispensável, pelo menos recomendável. No ensaio "Ekphrasis and Representation", James Heffernan desenvolve a importância do título como processo ekphrástico em si mesmo, aproximando a sua posição da noção de inset allusion, de Tamar Yacobi: "a picture title is a verbal representation of the picture"». Conrado, 2001, p. 120-121.
16. Sena, 1988a, p. 158.
17. Sena, 1988a, p. 156.
18. Sena, 1988a, p. 157.
19. Sena, 1988a, p. 159.
20. Magalhães, 1981, p. 59.
21. Sena, 1988a, p. 152.
22. Lourenço, 1998, p. 192.
23. Lourenço, 1998, p. 214. Jorge Fazenda Lourenço advoga que a «assumpção humanista da dignidade e centralidade da pessoa humana», evidenciada no poema de Sena, «radica, sem dúvida, na conhecida Oração sobre a Dignidade do Homem, de Pico delia Mirandola (De Hominis Dignitate), que Jorge de Sena pôs em epígrafe no seu conto "Os Amantes" e cita em "Céfalo e Prócris"».
24. Lourenço, 1998, p. 195.
25. Sena, 1988a, p. 123.
26. Como bem lembra Jorge Fazenda Lourenço, «A publicidade do testemunho opõe-se à privacidade da confissão. Testemunhar é um acto público, e não confidencial». Cf. Lourenço, 1998, p. 118-19. Na mesma linha, acentua Luís Adriano Carlos que «Uma poética baseada na atitude testemunhal implica necessariamente a condição intersubjectiva do discurso, a comunidade e a comunhão dos sujeitos no horizonte da palavra». Carlos, 1999, p. 149.
27. Recorde-se que hístor significa "aquele que viu", reenviando explicitamente para o estatuto testemunhal de quem escreve a História.
28. Cf., a este respeito, as seguintes palavras de Jorge Fazenda Lourenço: «O testemunho seniano, sendo desejo de mundo, será, pois, convocação (citação, apelo, chamamento) e evocação de uma realidade vivida, mas será também proposição de uma realidade a viver». Lourenço, 1998, p. 181.
29. Gottardi, 2002, p. 192.
30. Sena, 1988a, p. 123.
31. Sena, 1988b, p. 25-26. Em 1977, no «Discurso do Prémio Etna-Taormina», Sena recapitula os fundamentos da sua teoria da poesia como testemunho, empenhada na construção de «um sentido que não há, se não formos nós mesmos a criá-lo e a fazê-lo», destacando, para além dos sectarismos de escola ou flutuações de ideário estético-literário, a sua indeclinável filiação ética e axiológica. E acrescenta: «Quis sempre que essa poesia fosse o testemunho fiel de mim mesmo neste mundo, e do mundo que me deram para viver. Mas uma testemunha que cria no mundo aquele sentido que eu disse, e, ao mesmo tempo, deseja lembrar aos outros que há uns valores essenciais, muito simples: honra, amor, camaradagem, lealdade, honestidade, sem os quais a vida não é possível e toda a poesia, por mais sábia que seja, é falsa. Uma testemunha de que, sem justiça e sem liberdade, as sociedades humanas não dão ao homem a dignidade que é a sua, e que ao poeta cumpre afirmar. Não uma testemunha passiva: mas activa. Porque é esse o papel da poesia. Pode ela ser panfleto, ou ser visão mística, ou ser sátira, porque ela pode ser tudo. Mas tem de ser activa, não só no sentido meramente panfletário, mas no de, herdando tudo o que a Antiguidade e o passado nos legaram, criarmos a língua do presente e a língua do futuro». Cf. Sena, 2005, p. 207.
32. Magalhães, 1999, p. 282.
33. Carlos, 1999, p. 159. «O humanismo e o anti-humanismo, ou o optimismo e o pessimismo, são eticamente polarizados nas posições de dignidade e de indignação. Esta polaridade profunda determina um fluxo dialéctico de estados de exaltação e estados de indignação, de ode e de sátira, forças contraditórias que dominam o campo da expressão intersubjectiva e organizam a ordem temática». Cf. ibid., p. 125.
