Os dias 2 e 3 de maio tornaram-se datas imortalizadas pelas telas de Francisco de Goya, ambas no Museu do Prado. "El dos de mayo de 1808 en Madrid o la lucha de los mamelucos en la Puerta del Sol" assinala o início da luta ibérica contra as tropas invasoras de Napoleão. Mais conhecido, "El tres de mayo de 1808 en Madrid o los fusilamientos en la montaña del Príncipe Pío" constitui um dos mais impressionantes testemunhos pictóricos da violência e da brutalidade da guerra. Tomando este como "fonte", escreveu Jorge de Sena o extraordinário "Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya", último poema datado de Portugal, antes de seu exílio no Brasil (e cujo texto, com o quadro e com a bela interpretação de Eunice Munõz, já aqui reproduzimos). Hoje, sob o mote das datas, e das duas telas que as celebram, trazemos a nossos leitores alguns veios da hispanofilia de Jorge de Sena, observada em dois ensaios de Dora Gago e numa pequena antologia da poesia lorquiana, traduzida por Sena. Em "Além-fronteiras: ecos de Espanha na obra de Jorge de Sena", a ensaísta, depois de rápida alusão à poesia e aos estudos críticos, demora-se mais sobre a ficção seniana, sobretudo aquela que focaliza a Guerra Civil de 1936.
“De Espanha nem bom vento, nem bom casamento”, diz a proverbial sabedoria do povo, reveladora apriori de um estereótipo, enraizado num ressentimento histórico.
Com efeito, apesar de toda a herança cultural e étnica, forjada pelos Romanos, enriquecida pelos Visigodos e, posteriormente, transformada pela presença Muçulmana, o país vizinho tem sido concebido como o inimigo histórico, uma ameaça à autonomia e independência nacionais. Porém, a par deste sentimento de desconfiança, surge-nos em muitos autores portugueses a admiração e o reconhecimento das qualidades de Espanha, como sucede, por exemplo, na obra de Miguel Torga, Ferreira de Castro e, neste caso concreto, de Jorge de Sena. Assim, como refere Eduardo Dias, “O português moderno sente-se, contudo, atraído ao nível emocional pela chamada “nação-irmã”, consegue, apesar dos preconceitos herdados, estabelecer com ela uma ligação efetiva. … O fatalismo da identidade ibérica sobrepõe-se, pois, em muitos casos aos resquícios da ancestralidade”(181).
Nesta esteira, a Espanha assume uma presença relevante na obra de Jorge de Sena, cuja imagem é configurada através de múltiplos vetores, que no presente trabalho, restringiremos ao corpus selecionado: Diários, Poesia (alguns poemas de Exorcismos e Metamorfoses) Sinais de Fogo e dois contos (“Grã-Canária” e “Os Salteadores”) de Os Grão-Capitães. Por conseguinte, o motivo desta seleção reside no facto de as obras supramencionadas revelarem uma imagem mais abrangente e completa de Espanha.
Assim, podemos salientar que, como afirma Jorge Fazenda Lourenço (23-24), o autor publicou cerca de 40 artigos e ensaios consagrados à literatura espanhola, abordando autores como Garcilaso, Boscán, Herrera, Góngora, Francisco de la Torre, entre muitos outros. Neste contexto, por exemplo, na obra Estudos de História e Cultura (1967) figura um ensaio dedicado ao amor trágico entre D. Inês de Castro e D. Pedro e outro intitulado “A família de D. Afonso Henriques” que foca as raízes e a dinastia iniciada pelo fundador de Portugal.
Além disso, Sena traduziu 53 poemas de 17 poetas espanhóis, desde Baltasar del Alcázar até Unamuno ou António Machado, tendo escrito, segundo Frederick G. Williams (216), cerca de 43 poemas dedicados direta ou indiretamente a Espanha. Por conseguinte, o escritor tinha plena consciência da importância do conhecimento da cultura espanhola, possibilitadora, igualmente, de uma mais profunda compreensão da cultura, História e identidade portuguesas. Por outro lado, era visível a sua consciência da tendência dominadora e centrípeta de Castela: “Julgamo-nos sempre muito menos hispânicos do que somos, porque, além-Pirinéus e além-Mancha, nos julgam hispânicos castelhanamente.”(qtd.in Lourenço 24).
