“Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?”
(João Cabral de Melo Neto)
Abro esta comunicação com um breve e necessário elogio à ironia. Quando ingressei nesta universidade, e já lá vão 12 anos, uma das primeiras coisas que aprendi foi que na República não há lugar para poetas. Refiro-me, naturalmente, à República de Platão, e sua construção de um modelo utópico de sociedade em que poetas, por sua inerente característica de absoluta inutilidade prática, presos a um repreensível desejo de mimetizar o mundo real, seriam criaturas indesejáveis, dignas de expulsão. Hoje, aqui estamos reunidos num evento de celebração do centenário da República portuguesa, numa sessão em que me vejo cercada de poetas, falando de poetas. Há que celebrar a ironia.
E é celebrando a ironia que inicio com João Cabral de Melo Neto, o poeta de escrita rítmica que não gostava de música, um texto sobre Jorge de Sena. Em “Dúvidas apócrifas de Marianne Moore”, poema citado na epígrafe, João Cabral inscreve sob voz alheia uma autorreflexão irônica, confissão autobiográfica em que o diálogo, seja com as coisas de que se fala, seja com a escrita de Marianne Moore, surge como veículo propiciador do testemunho. Num mecanismo bastante semelhante ao adotado por Jorge de Sena em sua poesia, Cabral estabelece, através do diálogo com as coisas que seleciona para a sua escrita e com os poetas e artistas que convida para dentro de sua obra por meio da citação, um diálogo consigo mesmo, num sentido socrático-platônico de busca de autoconhecimento, de autoinvestigação através da reflexão no espelho do mundo.
Celebrando ainda a ironia, e agora por meio de sua própria dialética, voltamos a Platão, ainda que relido pela filosofia do romantismo alemão, nas palavras de Márcio Suzuki em seu estudo sobre Schlegel, em que afirma que, “compreendida em seu sentido socrático ou platônico”,
“a ironia é “consciência clara”, inteiramente lúcida (besonnen), pois é a percepção da relatividade da oposição exterior-interior e, portanto, a capacidade de se situar na interface de um e outro: é o ponto de diferença entre ambos. (…) Longe, pois, de ser o aniquilamento do outro, a ironia socrática é a preservação das diferenças em constante aperfeiçoamento mútuo graças ao diálogo permanente com o eu superior e à “paródia recíproca”.”
Essa ironia que é “consciência clara”, ou “ensolarada”, em tradução literal do termo besonnen adotado pelos irmãos Schlegel para defini-la, é uma das marcas fundamentais de uma poesia que se quer em diálogo e se pretende testemunho. Ciente das limitações da comunicação humana, e capaz de afirmar a um só tempo a sua verdade e o seu contrário, respeitando a tensão constante de suas diferenças, a ironia é a forma instável de escrita do paradoxo. Afinal, “tal é o eterno brinquedo da ironia. (…) ela é a única a ter clareza de consciência sobre esse jogo: é a percepção da necessidade, mas ao mesmo tempo da impossibilidade da comunicação total.” Sem qualquer compromisso direto com o riso, livre ou amargo, a ironia que aqui se celebra é a que atua como princípio estrutural da poética de Jorge de Sena, como exercício constante de busca pela comunicação possível, mas contagiosa e dilacerante como a “Lepra” que intitula o poema que lemos a seguir:
A poesia tão igual a uma lepra!
E os poetas na leprosaria
vão vivendo
uns com os outros,
inspeccionando as chagas
uns dos outros.
A definição da poesia como doença, e doença desfigurante, que fere, que causa chagas, que conduz ao isolamento em leprosarias – e cabe lembrar que as leprosarias são as antepassadas dos hospícios e por muito tempo serviram para afastar dos olhos sãos da sociedade não só os doentes do corpo mas também os da mente e, por que não, da alma –, a definição da poesia como algo que marca, indelével e dolorosamente as suas vítimas, é também, ironicamente, uma definição da arte como ponto em comum, capaz de promover o encontro e o diálogo permanente dos que, testemunhas do sofrimento de seus pares, inspecionam as chagas uns dos outros.
Autor de uma extraordinariamente vasta produção intelectual, que compreende ficção, teatro, traduções e uma densa obra crítica, Jorge de Sena é, antes de tudo, um poeta. E é como poeta que, recusando para si a “definição” pessoana, se afirma não como o “fingidor”, mas como a “testemunha”. Diz o poeta que
se o “fingimento” é, sem dúvida, a mais alta forma de educação, de libertação e esclarecimento do espírito enquanto educador de si próprio e dos outros, o “testemunho” é, na sua expectação, na sua discrição, na sua vigilância, a mais alta forma de transformação do mundo, porque nele, com ele e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das idéias aceites, dos hábitos sociais inconscientemente vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos. Como um processo testemunhal sempre entendi a poesia, cuja melhor arte consistirá em dar expressão ao que o mundo (o dentro e o fora) nos vai revelando, não apenas de outros mundos simultânea e idealmente possíveis, mas, principalmente, de outros que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar a que o sejam de fato. Testemunhar do que, em nós e através de nós, se transforma, e por isso ser capaz de compreender tudo, de reconhecer a função positiva ou negativa (mas função) de tudo, e de sofrer na consciência ou nos afetos tudo (…).
