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O nada que se vive, que se escreve. Jorge de Sena

Que coisa fedorenta a glória, sobretudo
enquanto não passam séculos e só ruínas
fiquem – onde nem o pó dos mortos
ainda cheire mal.

Jorge de Sena

 

I


No começo coloca-se a obrigação «é preciso pensar a poesia». Está implícito: 1. poesia é cláusula, exigência, de humanidade; 2. Pensar a poesia é condição da poesia e do pensamento, do seu perseverar na enigmaticidade.

Em poemas escritos por Jorge de Sena, o pensamento da poesia dá-se, no permanente desdobramento de cada verso, frase ou palavra, como uma meditação sem fim que abre o abismo de nada haver fora do mundo, de dele não haver limite, saída, pois ele é tudo o que há e o seu nada, espaço-tempo incapturável.

Nas suas várias faces, a poesia de Jorge de Sena é denúncia da violência necessária à imposição de interesses, bem como do consentimento que a suporta. Para tal procede à reflexão sobre o imaginário que naturaliza ou rasura os aspectos mais brutais dela, não só pela fabricação de fábulas encadeadas a uma fábula da origem ou da transcendência – instauração de uma realidade transcendente ao homem (deus, a natureza), e a que ele se subjuga –, mas também pela imposição da crença no saber como suficiente para a vida.

Os poemas escrevem-se, expõem-se, como apelo ao que vem sem todavia se apresentar, ao que vem como cesura, e por conseguinte vem sem que alguma coisa venha, vindo instaurar o corte-articulação de sensível e inteligível na destituição recíproca de afecções cegas e sistemas de inteligibilidade. Aí se abandonam os horizontes, não havendo programa ou poética que subsista: a repetição obsessiva de temas, motivos, ou mesmo palavras inscreve-se em processos de estruturação nos quais a recusa de princípio – recusa de viver num mundo convertível em estado de coisas – só vale como começo poético absolutamente literal, aquele em que a letra repetida se despe de significados, de convenções, para no seu nada de significação se oferecer como inscrição em aberto que no desdobrar, explicar, desconstruir, abandona aquilo que é.

 

II


“Tríptico do Nada” do livro Fidelidades, estrutura-se pela variação de significações de “viver”, sem por ela chegar a nenhum significado positivo, uma vez que a variação conceptual associada a diferentes postulados sobre a natureza, o mundo, o “eu” e os outros, diz essencialmente que se vive das falhas do saber, que se vive do morrer enquanto retirar-se à vida morta; vive-se de nada, sem que alguma vez “ nada” seja uma presença. O poema que está como lugar central do Tríptico, o II, escrito em 15/1/53, confere este lugar à enunciação como vazio de identidade: o sujeito, que acede ao saber que não sabia, acede no mesmo passo à compreensão de que o poema não tem uma função pedagógica – “De mim nada se aprende nem a morte” – e de que a vida é feita de um desígnio vão. Esta afirmação central, vinda de quem escreve (da figuração de quem escreve através do dizer “eu” no poema), nega exemplarmente a posse da “própria” vida, que assim não pode pretender dominar através de ficções de mestria. Assumir a vida como desígnio vazio de conteúdo é torná-la irrecuperável enquanto projecto, o que implica a sua abertura infinita, ao infinito. 

II

De mim nada se aprende nem a morte:
há muito desisti de não saber
que não sabia.
Outros que vivam a sua vida: eu vejo
como vivem a minha.
Outros que a tenham nesse dia a dia,
eternidade a prazo,
em que fingi que a tinha.
Queiram, não queiram, neguem-na ou aceitem-na,
se de um desígnio vão exemplarmente é feita:
não – nem mesmo é minha.

Ao lado desse painel em que se figura o poeta como retirar-se à ficção de identidade, o painel I, poema escrito em 10/1/53, tem uma enunciação impessoal, o que não quer dizer universal, mas de distanciação ou apagamento das particularidades, impulso filosófico pelo qual os versos se desdobram a partir de uma intuição inicial:

I

Não. Nem de saber nem de viver se vive.
Sem princípio e sem fim, na estrita Natureza,
geram-se os homens, matam-se ou dissolvem-se,
os olhos revirando para céus vazios.
E tudo quanto podem, ousados, possam:
Todas as leis são lei, e lei não há nenhuma.