Por um lado, os registos das visitas presentes nos Diários evidenciam a admiração do autor pelas cidades espanholas visitadas, pela cultura e por todas as artes em geral, uma vez que a Arte se revestia para Sena da mesma importância do ar que respiramos. Por isso, nas suas incursões por Espanha, o Museu do Prado era um dos destinos privilegiados, para além dos teatros e concertos.
Para além disso, a Espanha encontra-se evocada, como já referimos, em alguns dos seus poemas, no romance Sinais de Fogo, cujo pano de fundo é precisamente a Guerra Civil espanhola, e nos contos “Grã-Canária” e os “Salteadores”.
Deste modo, analisaremos, neste artigo, as imagens do país vizinho, filtradas pelo olhar de Sena, contemplando precisamente a sua perspetiva acerca das cidades, da cultura, da Guerra Civil e do povo.
Ressonâncias da Guerra Civil
A obra Sinais de fogo foi escrita entre 1964-65 e depois retomada esporadicamente, em 1970, no exílio, inicialmente no Brasil (até 1965) e, posteriormente, nos Estados Unidos. Este seria o primeiro volume de um grande ciclo romanesco denominado “Monte Cativo” que ficou inacabado. Porém, Sinais de Fogo, embora igualmente incompleto, veio a lume, postumamente, em 1979.
Nesta narrativa, centrada num narrador autodiegético, um jovem chamado Jorge, presenciamos a eclosão da Guerra Civil de Espanha e o seu impacto em Portugal e na vida do protagonista, através de acontecimentos localizados entre julho e setembro de 1936.
Com efeito, a matéria biográfica que constituiu o húmus da ficção é evidente: primeiro, a coincidência entre o nome do narrador autodiegético e do autor, o facto de ele ser também poeta, de pertencerem à mesma geração, tendo o autor 17 anos quando eclodiu a Guerra Civil de Espanha. Além disso, foi na fase da adolescência documentada no romance que o autor principiou a escrever.
Acerca desta projeção biográfica no romance, refere a viúva do autor, Mécia de Sena, no prefácio de Sinais de Fogo:
Tudo era elaborado mentalmente, as figuras iam-lhe surgindo da sua experiência pessoal (real ou virtual)… tal como as conhecera ou imaginara, na transformação do seu conceito de realismo absoluto e dentro das situações que ele mesmo vivera, ou, por essa “transformação estética da realidade”, passara a viver. (20)
Nesta sequência, a autora do prefácio acrescenta ainda que a “chave” para o reconhecimento das personagens reside na inicial do nome que foi mantida, salvaguardando, contudo, uma exceção: Mercedes, cujo nome começa pela letra “M”, não corresponde de modo nenhum a Mécia, que nesta altura, não conhecia ainda o autor.
Relativamente à curiosidade que este romance, de teor autobiográfico, poderia despertar em determinado tipo de público, Jorge de Sena, afirmou, num prefácio que não chegou a ser publicado e que foi citado por Mécia de Sena, no supramencionado prefácio, que “isto são estórias, suficientemente verídicas, para que as imaginações se não libertem, pela porta das evasões, às responsabilidades do real”. (23).
Deste modo, a transmutação da matéria histórica e biográfica para a narrativa é, desde o início, admitida e confirmada pelas palavras do autor. Porém, as fronteiras entre a realidade, a autobiografia e a ficção são muitas vezes ténues e difíceis de delimitar, visto que o real é constantemente transfigurado, no romance, através da imaginação. Por isso, apesar de projetar na obra a sua experiência pessoal da juventude, o escritor efetua diversas amálgamas, combinações e mutações que ficcionalizam essa realidade.
Sinais de Fogo divide-se em cinco partes, centradas em três espaços distintos (Lisboa − Figueira da Foz − Lisboa), permitindo-nos acompanhar três momentos diferentes do protagonista: o seu estado inicial de adolescente, em Lisboa, o seu processo de desenvolvimento e “metamorfose” na Figueira da Foz, durante as férias, e a realização dessa transformação, aquando do regresso a Lisboa, ou seja, ao ponto de partida.
