Há precisos 50 anos, outro ano bissexto, escreveu Jorge de Sena o seu único poema datado de um 29 de fevereiro. Trata-se de “‘Pot-Pourri’ Final”, que encerra o livro Arte de Música, e é logo anunciado no esclarecedor subtítulo: “Trinta e duas metamorfoses musicais e um prelúdio, seguidos de um ‘pot-pourri’, e com um post-fácio do autor”.
A excepcionalidade da data combina com o estranhamento que o poema-epílogo, escrito no Brasil, continua a causar em quem o lê.
Francisco Cota Fagundes sobre ele se debruçou detidamente no seu livro A Poet’s way with music: Humanism in Jorge de Sena’s Poetry, propondo-nos a leitura que a seguir transcrevemos (por obséquio do autor), em tradução de Luciana Salles.
Sena refere-se ao primeiro poema de Arte de Música como um prelúdio. E usa outro termo musical para o título do último poema. O Dicionário Harvard de Música define “pot-pourri” como “Um medley de melodias populares, árias operísticas, canções patrióticas, etc., tocadas em sucessão, conectadas por alguns compassos de introdução ou modulação.” A ligação entre as diferentes peças pode ser temática, cronológica, ou mesmo alfabética, como no ABC-Potpourri de Karl Komsák. Sena emprega uma técnica de pastiche similar. O poema é uma mistura de peças e trechos de alusões musicais, geográficas, literárias e históricas, bem como citações literais (todas identificadas pelos nomes dos autores na nota de Sena ao poema). Sena vale-se de ligações temáticas de uma alusão ou citação para a outra. Todas essas citações são usadas com um significado referencial que se integra melhor nas exigências temáticas do “Pot-pourri Final” do que no sentido que as passagens possuem nas obras de que originalmente fazem parte. Na verdade, os sentidos de cada contexto original são, em sua maioria, pervertidos no poema seniano. Além dessas alusões e citações, o poeta usa palavras em inglês e francês, por vezes criando trocadilhos engraçados; e cria, de um modo que lembra os “Quatro Sonetos a Afrodite Anadiômena”, alguns versos com palavras derivadas do grego antigo. Essa aparentemente improvável confusão está contida numa conversa imaginária entre o poeta e o compositor Carissimi. Este “encontro” e “conversa” é o que, em parte, atribui alguma lógica ao poema, e é nisso que devemos pensar quando tentamos determinar o sentido e a função do que pode muito bem ser o mais hermético, e certamente o mais estranho, dos poemas de Arte de Música. Certamente, a tentação de quem lê este poema, depois de ter lido os demais do conjunto, seria a de repetir a pergunta de alguns críticos, estabelecendo um vínculo com a relação entre os “Quatro Sonetos a Afrodite Anadiômena” e os poemas de Metamorfoses: O “Pot-pourri Final” pertence ao livro? O poeta fez bem em incluí-lo em Arte de Música? Tentarei justificar uma resposta positiva para esta questão.
Giacomo Carissimi (1605-1647) foi um padre conhecido principalmente como compositor de música sacra litúrgica e não-litúrgica, embora tenha composto também música de câmara vocal secular. A referência de Sena a Carissimi, logo no início do poema – “compositor de opereta / para violoncelo de igreja” – é ao mesmo tempo irônica e irreverente. Esta atitude satírica com relação ao compositor e sua música dá o tom do resto do poema. Ele pode ser interpretado como um epílogo a Arte de Música, uma espécie de adeus à música como inspiração poética. Mas é muito mais que isso.
Observando o “encontro” entre poeta e compositor, notamos que o último chega e saúda o poeta. O poeta, além de identificar Carissimi com o comentário citado há pouco, acrescenta como resposta à sua saudação: “—Cameta adinomata apropictéron.” Estas palavras – vagamente derivadas do grego kameta, “labuta”, “trabalho”; adynamos, “sem força”; e apropikteron, que inclui a noção de “rejeitar” – poderiam ser traduzidas aproximadamente assim: “Não quero problemas e rejeito sua oferta.” Que oferta? Primeiro, Carissimi propõe um ato homossexual, o que combina com a ironia com que o compositor é concebido no contexto do poema: Carissimi não é apenas um compositor “de opereta para violoncelo de igreja” mas um homossexual, isto é, um duplo símbolo de decadência (cf. o Satyricon de Petrônio, em que a homossexualidade é usada como símbolo da decadência romana; cf. o conto do próprio Sena, “Os Irmãos”, uma história em parte inspirada pelo Satyricon, em que a homossexualidade é usada como símbolo de um Portugal decadente e fascista). Outras imagens da “decadente” cultura europeia aparecerão mais tarde no poema. Em segundo lugar, Carissimi tenta iniciar uma conversa com o poeta. Este explica:
Quando tudo acabou, para ganharmos tempo
era mister que falássemos. De quê?