Nega-se aquilo que habitualmente é considerado positivo, um significado vulgar de “vida”, que tanto é apresentado como uma relação entre saber e viver, que faz depender este daquele, como apresentado enquanto viver imediato, um viver natural, primordial. Na redução que corresponde a cada um desses termos, ou à sua complementaridade, a experiência única que “se vive” é anulada. O saber-viver é entrincheiramento num imanentismo que pretendendo-se auto-sustentado, ignora a sua cumplicidade com uma transcendência, pressuposta no entanto como centro de emanação de poder, centro ordenador. Trata-se de perseverar no (pelo) poder da “estrita Natureza”, mesmo que para tal se inventem e adorem deuses colocados acima do suposto alcance humano – “os olhos revirando para céus vazios”. O viver do saber, o viver do simples viver ou o saber-viver são modos de colocação do direito do mais forte, para o qual não há limite, uma vez que colocar-se na dependência da (sua) Natureza ou de Deus, é colocar -se em função de um poder superior de sobrevivência, cujos desígnios embora desconhecidos, se identificam como poder absoluto, de que decorre, “naturalmente”, o ideal do poder como ideal superior – “E tudo podem quanto, ousados, possam: / todas as leis são lei, e lei não há nenhuma.” O ideal do poder é desvalorização absoluta do que se vive, desvalorização da vida enquanto o que se vive, e hipoteca desse viver ou “experiência única” a uma instância exterior ao mundo, entrega à morte como sonho de vida. A desvalorização da vida pode ser feita em nome de uma vida superior conquistada na, pela, morte. Assim se exalta o lugar dos heróis, cuja vida supera dialecticamente a vida tornando-se espírito objectivo.

Livres ou não, que importa não morrer,
se conquistada a morte o não morrer é vida;
que importa a vida, se a mesma liberdade
é um resto que regressa da vontade
com que sonhámos imensa a Natureza estrita

Encontrar uma justificação para a vida, é sempre já desvalorizá-la, colocá-la em função de um exterior dela. Nem a liberdade justifica nada: entre a justificação pela vontade de poder como entrega à estrita Natureza (estrofe 1) e a justificação pela liberdade inseparável do sonho do indivíduo como exercício de um poder imenso da sua natureza, a Natureza estrita, não há escolha para a poesia, para a humanidade. A estrofe seguinte reitera a ausência de alternativa através do “nem”:

Nem de morrer vivemos, nem dos deuses mortos,
nem dessa vida que ao morrer deixamos
adiada e suspendida.
Nem de outra vida que ao morrer levamos
na memória de gestos e de olhares,
de cheiros e vagares,
de tudo o que éramos não sendo a vida.

Nada de positivo se pode colocar como justificação da vida, que não carece de justificação na exacta medida em que não pode ter um sentido, nunca se apresenta como uma positividade: o homem não sendo imortal é infinito na sua finitude. A 4ª estrofe retoma o problema do imanentismo na colocação da articulação entre Natureza e Mundo.

É vasto o Mundo cada vez mais vasto,
e a Natureza é estrita:
Disso vivemos, disso acabaremos,
E é disso que queremos e não queremos –
– que nem de saber nem de viver se vive.

Aí se afirma o “querer” enquanto dividido, querer e não querer conjugados, um querer que vem da dualidade inultrapassável de Mundo, “vasto”, e Natureza, “estrita”. Vive-se e morre-se dessa dualidade, dessa divisão, que não pode ser superada, que não tem fora de onde se possa conhecer ou lei a que seja possível entregar-se. Daí que os qualificativos “vasto” e “estrita” não possam ser resultado de uma verificação. Fazem parte da promessa da humanidade, da promessa poética (note-se na expressão “é vasto o mundo” a ressonância da expressão “vasto mundo” do poema “Sete faces” de Carlos Drumond de Andrade): o enigma do mundo (o seu ser cada vez mais vasto, permanente perda de horizonte) não é separável do ser-se mortal, consequência inelutável da natureza, provando, sem prova, que a vida não coincide com o estrito saber ou o estrito viver : “ – que nem de saber nem de viver se vive.”

O começo do painel III, apresenta um paralelismo com o começo do painel I, onde em I está “Não.”, em III está “Morri.” A afirmação contestadora, em I, seria operação do pensamento que ao negar a força de fixação que emana das opiniões torna mais vasto o mundo. Articulada com a experiência que se vive – experiência de viver-morrer (só se acaba uma vez, mas vive-se e morre-se até ao fim), enquanto experiência do não pertencer à estrita natureza e não ter uma natureza estrita (experiência do vazio), ficcionada em II – a negação contrasta com o que seria um testemunho da realidade enquanto tal, da realidade na sua petrificação: o testemunho da realidade seria o de dizer “morri”, pois dizer “morri” é a consequência de se ver como parte da realidade figurada na procissão dos mortos, de se ver como parte de uma engrenagem identificadora feita de jogos de espelhos através dos quais a morte comanda.