Assim, ainda em Lisboa e na primeira parte da obra, Jorge fornece-nos uma imagem de Espanha que evoluirá, como a sua própria personalidade, ao longo da narrativa:
Para mim, a Espanha era meramente um nome, e a multidão de espanhóis que costumavam veranear na Figueira da Foz, e atroavam com a sua agitação e a sua gritaria nas ruas dos “cafés”. E, no meu tempo, já as espanholas haviam sido batidas, no campo da prostituição, pela concorrência nacional. (54-5)
Nesta sequência, podemos salientar, no excerto supracitado, três vertentes da imagem convencional de Espanha no nosso país: o excesso de entusiasmo, a componente erótica, o olhar irónico sobre o “folclore”. Por conseguinte, o povo espanhol é visto, de forma estereotipada, como demasiado entusiasta. Além disso, no imaginário masculino, as espanholas, associavam-se, sobretudo no século XIX, à sexualidade, sendo admirados os seus poderes sedutores. Por último, surge-nos a vertente do “folclore”, das bailarinas e do sapateado, na linha da Espanha representada de “castanholas” e “pandeireta”.
A mudança da ação para a Figueira da Foz coincide com o eclodir da revolta militar, narrada na segunda parte da obra, no capítulo 5. Assim, nesta cidade do litoral que era amplamente frequentada, como destino de férias, por turistas espanhóis, o impacto da eclosão deste conflito bélico foi profundo. Todos foram apanhados desprevenidos e a adaptação a essa realidade não teria sido fácil, num país em que a ditadura salazarista grassava.
Jorge sente-se perplexo com a reação dos espanhóis que passavam férias na Figueira: “Quando cheguei à Figueira, a estação era um tumulto de espanhóis aos gritos, com sacos e malas, crianças chorando, senhoras chamando umas pelas outras, homens que brandiam jornais, e uma grande massa de gente comprimindo-se nas bilheteiras”(67).
O jovem considera que esta reação é precipitada, pois para este politicamente ingénuo narrador, acostumado a breves e inofensivas “revoluções” portuguesas, aquele facto não poderia assumir relevância. Reflete, por isso, acerca da sua conceção de “revoluções”, considerando que “Uma revolução em Espanha não era uma guerra, nem tinha alemães que entrassem assim na casa de cada um” (67-68). Todavia, acaba por reconhecer que aquela situação afinal seria diferente e mais grave do que ele considerava à primeira vista, e a tensão aumentava cada vez mais. Porém, ao aperceber-se da importância do desenrolar dos acontecimentos e do envolvimento de todos naquele crise, a sua perspetiva individual agudiza-se.
Devido a todas essas vivências novas, constata-se uma súbita transformação no modo como o protagonista vê a Espanha: “E a Espanha… de repente transformava-se numa coisa que era uma data de Portugais de 1640, todos querendo separar-se uns dos outros, ao mesmo tempo que todos, ainda por cima, pretendiam fazer uma revolução comunista”.(105).
Toda a ação decorre num momento particular de crise desenvolvida ao nível individual (passagem de Jorge para a vida adulta) e nacional ou coletivo (o impacto da Guerra de Espanha em Portugal). Deparamo-nos, assim, com três vetores fulcrais em torno dos quais se desenvolve a narrativa: a questão amorosa (centrada na relação de Jorge com Mercedes e nos seus conflitos); a questão política (o narrador vai adotando uma posição perante os acontecimentos), a questão poética (através do nascimento da poesia para o narrador). Deste modo, a convulsão política provocada pela Guerra transfigura-se, no texto, num conflito íntimo, simultaneamente ontológico e literário, visto que o “eu” se transformará num “outro”, através da poesia, que se assumirá como matéria de metamorfose.
Posteriormente, constata-se uma fusão entre o plano coletivo, histórico e político e o individual de Jorge. O protagonista fica assim a saber, através de José Ramos, que a sua amada Mercedes já se havia entregado ao noivo e que ele conduziria o barco que o levaria, juntamente com outros, para combater em Espanha.