Trifles, trifles. Bagatelles. Como
se conta assim a infância que não tivemos.
Esta última declaração, uma referência a uma inexistente ou dolorosa infância, é claramente autobiográfica. Vários aspectos da infância do poeta estão artisticamente documentados no conto “Homenagem ao Papagaio Verde”, de Os Grão-Capitães. Temos assim, e praticamente ao mesmo tempo, verdadeiros elementos autobiográficos (as alusões à infância) e elementos pseudo-autobiográficos (o encontro com Carissimi). O significado destes dois elementos sendo incluídos no poema lado a lado será discutido abaixo. Esta e outras intrusões autobiográficas reais num poema que é, em muitos aspectos, humorístico (em acordo com o caráter de entretenimento leve de um pot-pourri) mostra que Sena encarava “Pot-pourri Final” como um poema essencialmente sério. De fato, percebendo o potencial do poema para ser tomado como farsesco, Sena avisa no posfácio que o poema é apenas “aparentemente farsesco”. A seguir, Carissimi oferece música ao poeta:
Adinomata – e sussurrei, atento
aos dedos que avançavam, música.
Carissimi representa a cultura europeia, especialmente a cultura da música sacra. Outros compositores associados com a música religiosa também são evocados: Mozart e Palestrina, particularmente a Missa Papae Marcelli do último. Este poema é, portanto, um repúdio à cultura que Carissimi simboliza. Mas é também motivado por um senso de saturação da parte do poeta, com relação à cultura em geral e à cultura europeia em particular. Isso contrasta com os outros poemas de Arte de Música, inspirados por uma atitude fundamentalmente reverente com relação à cultura. De certo modo, este poema revive e leva às últimas consequências uma atitude já presente em “La Cathédrale Engloutie, de Debussy”, que o poeta expressava assim: “Música literata e fascinante, / nojenta do que por ela em mim se fez poesia”. O poeta tenta se livrar de um fardo que ele ama e odeia a um só tempo, aceita e rejeita; um fardo que em “La Cathédrale engloutie” ele expressa em parte com as imagens astronômicas “de negros sóis e brancos céus nocturnos”. O contraditório desejo ou necessidade de Sena de atacar e manchar a cultura que ele viveu e amou profundamente é típico também de poemas em outros livros, como por exemplo “Em Creta, com o Minotauro”, em que o poeta se refere à Grécia como “esta merda douta que nos cobre há séculos”.
Depois de mencionar Mozart e Palestrina, há uma transição no poema para uma “tema” não-musical, um verso de Leopardi: “Sempre caro mi fu quest’ermo colle…” Este é o primeiro verso de um poema curto intitulado “L’Infinito” (Canti, 1836), em que Leopardi canta essa “colina secreta” (“quest’ermo colle”) em sua Reconati natal e reflete sobre o eterno e o derradeiro ou as estações da morte (“l’eterno”; “le morte stagione”), enquanto o vento abafa seus pensamentos. Entretanto, nem a filosofia agnóstico-ateísta de Leopardi, tão próxima à de Sena, nem o tema deste poema, que harmoniza com aquela postura filosófica, parecem ter uma função temática importante no poema de Sena. O verso foi provavelmente sugerido pelo nome “Carissimi”, que leva a diversos trocadilhos no poema: Carissimus, Caríssimo, e finalmente Sempre caro... do verso de Leopardi. A próxima referência é geográfica: “Pff… Piazza d’Espagna”. Neste caso, a associação provavelmente fez o percurso Carissimi – Mozart – Leopardi – Itália – Piazza d’Espagna, com a interjeição “Pff” sintetizando a atitude zombeteira, brincalhona, do poeta. É interessante notar que na seção intitulada “Roma” do poema “Ronda Europeia, Nada Sentimental” (Exorcismos, escrito em 1971, ou nove anos depois de “Pot-pourri Final”), a atitude de Sena com relação à Piazza d’Espagna permanece como no poema anterior.