Morri. Que nesta procissão tão natural de mortos
Ida connosco e onde vamos –
Subitamente e entre objectos vagos,
Uns rostos encontrei, que eu tinha sido,
outros que ainda sou, e mais alguns,
meus conhecidos, que também serei.

Olhámo-nos todos mutuamente. E sob
As rugas e a ilusão, cabelos e palavras
E mesmo até certos olhares de infância,
Reconheceram-me tal qual os conheci.

Mas se dizer “eu” fosse só isso, fosse o equivalente de “morri”, o mundo seria uma cadeia contínua sem enigma. Não seria vasto. Dizer “eu” é nascer das ruínas, recomeçar sempre o interminável luto e inscrever-se no mundo como nem morto nem vivo, morto e vivo.

(Substância do mundo, inerte e velocíssima:
como ela sou enfim,
Morto que estou e com o amor em mim).

A substância do mundo é intensidade paradoxal (inerte e velocíssima), imperceptível como intensidade. Comparável a ela, nela e dela se formando e deformando, também o “eu” é promessa imperceptível, promessa de não sucumbir à morte em vida, de guardar (criar) em si um nada inapropriável (“o amor em mim”).
 

 

III


“Epitáfio” é um poema de Jorge de Sena, datado de (8/1/53), que pode ser lido como uma arte poética, na medida em que “Epitáfio” como título indica desde logo a possibilidade de se ler o poema como sendo um epitáfio e não apenas sobre o epitáfio. O registo de epitáfio é bem evidente, bastando aqui citar o primeiro verso: “de mim não buscareis que em vão vivi” e os últimos: “Se em meus lugares, portanto me buscardes / O nada que encontrardes / eu sou e minha vida.” Pelo simples facto de ser público, um epitáfio não pode circunscrever os seus destinatários, no entanto, o facto de se destinar a um lugar , distingue-o do poema, que, sendo publicado em livro – lugar sem lugar –, coloca desde logo como sua condição o absoluto prevalecer da indeterminação da destinação. O que não significa que deva, ou possa, prescindir por completo da figuração de um destinatário imaginado ou imaginável.

Esse apelo a um interlocutor que se inscreve no poema é aqui importante, pois se pretende aqui observar como a figura de quem ficciona no poema a sua morte como morte da morte e apresenta a sua vida como onde tal acontece, tanto pode ser a figuração de quem escreve, como a de qualquer um que não viva da divisão entre o alto e o baixo em si ou fora de si, que não se evada para uma realidade superior ou a projecte sobre o mundo. Se o poema é um epitáfio é porque qualquer palavra que se dirige a qualquer outro se dirige ao absolutamente outro, e não a qualquer outro como apenas finito. Esse dirigir-se inscreve uma altura sem verticalidade, a altura do nada, que se contempla “sem êxtase nem pasmo”. Um nada que não é convertível no mesmo por ressurreição, mas permanece nada: “Se em meus lugares, portanto, me buscardes / O nada que encontrardes / eu sou e minha vida.”

A altura do nada, estar sem preconceitos diante do outro, desarmado e mortal, supõe a reciprocidade do encontro numa assimetria fundamental traduzida nesta estrofe:

Por isso fui amado em lágrimas e prantos
do muito amor que ao nada se dedica.
Nada que fui, de mim não fica nada.
E quanto não mereço é o que me fica.

O sofrimento pela vulnerabilidade do outro é parte do amor, não porque o amor seja dedicado a alguém que se elege objecto, mas porque o ser mortal do outro abre a dimensão da altura – o outro precede o “eu”, que nasce na afirmação dessa precedência sem conteúdo. Só se é outro no nada de identidade que se vive. De outro modo, ser outro é a potência de escapar ao definido, de se atravessar de nada; potência de escapar à objectivação por se ser indesvendável, criador. Por isso o nada que se vive, o nada que se escreve, se não separa do dom, irretribuível, numa assimetria fundadora.

 

IV


Que a escrita e a arte são criadoras de formas que não representam, ou representam o nada das coisas, dos actos, dos pensamentos, dos sentimentos, lê-se, por exemplo, no poema «A cadeira Amarela, de Van Gogh. Também este poema se constrói pela variação, neste caso da descrição do quadro, motivada pelo que ocorre entre a primeira e a última estrofe.