Tal facto provoca consternação no narrador que se consciencializa da existência de um destino coletivo e do facto de a sua vida amorosa ser apenas mais um elemento de um gigantesco puzzle, cujas peças se encontram interligadas e interdependentes. Neste caso, para exprimir esta ideia, o protagonista recorre à metáfora do tecido: “E elas haviam sido como aqueles tecidos que se pegam, quando a gente passa, e que arrastamos connosco na passagem.” (235).
Na verdade, o cenário idílico da praia da Figueira da Foz, “locus amoenus” para umas férias repousantes, converte-se no seu oposto, ou seja, num espaço de conflito, num “locus horrendus”. Isto porque a guerra vinda do exterior principia a corromper tudo, a começar pelos espanhóis veraneantes que lutam entre si, obrigando os portugueses a tomarem uma posição.
As implicações na vida pessoal de todas as personagens, principalmente na do protagonista, são evidentes, abalando as suas convicções pessoais e até os comportamentos sociais, pois esta espécie de “descida aos infernos”, possibilita ao protagonista um mais profundo conhecimento da natureza humana e do próprio mundo, que parece virado às avessas: “A Guerra Civil espanhola fizera isso… A vida de ninguém estava em condições de continuar a ser uma paz podre. Não seria também uma paz limpa. Era uma guerra, com tudo o que ela implica de podridão e de lixo.”(313).
Após o desenrolar dos diversos acontecimentos que atiram Jorge para a supramencionada descida aos infernos, num percurso de aprendizagem rápida e “forçada”, como é o caso da partida do barco para Espanha, a separação definitiva de Mercedes e a morte de José Ramos, o narrador consciencializa-se que o seu tumulto interior projeta o tumulto coletivo da época histórica vivida: “O mundo em que eu vivera estalara. Ou estalara a fachada dele. O tumulto da Espanha abrira fundas ravinas nas nossas vidas, a princípio apenas como um terramoto as abre longe do seu epicentro.”(393).
Deste modo, à semelhança do que sucede com os espanhóis, cuja nação se desmorona numa luta fratricida entre republicanos, rebeldes e nacionalistas, também o mundo de Jorge ruiu progressivamente: o fim do amor de Mercedes e a sua situação degradante, o grupo dos seus amigos, afastados pela mentira, pelo ódio e a traição. Além disso, de um modo geral, os portugueses são pressionados a tomar uma posição e, na época, o próprio mundo ocidental encontra-se dividido com a progressão dos governos nazi-fascistas.
Curiosa é também a imagem do povo espanhol que surge veiculada por algumas das personagens da obra, evidenciando-lhes, por vezes, as facetas negativas, numa espécie de “fobia”, ou, mais concretamente numa rejeição estereotipada, (“Os espanhóis, porém, eram uma gente medonha, quem sabe o que fariam?” (68)), enraizada numa contextualização histórica impregnada de rivalidades entre os dois países. Assim, é ironizado o tradicional sentimento histórico dos portugueses face aos espanhóis, através de uma “fobia” que se encontra bem presente na personagem Rodrigues, um dos amigos de Jorge, revoltado pela conduta do seu falecido pai que era espanhol e que o abandonou: “Era proverbial a sua raiva aos espanhóis, que se alimentava de ódio ao conde de Trava, aos Castros da Dona Inês, aos derrotados de Aljubarrota e das campanhas da Restauração, e também da reclamação de Olivença, que sempre exigia, em altos brados, a qualquer espanhol, mesmo criança, que se aproximasse dele.”(72).
Então, Jorge revela a sua discordância perante a opinião da tia que considera que os espanhóis “são uns desordeiros”, acentuando: “Eu não tinha essa impressão: discutiam muito, esbracejavam, mas acabavam aos abraços, com muitas vénias, tratando-se mutuamente de “dons””(78).
Posteriormente, volta a ser pela voz da tia que nos é fornecida uma nova imagem negativa de Espanha, país do qual não gosta, já que “É tudo muito sujo, toda a gente muito mal vestida, e só se veem descampados pela janela do rápido.”(149).
