Nos Estudos de história e de cultura, publicados pela Revista Ocidente entre 1963 e 1967, Jorge de Sena aplica-se a uma visitação minuciosa de uma parcela bastante específica da história de Portugal, com paradas no tempo distribuídas em quatro capítulos assim intitulados: “A família de Afonso Henriques”, “O vitorianismo de Dona Filipa de Lencastre”, “Os painéis ditos de Nuno Gonçalves” e “Inês de Castro, ou a literatura portuguesa desde Fernão Lopes a Camões, e história político-social de D. Afonso IV a D. Sebastião, e compreendendo especialmente a análise estrutural da Castro de Ferreira e do episódio camoniano de Inês”. O longo título do último capítulo corresponde ao grande espaço dedicado a Inês e seu mundo nessa obra de Sena – 495 das 621 páginas do volume. O motivo para tal prevalência dá-nos o autor já no primeiro parágrafo do Prefácio, em que afirma ser Inês de Castro
“O pretexto para o exame das condições histórico-sociológicas que a criaram como mito literário, e para a análise estrutural das obras que o seu drama inspirou, desde as supostas referências de romanceiro perdido até aos Lusíadas de Camões, em que ela atinge o significado máximo de um dos símbolos constitutivos de uma Filosofia da História de Portugal (…)”. [1]
O pretexto inesiano igualmente servirá ao entrelaçamento da historiografia com a produção literária, as duas grandes frentes em que Sena atuou, fazendo convergir os dois discursos e, mais que isso, ajudando a marcar a importância do discurso literário, isto é, ficcional, quando se tem como objetivo a investigação de determinados contextos históricos. Ainda no Prefácio, o autor apresentará os termos de sua visitação ao passado, insistindo na inevitável relação que ele mantém com o presente, recusando-se, por um lado, a abdicar da busca pela verdade e, por outro, indicando a parcialidade dos eventuais resultados dessa visitação, uma vez que ela é sempre determinada pela perspectiva adotada. A reflexão que se segue é, portanto, marcada pela assumida tensão que subjaz à investigação histórica, já que o acesso ao passado é obrigatoriamente mediado pela imagem que o presente faz de si próprio e pelo tipo de vínculo que estabelece com o próprio passado. Diz-nos Sena, essa é uma experiência fundamental para aqueles que, inconformados com sua situação no presente, desejem transformá-la visando a construção de um futuro diferente, em novas bases.
“Seja qual for a posição política de portugueses de hoje, a todos se impõe um responsável exame de consciência. E nenhum exame será eficaz e autêntico, se não for haurido na meditação desapaixonada de um passado cujas glórias, tanto como os desastres, pesam no nosso destino. De nada adianta diminuir as glórias (ou aumentá-las), ou amplificar os desastres (ou diminuí-los). E muito menos adianta reexaminá-los como se os atores deles pudessem ou devessem prever, sem erros, o futuro que nos envolveria o nosso presente. Esse tipo de retaliação retrospectiva, por muito nobre que seja nos seus propósitos, é sempre uma perigosa falsificação da verdade possível” [2].
Sintético das voltas ao passado empreendidas por Sena é o termo “desapaixonada”, que aponta para o distanciamento, ideológico, sim, mas igualmente afetivo que se deve manter nesse tipo de viagem no tempo. Quando se pensa em Inês é importante considerar o apaixonamento que em geral toma conta daqueles que se ocupem tanto de sua trajetória como personagem histórica quanto de suas reencarnações como personagem literária [3]. De um lado, há as circunstâncias escusas que envolvem sua morte, de outro, o amor que a uniu a Pedro e garantiu a longevidade de sua permanência como tema literário, fortes candidatos a turvarem a visão do investigador, que, no afã de esclarecer em definitivo os pontos obscuros da história ou aceitando a realidade de um amor que pode bem não ter existido – tendo sido de fato construído, em palavras e imagens, por um rei interessado em legitimar seus descendentes – comprometer-se-ia irremediavelmente em seu desimpedimento [4].
Nessa viagem retrospectiva e projetiva, atento a tais perigos e determinado a ser fiel a sua meditação desapaixonada, o autor percorre os caminhos que se foram construindo ao redor das figuras de Pedro e de Inês, buscando compreender o modo como em determinados momentos de sua história os portugueses se ocuparam daquele par de amantes e o tipo de vínculo que com eles estabeleceram. Quando, depois de passar por Afonso Henriques, Filipa de Lencastre e pelos painéis de Nuno Gonçalves Sena chegar a Inês de Castro será com a inscrição no tempo histórico de um episódio nacional transformado em tópico literário que ele estará preocupado.