34. Repare-se como, no prefácio de 1977 à segunda edição de Poesia-I, Jorge de Sena glosa, em clave crítica, o ethos poético explanado na «Carta»: «Nenhuma liberdade estará jamais segura, em qualquer parte, enquanto uma igreja, um partido, ou um grupo de cidadãos hiper-sensíveis, possa ter o direito de governar a vida privada de alguém. Do mesmo modo, não devemos nunca pactuar com a ideia de que qualquer reforma vale o preço de uma vida humana». Sena, 1988b, p. 21.
35. Sena, 1988a, p. 123-124.
36. Como, em arguto comentário, assinala José-Augusto França, a propósito do poema-epístola de Sena, «Aí não existe descrição, porque não pode haver: o horror da crueldade ultrapassa a cena cortada, como no quadro de Goya ultrapassou, na aparição luminosa do fuzilado, e nas sombras dos soldados, contra o horizonte negro da Espanha. E através da cena é toda uma história da humanidade que se atravessa num testamento de esperançada desesperança que vem ao poeta do respeito pelo mundo que depois dele seus filhos criem (…)». Cf. França, 2001, p. 169.
37. Analisando as palavras de Sena, incluídas no prefácio a Poesia-II, Luís Adriano Carlos salienta que o «carácter meditativo [de Metamorfoses] arruina o carácter descritivo. Por certo os objectos visuais são reflectidos na consciência constituinte; porém, essa reflexão é menos uma representação na superfície de um espelho do que uma refracção contínua, uma mediação mediada pela mediação da linguagem poética». Carlos, 1999, p. 199.
38. Lourenço, 1998, p. 213.
39. Sena, 1984, p. 282.
40. Pontes, 1992, p. 101.
41. Sena, 1988a, p. 124.
42. Sena, 1991, p. 161.
43. Lourenço, 1998, p. 351.
44. Não é este o único caso de diálogo intertextual explícito com a lírica seniana. Em E muitos os caminhos (1995), inclui-se um pastiche do célebre poema de Sena «Em Creta, com o Minotauro», de Peregrinatio ad Loca Infecta, parodicamente rebaptizado «Em Creta, com o Dinossauro». Cf. Amaral, 2005, p. 243-246.
45. Encontra-se uma curiosa menção ao poema de Sena no Diário de Bordo que Ana Luísa Amaral escreveu, por ocasião da sua participação, em 2000, no Expresso da Literatura. Recebida por uma família russa em Kaliningrado, a autora trava conhecimento com um antigo professor que lhe relata as trágicas circunstâncias da sua vida: «Nascido na Polónia, vira os pais morrerem num bombardeamento nazi, o avô ser fuzilado, o irmão desaparecer. Ficara, criança de dez anos, perdido no mundo, sobrevivendo graças ao que lhe davam vizinhos, até que os russos entraram na sua aldeia e o trouxeram para aqui e o internaram num orfanato. Depois de expulsar os alemães da cidade, as saudades de tudo, o continuar só. Era uma pessoa alegre, o pai da minha anfitriã. Lembrei-me do poema do Sena, o seu "Carta a meus filhos, sobre os fuzilamentos de Goya». Amaral, 2001b, p. 11.
46. Amaral, 2005, p. 349.
47. Amaral, 2005, p. 349.
48. Amaral, 2005, p. 350.
49. Amaral, 2005, p. 349.
50. Em 2003, reconhecia, aliás, Ana Luísa Amaral «ter muitos poemas que falam do fazer poético, seja em termos científicos (por exemplo, os neurónios), domésticos (as tigelas, por exemplo), amorosos (por exemplo "Coisas de Partir")», acrescentando que essa inclinação auto-reflexiva em sede poética «não é consciente; é algo "natural", que assim me sai», cit. em Machado, 2003, p. 64.