Em suma, a imagem do povo espanhol que transparece na obra, integra-se no imaginário coletivo português da época, encarando o “outro” de forma estereotipada, com alguma desconfiança, e desprezos, historicamente justificados. No entanto, a nível afetivo e simbólico o vínculo a Espanha também é representado, como contraponto a esta espécie de “fobia”, pelo jovem catalão Ramón Berenguer de Cabanellas y Puigmal, que abre a narrativa, representando a rebeldia e o espírito livre de uma geração que acabará inexoravelmente esmagada pela História, mais concretamente pelo conflito bélico. Ramón, que desempenha o papel central na primeira parte do romance, assume-se como um desafio à moderação, um modelo de “quixotismo”, de irreverência e de liberdade de espírito, tanto para Jorge, como para os seus outros colegas do liceu. Neste caso, frisemos que se trata de um modelo oriundo do exterior, estrangeiro, extrínseco à cultura de origem e, além do mais, catalão, o que será significativo também, se relembrarmos os conflitos históricos existentes entre Portugal, Castela e a Catalunha.
Por seu turno, não será despiciendo o facto de, nesta narrativa, espanhóis e portugueses conviverem de forma solidária – aliás, o tio de Jorge esconde em casa dois espanhóis, proporcionando-lhes depois a oportunidade de fuga.
O romance, embora não tenha notórias preocupações históricas, contém referências a factos concretos, como é o caso de: o levantamento militar de 18 de julho que desencadeia a guerra; o acidente que rouba a vida ao general José Sanjurjo, em Cascais, a 20 de julho; o comício de apoio aos revoltosos franquistas e de anúncio da criação da Legião Portuguesa, ocorrido a 28 de agosto, no Campo Pequeno.
Por fim, na última parte da obra, na qual se dá o regresso a Lisboa do protagonista, as referências hispânicas são menos frequentes. Contudo, mesmo no término da narrativa, surge-nos referida a frustrada “Revolta dos Barcos”, cujo objetivo era apoiar a República espanhola. Este episódio, ocorrido a 8 de setembro de 1936, em Lisboa, consistiu numa aparatosa ação levada a cabo durante a Guerra Civil, contra a ditadura portuguesa. A ação, desencadeada pela Organização Revolucionária da Armada (ORA), fundada em 1932 (que publicava o jornal O Marinheiro Vermelho), conduziu à sublevação das tripulações dos navio de guerra “Dão” e “Afonso Albuquerque”pelos marinheiros revoltosos, procurando sair com eles da Barra do Tejo. Após uma intensa troca de tiros travada entre estes e o Forte de São Julião, que causou a morte de dez marinheiros, a revolta fracassou e os sublevados foram presos. Neste âmbito, notamos a desilusão de Jorge relativamente ao facto de a mãe condenar os insubordinados.
No final, o narrador sente-se só, incomunicável, revoltado pela brutalidade com que a sublevação foi esmagada, pelas injustiças, num ambiente de opressão e medo: “Não era que as pessoas fossem coniventes de uma revolução falhada… e temessem denunciar-se com um gesto ou uma palavra. Algumas, por certo, leriam o jornal com o mesmo ansiado prazer de a ordem e a disciplina serem mantidas, que houvera na voz de minha mãe.”(543).
A inscrição deste episódio, no final, acentua o paralelismo entre as atitudes dos dois países ibéricos, acentuando o impacto da Guerra de Espanha em Portugal, que rumava em direção a uma ditadura mais violenta e fortalecida.
Deste modo, em Sinais de Fogo, a Figueira da Foz, cenário maioritário da ação, delineia-se como o espaço onde Jorge descobre o amor, a poesia, sendo, simultaneamente, despertado para a realidade política e social. De certo modo, a poesia vai germinar nele, a partir, precisamente da tensão entre a política e o amor, permitindo-lhe ultrapassar o trauma provocado por uma crise histórica. Aliás, como refere Orlando Amorim, este “não é um romance de guerra, um romance sobre a Guerra Civil de Espanha, mas um romance na guerra, que tem a guerra como contexto e como intertexto”(9). Por isso, a História é representada numa perspetiva interior, no quotidiano.
Aliás, neste contexto, a questão do tempo também se reveste de importância notória, visto que quando o protagonista evoca, através da memória esse verão de 1936, aliado ao seu passado individual surge o histórico, principiando a desenhar-se, com contornos bastante definidos, o perigo da Ditadura, de um autoritarismo violento, prolongado até aos anos sessenta, correspondentes ao tempo de enunciação do romance.