O próximo fio temático no pot-pourri de Sena, possivelmente sugerido pela associação Roma-Império Romano (com a subjacente noção de decadência sempre presente), é o dito latino “Ave Caesar, morituri te salutant”. Estas palavras, que de acordo com Suetônio (Claudius, 21) eram usadas pelos gladiadores, também são citadas, em Inglês, por George Bernard Shaw no segundo ato de seu Andrócles e o Leão (1912). É provavelmente por isso que Sena alude à peça de Shaw no verso imediatamente a seguir ao dito:
Andrócles, então, escuta, escuta,
converteu o leão ao catolicismo.
Romano? Pois se foi em Roma.
Essa referência ao catolicismo – que é, em si mesma, bem irreverente – leva a uma invectiva ainda mais iconoclasta, cujos três primeiros versos culminam em um da “Oração da noite” de Rimbaud (Poésies), poema por sua vez também irreverente em que Rimbaud, em sua típica disposição para o ataque, retrata a si mesmo, furiosamente e sem vergonha, urinando no jardim de um café. A palavra héliotropes do verso de Rimbaud vai reaparecer no poema de Sena (“se o heliotrópio é cucurbitácea?”). A ideia de piazza (cf. Piazza d’Espagna) também será lembrada na forma de uma alusão a Antonio Machado:
… Esqueci a botânica,
pela mesma época em que – la plaza tiene una torre –
descri por completo das noções de posse.
Embora a ligação entre Piazza d’Espagna-plaza (de um poeta espanhol) e Catolicismo-torre possa representar o verso de Machado, La plaza tiene una torre, isto não explica, creio, a referência a posse. A explicação a seguir pode ser arriscada. Obviamente, Sena fala de duas formas de posse. No contexto do “Pot-pourri Final”, refere-se à posse sexual, ou, mais precisamente, homossexual. Mas, num veio mais sério e autobiográfico, Sena está provavelmente aludindo a três outros versos de Antonio Machado, que admirava profundamente e que citou como epígrafe da terceira parte de Perseguição:
No es el yo fundamental
Eso que busca el poeta,
Sino el tú essencial.
Podemos optar por interpretar estes versos como referência precisamente ao oposto da posse, isto é, o poeta não busca a autossatisfação mas o contato com o outro. Ele não possui os outros; ele dá e compartilha. Poderíamos – sem restringir outras interpretações dos enigmáticos versos de Machado – interpretá-los como síntese da filosofia humanística de Sena: sua busca pelo outro e sua preocupação com o humano. Esta interpretação é reforçada por sua citação seguinte: “Nil humani (ou vice versa) a me alienum puto”, de Terêncio. Aqui, contudo, temos o poeta diminuindo a declaração que melhor define sua filosofia. Isso é feito em consonância com o espírito de “zombaria séria” do poema.
Uma série de trocadilhos se segue até que Sena, ainda brincando com a proposta homossexual de Carissimi, cita um verso apropriado (isto é, apropriado para o “encontro” entre o poeta e Carissimi) do Rei Lear de Shakespeare (V, 3): “Abra este botão. Obrigado.” O que surge a seguir é uma das mais lógicas de todas as associações no poema. O verso shakespeariano sendo sobre as últimas palavras de Lear antes de morrer, naturalmente sugere ao poeta a ideia de morte. Por isso Sena cita, para este efeito temático, o verso de Álvares de Azevedo, do poema de mesmo nome, “Amanhã… se eu morrer amanhã”.
A alusão a Álvares de Azevedo – a primeira no poema a uma figura do Novo Mundo, um brasileiro para ser exato – também funciona como um tipo de transição para a despedida entre o poeta, isto é, Sena, e Carissimi:
Addio! O “Mayflower” apita.
Ouvem-se as fanfarras do Novo Mundo (a sinfonia,
feita com temas do Velho). Vai, não percas
a passagem, as estribeiras, a cabeça:
as pradarias esperam-te.
Pasta nelas.
E, para mim mesmo, murmurei: Carissimi!…
O poeta despede-se de Carissimi e do mundo da cultura europeia, especialmente da cultura musical europeia. Mas aqui novamente surge uma alusão autobiográfica especial. Sena menciona o “Mayflower”, o mais famoso dos navios a carregar os peregrinos ingleses para a América em busca de liberdade. Não estaria Sena sutilmente se referindo à própria partida de sua terra natal em busca de liberdade? No contexto da despedida entre o poeta e a cultura europeia, a alusão à Nona Sinfonia de Dvorák representa uma ironia que também se aplica a Sena. Ele não poderia desconhecer isso. Embora a sinfonia de Dvorák receba o título de Sinfonia do Novo Mundo e de fato incorpore canções formadas a partir das melodias dos negros e índios americanos, parte desse material, como bem se sabe, está carregado de cultura musical boêmia, e portanto europeia. E perguntamos: O que é Arte de Música senão uma obra escrita totalmente no Novo Mundo mas com “temas” do Velho? Na realidade, o que é o “Pot-pourri Final” senão um medley composto de alguns “temas” do Novo Mundo mas, em sua maioria, do Velho?