51. Martelo, 1999, p. 231.
52. Colho a expressão no ensaio de Isabel Allegro de Magalhães intitulado O Tempo das Mulheres. A dimensão temporal na escrita feminina contemporânea. Lisboa: IN-CM. Já numa recensão a Minha Senhora de Quê, destacava Paula Morâo a «presença ao longo dos poemas das tarefas do quotidiano, do irrisório e do insignificante que lhe estão ligados», frisando que «isso tem extensão no modo de tratar o tempo (…)» Cf. Morâo, 1994, p. 222. Sobre o «lugar do feminino em literatura», declarava, em entrevista de 2003, Ana Luísa Amaral: «A questão da existência de um "feminino" e de um "masculino" é, no mínimo, polémica. Entender o feminino como o lugar da diferença, do deslocamento, é continuar a insistir numa estrutura dicotómica, em que um dos pólos é sempre menos privilegiado (…). Depois, julgo que a literatura, ou, no caso mais concreto, a poesia, é, por excelência, o espaço da diferença, da transgressão», cit. em Machado, 2003, p. 63.
53. Sena, 1978, p. 32.
54. Como sublinhou Rosa Maria Martelo, é detectável, na lírica de Ana Luísa Amaral, «a apropriação poética de uma periferia temática tradicionalmente subvalorizada como especificamente feminina e, por isso mesmo, tida como desprovida de pendor generalizante ou arquetípico. Uma interioridade de espaços, gestos e laços quotidianos e (mais) femininos, embora estreitamente conjugados com a revisitaçâo e desconstruçâo irónica dos grandes temas da Modernidade estética, conduz, também neste caso, ao fragmento narrativo, ao "fait divers", à exploração da memória e mesmo ao humor». Cf. Martelo, 1999, p. 231. Maria Irene Ramalho relaciona a prevalência deste metaforismo prosaico com o hábito retórico, caro aos poetas metafísicos ingleses, de associação inusitada de conceitos. Ramalho, 2003, p. 260.
55. Amaral, 2005, p. 349.
56. Amaral, 2005, p. 349.
57. Na penetrante análise que conduz de Novas Cartas Portuguesas à luz da teoria queer, Ana Luísa Amaral inventaria como um dos seus postulados axiais «a explosão de dicotomias, a defesa de um miríade de identidades não fixas nem estáveis, antes em constante transformação, a própria questionaçâo de pontos de referência tidos como seguros». Amaral, 2001a, p. 77.
58. Amaral, 2005, p. 32.
59. Coelho, 2000, p. 399.
60. Amaral, 2005, p. 350.
61. Amaral, 2005, p. 350.
62. A profusão da poesia ecfrástica não causa, afinal, estranheza num autor que, na «Entrevista Apócrifa», incluída em Décima Aurora (1982), considera os pintores «os mestres inexcedíveis». Cf. Osório, 2006, p. 7.
63. Osório, 2006, p. 155.
64. Osório, 1979, p. 75.
65. Como nota Gustavo Rubim «(…) o poder – de morte e aniquilação – é, em geral, a forma do mal em António Osório». Rubim, 1999, p. 1309.
66. Magalhães, 1989, p. 121.
67. Osório, 2006, p. 155-156.
68. Pinto do Amaral, 1991, p. 64.
69. Gastão, 2008, s.p.
70. Pimenta, 1983, p. 77.
71. Braga, 2007, p. 28.
72. Braga, 2007, p. 31.
73. Braga, 2007, p. 36.
74. Heffernan, 2004, p. 7. Michael Riffaterre salienta o carácter necessariamente ilusório da dupla mimese ecfrástica, uma vez que a transcriaçâo verbal do referente pictórico é irrevogavelmente condicionada pela apropriação hermenêutica que dele faz o autor, bem como pelo co-texto literário no qual surgirá transplantado: «Como el texto ecfrástico representa con palavras una representación plástica, esta mime si s es doble. Pero también es ilusória, ya sea porque su objeto es imaginário, o bien porque su descripción tan sólo hace visible una interpretación dictada menos por el objeto real ou fictício que por su función en un contexto literário». Cf. Riffaterre, 2000, p. 161.
75. Pitta, 1992, p. 282.
76. Cortez, 2007, p. 229.
77. Baptista, 2007, p. 39.