Não obstante, os ecos da Guerra Civil na obra ficcional de Jorge de Sena, não se confinam ao romance supramencionado, evidenciando-se igualmente em dois contos da coletânea Grão Capitães: “Grã-Canária” e “Os Salteadores” (escritos em 1961), que abordaremos seguidamente. Aliás, como nota Jorge Fazenda Lourenço em “Jorge de Sena e a Guerra Civil de Espanha”, o final de Sinais de Fogo parece ter continuidade em “A Grã-Canária” (27).
Ambos os contos, tal como já constatámos com o romance, acabam por ter um fundo autobiográfico, assumindo-se como uma transfiguração e ficcionalização de experiências reais para a literatura.
Aliás, o autor declara no prefácio de Os Grão-Capitães, que:
Tudo aconteceu, ou terá acontecido, quase assim. Neste quase, porém, está toda a distância que vai das memórias à ficção − razão pela qual ninguém pode reconhecer-se, como eu também não, nos acontecimentos ou nas personagens.
Se a matéria de Os Grão-Capitães é direta ou indiretamente autobiográfica − com que amargura às vezes − , a estrutura que lhe é dada é inteiramente ficção.(17).
Deste modo, o autor reconhece, mais uma vez, que a vida real foi o ponto de partida para a criação literária, acentuando o contexto extraliterário onde se situa a sua génese. Todavia, neste caso, a estrutura das narrativas é ficcional, não sendo possível uma identificação concreta dos acontecimentos nem das personagens. Não será pois exagerado considerarmos que, neste caso, o grau de ficcionalização será mais elevado do que em Sinais de Fogo. Nesta esteira, afirma Francisco Cota Fagundes, num artigo intitulado “A transmutação das experiências autobiográficas em “Os Grão-Capitães de Jorge de Sena”, que os contos presentes na coletânea supramencionada “refletem ao mesmo tempo realidade e arte, porque Jorge de Sena eleva o autobiográfico ao nível do representativo (e por vezes ao plano do mítico) através de associações literárias”(350).
É consabido, Jorge de Sena tinha cerca de 17 anos quando eclodiu a guerra civil espanhola, era cadete da marinha e acabou por ser afetado pelo referido conflito e pela simpatia franquista que ditou o endurecimento das regras na Marinha, conducentes à sua demissão, por motivos não muito definidos.
A ação do conto “Grã-Canária” localiza-se no “oceano Atlântico em 1938”, durante a guerra civil. Note-se que, neste mesmo ano, Jorge de Sena realizou a sua viagem de adaptação do curso (cujo relatório integra Diários) com a duração de cinco meses (entre outubro de 1937 e fevereiro de 1938), a bordo do navio-escola português Sagres, tendo visitado Cabo Verde, Angola, o Brasil e também a Grã-Canária. Por conseguinte, o ponto de partida é notoriamente realista e autobiográfico, tal como o domínio franquista existente na altura na ilha – visto que Franco foi comandante militar nas Canárias.
Aliás, no prefácio à edição de 1971, o autor frisa precisamente o teor autobiográfico dos contos daquela coletânea: “ fui… eu quem desembarcou na Grã-Canária. Tudo aconteceu, ou terá acontecido, quase assim. Neste quase, porém, está toda a distância que vai das memórias à ficção – razão pela qual ninguém pode reconhecer-se, como eu também não, nos acontecimentos ou nas personagens”. (“Grão-Capitães”17). Nesta esteira, podemos ainda acrescentar que a ficção pode ser mais autêntica do que a não ficção, e, no caso de Sena, parafraseando Novalis, quanto mais ficcional, mais verdadeiro.
Com efeito, o conto inicia-se com a chegada de um navio escola-português, à ilha dominada pelos falangistas, para solucionar uma avaria que exigia a reparação de um tubo.
Primeiramente, mergulhamos no clima de suspeição, de conspiração e de aleatórias injustiças que marca o ambiente a bordo, entre a tripulação.
Antes do desembarque, é evocada claramente pelo comandante a guerra civil: “A Espanha encontra-se empenhada numa luta de libertação, sangrenta e impiedosa, contra as forças desencadeadas do comunismo internacional, cujos perigos Portugal foi o primeiro a compreender e denunciar.”(Grão-Capitães, 223).