“Fernão Lopes, uma versão da Crónica Geral, Rui de Pina, Garcia de Resende, aquele Acenheiro, António Ferreira, e Camões, são estudados em função dos condicionamentos a que estavam, como o tópico de Inês, sujeitos; e analisadas as obras que a ela dedicaram. (…).
Inês continuou a ser, até aos nossos dias, um tema; mas não voltou a ser, como em Camões, e no plano histórico-metafísico, um símbolo. Porque ser-se, como ela tem sido, explorado exemplo de paixão trágica não é o mesmo que representar-se, numa Filosofia da História, a tragédia do amor humano.” [5]
Para distinguir essas duas possibilidades de tratamento do tema e indicar sua escolha, o autor lança mão do que chama de “plano histórico metafísico”, um elemento que nos permite observar, para além do jogo entre presente e passado, um interesse também voltado para aquilo que, nascido ou acontecido em um momento específico da história, ameaça escapar do tempo para ser a promessa de superação do que, na lida com a temporalidade, o ser humano percebe como a barreira definitivamente intransponível. Compreender os mecanismos de sustentação do longevo interesse pelo episódio inesiano seria então uma forma de compreender como se vai do tempo à eternidade.
Curiosamente, quando discute a produção da crítica iconográfica acerca dos túmulos de Inês e Pedro em Alcobaça Sena não nos dá qualquer indicação desse seu interesse pelo jogo entre tempo e eternidade. Nessa parada ocupa-o exclusivamente a tarefa de liberar os túmulos daquelas meditações apaixonadas que ele condena no início da obra. Em sua determinação de acabar com os equívocos de leitura sobre o que influiu na construção daquelas obras ímpares na tumulária medieval, graças a sua beleza, e a escolha de Alcobaça como o lugar do descanso eterno daquele par de amantes, Sena adota um discurso que, orientado pela tal atitude desapaixonada, dado seu grau de desconstrução do que até ali a crítica especializada havia produzido, configura um desafio ao leitor. Explico: a desqualificação daquele discurso crítico é tamanha que o leitor que acompanhe as considerações de Sena vê-se na iminência de desqualificar também a história por trás da construção dos túmulos. Ao recusar a hipótese de que na iconografia dos monumentos funerários encontrar-se-ia o mais antigo registro sobre os eventos relativos à vida do rei e de sua amante, Sena ataca um dos principais responsáveis pela transformação do episódio em mito do amor eterno. A beleza dos túmulos, que ele não questiona, não poderia ser confundida com um esforço de Pedro no sentido de singularizar seu amor por Inês.
“Os túmulos são pomposíssimos e imponentes, e são-no sem dúvida mais do que os que ainda se conservam daquelas épocas vetustas. Mas não exageremos. Alguns dos túmulos existentes são admiráveis, com belas estátuas jacentes, e há-os em Lisboa, em Évora, em Coimbra, etc. (…) O túmulo de D. Fernando é uma arca de notável dignidade, que apenas não fascina os amadores obstinados de figurinhas graciosas pela sua “ingenuidade”. De modo que, em matéria de romance estético, quanto à qualidade dos túmulos, resta-nos apenas supor que, provavelmente, a moda da imponência, em túmulos reais, vinha em crescendo, e que D. Pedro pôs em Alcobaça, para si e para Inês, até pelo local escolhido da igreja (como acima apontamos), a réplica ampliada do que seu pai pusera na Sé de Lisboa.
Tem sido repetido, desde que, em 1910, Vieira Natividade apresentou a sua “leitura definitiva” das edículas da rosácea existente na face da cabeceira do túmulo de D. Pedro, que, nessas edículas, está historiado, por forma mais ou menos realística, o drama dele e de Inês. Consideremos desapaixonadamente os túmulos.”
Mais uma vez a conduta desapaixonada é referida como essencial para atingir-se o objetivo desejado. Trata-se, então, de privilegiar uma abordagem crítica que desvincule a qualidade artística dos monumentos funerários da intensidade do sentimento partilhado por Pedro e Inês. Não seria pela superioridade do trabalho ou pela singularidade do local escolhido – o interior da igreja e não a galilé, onde tradicionalmente enterravam-se os nobres – que se chegaria à verdade de um amor que desafiou os limites impostos pela morte, tendo por isso alcançado o direito de ser para sempre lembrado. Mesmo o para sempre que se leria na mesma face do túmulo de Pedro onde se encontra aquela rosácea é colocado em seu devido lugar, em termos de significado, por Jorge de Sena. A comovente imagem do rei a declarar aquele até o fim do mundo desafiador das leis da morte, tão cara a muitas versões do episódio inesiano, é lançada por terra pelo crítico que interpreta a inscrição A : E : A F I N : D O M U D O como uma versão de sic transit gloria mundi, ou seja, justamente o contrário daquele desafio.