Depois de ter todas as suas ofertas rejeitadas pelo poeta, Carissimi diz-lhe que vá “pastar” nas imensos pradarias do Novo Mundo. Isto é simultaneamente uma alusão à liberdade que aqueles campos permitem ao homem e às inesgotáveis possibilidades que podem proporcionar ao artista. Mas, como no caso da música de Dvorák, os “temas” do Velho Mundo estarão sempre presentes e latentes na poesia de Sena, mesmo quando ele ostensivamente escreve sobre o Novo Mundo. É em momentos assim que o poema de Sena é fundamentalmente autobiográfico e bastante próximo a “La Cathédrale engloutie, de Debussy”. Este tratava do encontro do poeta com a música. O último poema representa, em parte, o adeus do homem à Europa, na esperança de encontrar a liberdade no Novo Mundo; e o addio do poeta à cultura europeia como inspiração poética. O primeiro, isto é, a liberdade pessoal, Sena conquistou até certo ponto e por algum tempo, como as declarações autobiográficas anteriormente citadas mostram claramente. O adeus à cultura europeia era impossível – e era pedir demais.
Creio, entretanto, que essa dimensão autobiográfica do poema apresenta apenas um, e não necessariamente o mais importante, de seus significados. A mais importante função do poema no contexto de Arte de Música é esta: “Pot-pourri Final” é um ato de desmitificação. Sena extraía muita inspiração poética de sua própria vida e personalidade: neste poema ele mistura o verdadeiro e o pseudo-autobiográfico para sublinhar o fato de que toda arte, mesmo que inspirada pela experiência real, é também invenção. Através do livro ele se apresentou como o humanista imbuído de cultura europeia e assumiu uma postura essencialmente reverencial: neste poema ele dispara uma atitude brincalhona contra essa cultura. Ele se inspirou em composições musicais e permitiu que sua imaginação se movesse apenas dentro da órbita daquelas fontes de inspiração: neste poema ele dá carta branca a sua imaginação. Em todos os poemas anteriores tudo tinha uma aura de nobreza e circulava numa esfera elevada: aqui temos um pot-pourri, uma queda da elevação para uma esfera bem mais baixa. O crítico italiano Giuseppe Tavani explicou a tendência de Sena para desmitificar tudo que cruza o seu caminho, nos seguintes termos:
O motivo dominante, obsessivo, é o da desmitificação: a desmitificação das idolatrias sociais e humanas, religião (o que contradiz novamente seu declarado ateísmo), tempo, “progresso civil” e morte ecológica (esta sendo a causa da miséria social e o resultado da arbitrariedade e da coerção política), maternidade (suportada com um impulso de amor-ódio), mitos nacionalistas (Camões). Tudo isso é expresso num tom irônico-sarcástico que caracteriza todos os seus contatos com uma realidade que é desalentadora e banal, com ausência de liberdade, com capitalismo, com uma cultura de lugares comuns.[1]
De maneira nenhuma, no entanto, os comentários precisos de Tavani e o “Pot-pourri Final”, em que tais comentários são extensivamente exemplificados, invalidam o que vem sendo sustentado ao longo deste estudo com relação aos princípios humanistas de Sena e sua concepção da poesia. A natureza paradoxal e desmitificadora de grande parte da poesia seniana constitui, na realidade, um fortalecimento de tais princípios e de tal concepção da arte. Tudo isso significa que para Jorge de Sena nenhuma visão era estática; nenhuma verdade estava livre de conter em si mesma sua própria antítese; nenhuma instituição era sagrada; nenhuma crença era sacrossanta. A estase do pensamento, a entronização de verdades presentes e a divinização de quaisquer instituições são os inimigos mortais do verdadeiro humanismo. “Pot-pourri Final” representa em Arte de Música um exorcismo, uma fuga de tudo – exceto da imaginação poética e da própria liberdade.
Nota:
1. “Jorge de Sena”, Da Pessoa a Oliveira: La moderna poesia portoghese, modernismo-surrealismo-neorealismo, a cura di Giuseppe Tavani (Milano: Edizioni Accademia, 1973), p. 340.