Seguidamente, o comandante dirige-se aos tripulantes, hostilizando-os. Acentua o facto de aquele conflito dizer respeito a todos, evoca o cruel episódio da “Revolta dos Barcos”, provocando por momentos indignação na restante tripulação. Com efeito, este capítulo humilhante da Armada, como verificámos, encontra-se também presente em Sinais de Fogo (224).
Na ilha, o ambiente é verdadeiramente opressivo, revelando uma sociedade hipócrita, decadente, dominada pela artificialidade e intolerância, evidenciados, durante o primeiro contacto da tripulação com a ilha, através da descrição grotesca da aliança entre o fascismo e a Igreja.
Relativamente ao espaço físico, destacam-se as palmeiras, os arbustos, e, de forma um pouco irónica, os “banquinhos”, os “laguinhos” e a catedral demasiado recente ou reconstruída.
Todavia, o mais autêntico contacto com a crueldade e tirania é-nos fornecido quando é referido o facto de a leprosaria, considerada uma importante obra, encerrar os opositores (leprosos de alma) juntamente com os “leprosos da carne”, onde se encontram isolados do mundo, pois, como refere o padre: “De resto, […] leprosos da carne, não estavam lá muitos. […]. La lepra del alma es la peor. No es el comunismo la lepra del alma?”(232).
Seguidamente, o narrador autodiegético vive uma intensa paixão por uma jovem prostituta chamada Assunción, mas que usa o nome de Flora. Ela foi uma vítima da guerra que a atirou para a prostituição, tendo-lhe destruído a família. É evocado de forma acutilante o fuzilamento do avô republicano, a prisão dos pais, a destruição do bairro proletário onde vivia e da sua própria casa, a sua violação pelos soldados, a imagem da carroça que recolhe os cadáveres abandonados na rua. Assim, Asunción assume-se, em toda a sua dimensão trágica, como um símbolo do povo humilde de Espanha, esmagado pela ascendência do regime totalitário franquista.
Antes do percurso pelos bordéis, os marinheiros vão sentar-se num botequim sombrio, cuja descrição nos proporciona uma imagem anacrónica de Espanha, espelhando um país decadente, estagnado, inerte: “Em cima do balcão, havia uma velha máquina, que fora niquelada; e, nas paredes, cartazes de touradas anunciavam matadores eminentes em corridas muitos anos atrás”(232).
Porém, neste contexto, não podemos deixar de insinuar a hipótese preconizada por Eduardo Dias, segundo a qual, esta crítica efetuada à ambiência espanhola é extensiva à sociedade portuguesa. Assim, para além da hostilidade dirigida pelo comandante à tripulação, aquando da chegada a Las Palmas, é pertinente mencionar o ridículo que impregna a entrada do barco no porto: ele vem pomposamente embandeirado em arco, mas… com a roupa branca estendida a secar ao longo das cordas.
Ainda neste contexto, observa Francisco Fagundes em “Eros na ilha de fascistas” que o conto supramencionado procura, à semelhança de outros da mesmo coletânea, denunciar a realidade subjacente à ficção propagandística, aniquilando três mitos do Estado Novo: a figura paternalista (conotada com a tirania), o “pequeno lar feliz”, o mito nacionalístico da herança de um passado glorioso português.
Por seu turno, o texto “Os Salteadores” foi considerado pelo autor, no “PS 1974 ao Prefácio que se segue”o mais “impublicável” de todos os contos da coletânea, “por dizer respeito a um facto cujas linhas gerais chegaram aos meus ouvidos exatamente como o conto narra, e que envolvia a extinta P.I.D.E.”(“Grão-Capitães”13).
O texto tem como referências espácio-temporais Trás-os-Montes, em 1953 e, novamente, evoca um caso relacionado com a Guerra Civil de Espanha: a prisão de 5 guerrilheiros espanhóis pela PIDE, que após terem sido tratados, são entregues à polícia de Franco, na fronteira e, sumariamente, fuzilados. A identificação e proximidade entre as linhas ideológicas dominantes de Salazar e de Franco são evidenciadas: “E sabe você que os espanhóis de Franco, quando as nossas autoridades entregavam na fronteira algum foragido que se escapara para o lado de cá, mandavam depois um cartão para assistir ao fuzilamento?” (160).