Nessa perspectiva, Pedro estaria longe de ser o exemplo do homem que não aceita a finitude e muito menos a ideia de que a vida terrena é apenas uma passagem para o não-tempo, a eternidade, divina ou demoniacamente governada; antes, seria aquele que, cioso da importância de levar-se uma vida exemplar para garantir o acesso ao plano celeste, teria inscrito em seu túmulo os passos necessários para se superar uma vida de pecados. No lugar do rebelde, o pecador contrito. Levando-se em conta o objetivo que se impõe o autor, esta imagem invertida do rei, em relação ao que são as imagens correntes, pode de fato ser considerada uma vitória da meditação desapaixonada, pois somente ela seria capaz de engendrar uma tamanha mudança de visada. O resultado de tão radical mudança é uma espécie de terra arrasada. Limpo o terreno das interferências nocivas da inexatidão historiográfica, estão os personagens livres para serem objeto de novas investigações, certamente mais produtivas porque não comprometidas com a valorização do que é alheio ao que o tempo feito história produziu. Que ninguém se assuste com isso pois, afinal, no início da obra, preocupado com um eventual equívoco de identificação por parte do público, tendo em vista sua dupla condição de historiógrafo e ficcionista, o autor afirmava que não estava a fazer obra de ficção. Portanto, seu papel ali era o de observador dos fatos e não de criador, o que o leva a afirmar, no tom de quem conclui:
“Parece, portanto, que os túmulos de Alcobaça não podem ser considerados como documentos da história de Pedro e Inês, para lá do que significam por si mesmos, mandados fazer e pôr ali. Ainda que o pudessem ser, a história dos dois amantes seria contada, neles, muito mais vagamente e imprecisamente do que se tem pretendido ver. E, mais uma vez, devemos ter presente ao nosso espírito que Pedro e Inês, como os seus túmulos, são muito anteriores aos rios de tinta, que têm sido gastos à custa deles.”[6]
Depois de reafirmar sua condição através do exercício de uma interpretação desmistificadora dos aspectos históricos que envolvem a construção dos túmulos, Sena encerra esta parada em território inesiano com uma observação que chama a atenção pelo contraste com aquela orientação desmistificadora.
“Isto em nada diminui o valor dos túmulos como arte. A importância de uma obra de arte não depende da sua rigorosa ou aproximada importância iconográfica. (…) com uma simbologia religiosa ou inspirada numa visão espiritual da vida humana, os túmulos não deixam de ser os que D. Pedro mandou fazer para si e para a amante dileta (se o foi). Pelo contrário, revestem-se de uma dignidade que se não compadece do anedótico, por muito trágico que o anedótico seja.”
Se até um parágrafo antes era a visada histórica que interessava ao autor, neste parágrafo, com que se fecha a abordagem seniana dos túmulos, é o interesse metafísico que desponta através da observação de um componente trágico ali presente, concentrado todo ele exclusivamente na realidade materializada do desejo do rei – “mandou construir para si e para Inês”. O trágico emanaria, então, deste contraste entre as forças em jogo na mesma pedra, que tanto serviria para registrar a adequação de Pedro a uma visão espiritual da vida humana, dominante no seu tempo, como índice do seu esforço de inscrever-se no plano material, na temporalidade. Assim, pelo modo como Sena organiza seu discurso, neste ponto de sua peregrinação ao passado, pode-se dizer que o trágico seja apenas uma presença residual.
Comparando-se esta desapaixonada parada em Alcobaça com aquela que testemunhamos no poema “A nave de Alcobaça” somos tentados a desobedecer o autor em sua recomendação da leitura desapaixonada. A começar das datas declaradas por ele, nada sustenta uma relação que faça do texto poético um desdobramento do que se lê no texto crítico. Entretanto, a percepção de que exista um vínculo entre ambos, responsável pela ampliação e aprofundamento do que cada um diz em separado, é como a vertigem do abismo, assustadora e irrefreável.
Vazia, vertical, de pedra branca e fria,
longa de luz e linhas, do silêncio
a arcada sucessiva, madrugada
mortal da eternidade, vácuo puro
do espaço preenchido, pontiaguda
como se transparência cristalina
dos céus harmónicos, espessa, côncava
de rectas concreção, ar retirado
ao tremor último da carne viva,
pedra não-pedra que em pilar’s se amarra
em feixes de brancura, geometria
do espírito provável, proporção
da essência tripartida, ideograma
da muda imensidão que se contrai
na perspectiva humana. Ambulatório
da expectação tranquila.