No chão de tijoleira uma cadeira rústica,
rusticamente empalhada, e amarela sobre
a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
Ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta, uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
Em que os pincéis se empastelaram suaves,
Se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.

O quadro começa por ser descrito num horizonte de verosimilhança – desenho e cor no quadro são colocados em relação com imagens que reconhecemos como as de chão de tijoleira, cadeira rústica, porta, etc.. Menos reconhecível seria o conteúdo do lenço poisado sobre a cadeira, mas essa hipótese de falha da identificação não perturba a verosimilhança. A sequência da descrição vai no entanto desencadear uma certa derrapagem que começa a perturbá-la: a seguir à referência à assinatura estabelece-se uma passagem inesperada da referência ao sítio dela, um caixote baixo, para a referência à porta que faz alastrar a referência tumular. Em seguida, fora de qualquer plausibilidade, regressa-se ao nome assinado, Vincent, assinatura do pintor e não apenas deste quadro. A referência à assinatura introduz a referência à feitura do quadro, à sua materialidade, que não desfazendo a figuração a desloca do verosímil para a inscrição de uma enigmaticidade irresolúvel.

A segunda estrofe apresenta uma reflexão sobre a história da arte em que se coloca a ruptura da representação:

Depois das deusas, dos coelhos mortos,
e das batalhas, príncipes, florestas,
flores em jarras, rios deslizantes,
sereno lusco-fusco de interiores de Holanda,
faltava esta humildade, a palha de um assento,
em que um vício modesto – o fumo – foi esquecido,
ou foi pousado expressamente como sinal de que
o pouco já contenta quem deseja tudo.

A passagem da obrigatoriedade de temas míticos e históricos à pintura (do) que se vive estaria incompleta com a assunção da pintura de cenas da realidade. Supõe-se que o que faltava era desfazer a ideia de uma soberania do pintor e da sua pretensão de distância em relação ao que pinta (mesmo quando se representa pintando, não abdica da soberania remetida para o outro que em si assiste ao seu fazer). O que faltava à arte é dito ser uma “ humildade”: “a palha de um assento”, suporte que se caracteriza pela precariedade, pelo desfazer-se que o torna húmus, mas também, e sobretudo, o que não está presente, mas existe aí – o fumo, que lá foi esquecido ou colocado, o fumo, metonímia do tabaco e do cachimbo, fumo, literalmente, do que naquela feitura é “fogo que arde sem se ver”, o nada, de que só há sinais, fumo ou cinza a indicar o pouco que se sente e pensa. A representação acaba pois na afirmação do pouco. Sinal de nada, isto é, de um desejar intenso, desejar tudo – viver no desejo e não na indiferença ou num sistema de hierarquizações prévias.

Sendo pouco, um quase-nada, o que se pode figurar e dizer sem anular na objectivação o que se vê e sente, coloca-se em relação a essas operações (figurar, dizer) uma exigência de humildade: a humildade que vem de, na sua estrita natureza, o homem ser húmus e existir no mundo com os outros, o que significa antes de mais por eles e para eles. Humilde é o desejo que nasce da divisão indecidível entre o que queremos e não queremos, do expressamente pensado com um propósito qualquer e do acaso do pensamento, da errância. A exigência de humildade atravessa tudo o que se vive na sua duração. Por ela é impossível viver sem se inscrever.

Não é no entanto uma cadeira aquilo
que era mobília pobre de um vazio quarto
onde a loucura foi piedade em excesso
por conta dos humanos que lá fora passam,
lá fora riem, mas de orelhas que ouçam
não querem mesmo numa salva rica
um lóbulo cortado, palpitante ainda,
banhado em algum sangue, o «quantum satis»
inquietação, vigílias pensativas,
e sobretudo penetrante olhar
da solidão embriagadora e pura.

Não é, não foi, nem mais será cadeira:
Apenas o retrato concentrado e claro
De ter lá estado e ter lá sido quem
A conheceu de olhá-la como de assentar-se
No quarto exíguo que é só cor sem luz
E um caixote ao canto, onde assinou Vincent.

Uma pintura, como um poema (a pintura de V.G, o poema de J.S), pensa-se, dividindo-se em tematizações que fazem parte do dar forma, mas o escrever ou pintar não vem só daí, vem do nada que se vive e que não é independente dos actos e factos de uma vida, os quais, não sendo reacções mecânicas, ofensivas e defensivas perante outros actos e factos, implicam o sofrer com eles, enlouquecer com eles, quando não passam de sinais da muita arrogância e desprezo pelo mundo.