A ação da narrativa reduz-se ao diálogo, onde é evocado o episódio supramencionado, numa viagem de táxi, cujas personagens são o taxista (responsável pelo transporte dos derrotados espanhóis para a fronteira) e os dois engenheiros. Neste caso, o engenheiro mais velho considera os fugitivos espanhóis, refugiados nas serranias de Trás-os-Montes, como “salteadores” − daí a própria ironia que impregna o título do conto. Em contrapartida, as outras duas personagens argumentam em defesa da sua atuação. Nesta esteira, como refere Eduardo Dias: “O táxi podia bem representar a sociedade portuguesa: o elemento conservador, mais reduzido em número, espaventosamente apoiando a autoridade e agitando a bandeira do anticomunismo e a maioria quase silenciada que ansiava por um quadro social mais equilibrado” (183). Neste âmbito, o motorista efetua uma espécie de “síntese” entre as duas opiniões díspares ao referir o seu desmaio quando presenciou o fuzilamento dos passageiros por ele transportados rumo à morte.
Este conto realça, mais uma vez, a dimensão humanista de Jorge de Sena, através da denúncia do sofrimento e da degradação provocados por sistemas totalitários geradores de repressão, que desumanizam as suas vítimas e lhes roubam a humanidade.
Em suma, tanto no romance, como nos contos abordados, a imagem de Espanha surge indubitavelmente vinculada à Guerra Civil, ao seu impacto, à crueldade, prepotência, injustiça e hipocrisia vividas na sociedade espanhola, semelhantes às sentidas no Portugal de Salazar, já que, também em termos de tirania, os dois governos se irmanavam. Assim, o modo como é configurado o país vizinho veicula nitidamente a preocupação social de Jorge de Sena, o seu repúdio pelas injustiças e a tirania, denunciando uma realidade oculta pela propaganda fascista.
Podemos concluir que as impressões resultantes das andanças do autor por terras espanholas, o seu envolvimento emocional com a Guerra Civil, revelam a completude do seu conhecimento relativamente a Espanha, à sua evolução política e histórica, e à influência exercida sobre Portugal. Nesta medida, o conhecimento da realidade estrangeira, funciona como modo de auto -conhecimento, visto que a alteridade conduz sempre ao aprofundamento da identidade, já que o “eu” se define face ao “outro” e muito mais nitidamente perante um “outro” que lhe seja semelhante.
Atendendo à relevância dum passado comum, duma herança histórica bebida nas mesmas fontes, não poderemos conhecer Portugal, nem a nossa identidade como portugueses se ignorarmos o país-irmão com quem partilhamos cromossomas históricos e geográficos. Por isso, o “ser português” ou “espanhol” apenas se delineiam concretamente no mapa do “iberismo”, onde ambos se inscrevem, unidos por inúmeros aspetos históricos e culturais comuns, mas também pelas características específicas que os distinguem. Nesta esteira, como nota Maria Fernanda Abreu, o mais importante é a empenhada reflexão tecida pelo autor acerca da identidade portuguesa e hispânica, da sua cultura e das suas gentes. “Gentes que ele sabe diversas, e fruto de diversas fontes que, na sua poesia, cantou. Desde os «airinhos» da Galiza e o Ano Santo em Santiago… às memórias da moura Granada de Frederico”(240).
Em síntese, na senda do caminho da “lusofília” inaugurado por Unamuno, no país vizinho, também Jorge de Sena se revelou como autêntico e genuíno hispanófilo, ultrapassando os sentimentos de indiferença, repulsa ou inveja, historicamente enraizados no imaginário coletivo português, através do conhecimento, da divulgação e da admiração pela paisagem, cultura e Arte espanholas, que poderão ser lidos como um apelo ao estreitamento dos laços ibéricos.
Bibliografia:
Abreu, Maria Fernanda de. “Jorge de Sena: um olhar quixotesco sobre a “velha Hispânia Mater””. Jorge de Sena em Rotas entrecruzadas, (coord.) Gilda Santos, Lisboa: Ed. Cosmos, 1999, pp. 235-240.
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