Nave e cetro,
E sepulcral resíduo, tempestade
suspensa e transferida. Rosa e tempo.
Escada horizontal. Cilindro curvo.
Exemplo e manifesto. Paz e forma
do abstracto e do concreto.
Hierarquia
de uma outra vida sobre a terra. Gesto
de pedra branca e fria, sem limites
por dentro dos limites. Esperança
vazia e vertical. Humanidade.
Escrito em 1962, ano anterior ao início da publicação dos Estudos, aquele é um entre vinte poemas de uma série dedicada à perseguição dos resíduos do tempo no tempo, aquelas Metamorfoses [7] que dão título ao livro em que apareceu. Se nos voltarmos para a imagem da terra arrasada acima evocada para registrar o impacto da interpretação de Sena, a impressão que teremos agora é a de que naquela terra ergueu-se a igreja cujo interior serve de tema ao poema, mas não há lugar ali para os túmulos, contaminados que estariam pelos frequentes equívocos de interpretação historiográfica. É de um espaço vazio que se trata, um invólucro do “vácuo”, uma construção destinada a ser o “ambulatório da expectação tranquila”. O que se espera ali? E quem espera, tendo em vista o que se apresenta ao leitor, um objeto que, em sua pura e essencial materialidade, repele qualquer sujeito?
Diferentemente da postura objetiva adotada e defendida por Sena em seu estudo histórico, o interior da igreja de Alcobaça chega-nos marcadamente filtrado pelo olhar e, mais que isso, pelo efeito provocado pela nave na sensibilidade de um eu-lírico que se esforça por materializar em linguagem o impacto por ele sofrido na contemplação daquele espaço. Nesse cenário, a ausência de uma referência aos túmulos amplifica o sentido do termo “resíduo”; como tal tornam-se presentes, juntamente com seus ocupantes, dada a quase automática associação entre o nome Alcobaça e a história de Pedro e Inês. Assim ganha força – e corpo – a expressão “sepulcral resíduo”, uma das caracterizações da nave. O gesto de Pedro ao mandar construir seu túmulo equivale ao “exemplo e manifesto” com que igualmente se identifica aquela igreja. “Exemplo” de que a perspectiva assumida pelo ser humano é dada pelo tempo em que se descreveu sua trajetória neste mundo, e “manifesto” de sua obstinada determinação para ultrapassar seu tempo e seu mundo, estabelecendo, através de sua trajetória, o vínculo entre seu presente e os muitos futuros de que se compõe a eternidade, não aquela medida em termos espirituais, mas sim humanos. Daí que a nave de Alcobaça seja descrita no poema como “Hierarquia de uma outra vida sobre a terra” (grifo meu). Depois de revolver os resíduos deixados por homens que, como Pedro, buscaram escavar no tempo a eternidade, o autor encerra seu poema assumindo o caráter trágico desse tipo de empreitada: “Esperança vazia e vertical. Humanidade.” Se nosso destino é o de alimentar uma esperança vazia, a obra de Jorge de Sena está longe de ser uma aposta em nossa derrota, obstinadamente fazendo dos resíduos da passagem humana sobre a terra a matéria para a construção da nave que deverá figurar como a marca destes bichos da terra, seu “gesto de pedra branca e fria, sem limites por dentro dos limites.” Para sempre.
Notas:
[1] SENA, Jorge de. Prefácio. Estudos de História e de Cultura. Lisboa: Revista Ocidente, 1967, p. 5.
[2] Idem, p. 8.
[3] Para uma reflexão aprofundada acerca das permanências e transformações do tema inesiano na literatura portuguesa veja-se minha tese de doutoramento: CARDOSO, Patrícia da Silva. Inês de Castro ou a morta luminosa. Campinas: Unicamp, 2002.
[4] Como exemplo da força exercida pela história de Pedro e Inês depois de transformada primeiro em tópico literário e depois em mito cultural, refira-se a abordagem de José Custódio Vieira da Silva. Em seu O panteão régio do mosteiro de Alcobaça (IPPAR/Ministério da Cultura: Lisboa, 2003), o tom adotado na análise daquele conjunto de túmulos e na descrição das mudanças no espaço que os abriga contrasta com o do capítulo final, dedicado exclusivamente aos túmulos de Pedro Inês.
[5] Op. cit., p. 125.
[6] Op. cit., p. 218.
[7] Os trechos aqui citados de “A nave de Alcobaça” foram retirados da edição italiana da obra: SENA, Jorge de. Metamorfosi. Roma: Empiria, 1986, p. 48-50.