O inscrever-se, a autobiografialidade da arte, assinalando o morrer de quem escreve, assina com o mundo (a assinatura no “caixote ao canto” é como se assinalasse um túmulo), fazendo do túmulo vazio, que é toda a obra de arte, a prova de um viver, o retrato de «ter lá estado e ter lá sido», não na realidade, mas na invenção. Note-se que Artaud, no seu texto van Gogh o suicidado da sociedade refere exactamente esta dimensão do auto-retrato construído na matéria pictural de vários temas. Diz ele: «Sem literatura, vi a cara de van Gogh chegar-se a mim vermelha de sangue na explosão das suas paisagens» [1].

Note-se agora como no decurso do poema se alterou a visão inicial:
Um nome próprio, um cachimbo, uma fechada porta,
Um chão que se esgueira debaixo dos pés
De quem fita a cadeira num exíguo espaço,
Uma cadeira humilde a ser essa humildade
Que lhe rói de dentro o dentro que não há
Senão no nome próprio em que as crianças têm
Uma fé sem limites porque vão crescendo
À beira da loucura. Há quem assine,
a um canto, num caixote, o seu nome de corvo.
E há cantos em pintura? Há nomes que resistam?
Que cadeira, mesmo não-cadeira, é humildade?
Todas, ou só esta? Ao fim de tudo,
São só cadeiras o que fica, e um modesto vício
Pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?

A descrição começa pelo nome próprio, metonímia do quadro e espécie de cripta onde se guarda o próprio entregando-o à indecifrabilidade. Entre ele e a “fechada porta”, que indica um corte decisivo com a realidade, o cachimbo: três sinais do nada – o do segredo (nome próprio) o do incapturável (cachimbo, metonímia do fumo) e o da perda de referências – que aparecem no resto da estrofe em diversas variações. A imagem de “um chão que se esgueira debaixo dos pés”, cria a sensação física da perda, a qual é acentuada numa vertigem de duplicações e interrogações, dúvidas, com as quais se dá resposta, a resposta da inconclusão.

A afirmação, convicção, coexiste com a dúvida, incerteza: «(…). Há quem assine, a um canto, num caixote, o seu nome de corvo. / E há cantos em pintura? Há nomes que resistam?» Nomes, nem de mártires nem de heróis, mas de revolta, talvez. Será disso que o nome resiste? Será essa a condição do jogo em que se vive sem aplausos porque se não vive de viver nem de saber? Vive-se de dispersar, de deixar que o nada, o vazio, seja o suporte abissal a partir de onde tudo se lê mutuamente. A palavra “cantos”, nos versos transcritos acima, tanto alude à pintura enquanto superfície plana, como à passagem da pintura ao canto, à traduzibilidade e intraduzibilidade entre artes que dão forma a matérias diferentes, como a cor e o som. Artaud designa certas paisagens de van Gogh como “ espécie de cantos de órgão” (op. cit, p.15). Mas virá essa traduzibilidade, da “Grande Obra” enquanto transmutação, como pretendeu Artaud, ou será que, como se pergunta no poema de Jorge de Sena “são só cadeiras o que fica, e um modesto vício pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam? – “modesto”, irrelevante, talvez; “vício”, defeito ou imperfeição grave, uma falha ao padrão. Um defeito irrelevante: nada que se aponte ou reconheça, potência desgovernada.

 

VII


Fidelidade ao nada que se vive será outro nome de poesia, nome do escutar e dirigir-se aos outros, morrendo e renascendo sem o medo infame que move a vontade de poder. Porque a vida não é um fim para si mesma; o mundo é vasto, não existe em si, mas no seu apresentar-se sempre através de uma assinatura, infiel ao instituído por fidelidade ao acontecimento. Essa é a fidelidade ao destino como solidão essencial, outra vida, em que a dor não sendo consolável, seja ligação, pois apenas se trata de responder ao apelo do interlocutor, apelo à impossível atenção que nada visa, à palavra de nada que se dá (de “Fidelidade”, poema de 26/8 de 1956: Diz-me assim devagar coisa nenhuma: / o que à morte se diria se ela ouvisse,/ ou se diria aos mortos, se voltassem).
 

 

1. Antonin Artaud, Van Gogh, o suicidado da sociedade, trad. Aníbal Fernandes, & etc., Lisboa, 1983, p. 35