Contrária à posição algo divina de unidade perfeita desdobrando-se em várias unidades perfeitas até a estática onipresença ou a onipotência criadora de um poeta-fingidor que se faz poetas, a condição de quem adota o testemunho, conservando sempre “a consciência concreta de estar no mundo e ser-se, pelo menos no exprimi-lo e portanto criá-lo em poesia, responsável por ele” , sendo sempre múltiplo em si mesmo numa “unidade” imperfeita e impossível, em constante movimento de travessia e transformação, num esforço continuado de “compreender tudo, reconhecer tudo, e sofrer na consciência ou nos afetos tudo”, esta é a condição que se desdobra do signo do diabo. Sabendo-se veículo de permanente metamorfose, a poesia-testemunho de Sena é feita de “expectação e vigilância”, mas também de tentação, de tentativa, de busca pelo que o mundo revela, por outros mundos possíveis, por outras linguagens necessárias. É uma experimentação sensual e sensorial do mundo, num modo que só ao diabo seria possível, já que o Deus que é “Todo e Uno” não costuma se misturar à suja matéria de sua criação.
Com um olhar analógico capaz de traduzir o testemunho do mundo expresso por outras linguagens, o espaço da abertura, do intervalo entre uma e outra passa a ser palco de um exercício de transfiguração poética em que o diálogo intersemiótico produz composições críticas e elementos oriundos de sistemas lingüísticos distintos se aproximam não apenas no nível da significação mas também, em alguns casos, no âmbito morfológico, no plano mais evidente da potência significante. A poesia passa a atuar como espelho de outros espelhos, de outras formas de apreensão do mundo e de transformação do inefável em testemunho.
Seja nas Metamorfoses, em Arte de Música ou em poemas espalhados por toda a sua obra, Jorge de Sena convoca através de sua escrita, ainda que não em proporções igualitárias, se não todas as artes, ao menos um grande número de manifestações possíveis. Música, pintura, escultura, arquitetura, fotografia, cinema, bem como a própria literatura, são constantemente provocadas e invadidas pela poesia seniana. O diálogo de Sena com as artes é uma reunião entre as testemunhas para o aprendizado mútuo de suas dores, diálogo em que o poeta busca reconhecer a particularidade de cada linguagem, penetrar profundamente em cada uma delas, “a fim de emergir como um observador de arte [e do mundo] transformado” (KLEE, 2001, p.18) e disposto a experimentar essas coisas na poesia.
Propondo uma produção poética que, como metamorfose incompleta, em constante processo de transformar-se de amador em coisa amada, permaneça em suspensão, ocupando o intervalo de exílio entre poesia e outras artes, Sena demonstra o mesmo desejo de, não apenas pintando quadros por letras mas com elas também compondo música e projetando arquiteturas, dar a ver aos outros o invisível por trás das frestas do mundo, ou, como escreve em “La cathédrale engloutie, de Debussy”, “de impor aos outros a visão profunda, / não a visão que eles fingem, / mas a visão que recusam”.
Se a poesia é mesmo “tão igual a uma lepra”, doença que faz com que suas vítimas se despedacem aos poucos, num processo que é de mutilação, mas também de expansão, “mais cacos do que havia louça no vaso”, fragmentos que se espalham, a poesia como uma doença grave, contagiosa e que condena ao isolamento social, ao confinamento na leprosaria, pode ser lida como qualquer forma de arte, como qualquer mecanismo que permita ao indivíduo converter-se em elemento que, deslocado para a margem do mundo, atue como testemunha com distanciamento crítico necessário e visão privilegiada. Como a loucura, inicialmente também aprisionada em leprosarias, a poesia, compreendida em seu significado original de criação, contamina suas “vítimas” com uma ambigüidade fundamental: o domínio de uma espécie de clarividência, de entendimento aumentado do real, e a incompetência comunicativa, o descrédito que acompanha o discurso de quem anuncia o invisível. Como a lepra, gera chagas em seu portador, feridas imensas, dor incurável que pode culminar no desmembramento físico ou no despedaçar de uma identidade que se deixa repartir pelo mundo em versos, em quadros, em objetos que tentem transmitir a outros a doença que os produziu.
Inspecionar as chagas dos outros é o exercício da escrita seniana. O que vale para outros artistas, mas também para objetos, testemunhas silenciosas de criador desconhecido. Com o olhar dividido entre arte e história, a transfiguração poética de objetos evita que sejam esquecidos, confere novos sentidos através da investigação de seu sentido original, e transforma em virtude as mutilações e o desgaste que tenha sofrido.
A mutilação de uma das patas, por exemplo, é um dos atrativos que transformam uma gazela de bronze em matéria poética, interpretada e imortalizada pela escolha de Sena, que apresenta “A Gazela da Ibéria” como poema inicial das Metamorfoses.
Suspensa nas três patas, porque se perdeu
uma das quatro, eis que repousa brônzea
no pedestal discreto do museu.
Ergue as orelhas, como à escuta, e os pés
são movimento que ainda hesita, enquanto
o vago olhar vazio se distrai
entre os ruídos soltos da floresta.
Há muito as árvores caíram. Há
perdidos tempos sem memória que
morreram as aldeias nas montanhas
e pedra a pedra se deliram nelas.
Há muito tempo que esse povo – qual? –
violado foi por invasões, e em sangue,
em fogo e em escravidão, ou só no amor
dos homens que chegavam em navios
de longos remos e altas velas pandas
se dissolveu tranqüilo, abandonando
os montes pelos vales, a floresta
pelas escarpas onde o mar arfava
nas enseadas mansas e nas praias,
e as fontes límpidas por rios que,
entre a verdura, sinuosa iam.
Há muito, mas esta gazela resta,
com seu focinho fino e o liso torso
e o peito quase humano. Acaso foi
a qualquer deus oferta? Ou ela mesma
a deusa foi que oferenda recebia?
Ou foi apenas a gazela, a ideia,
a pura ideia de gazela ibérica?
Suspensa nas três patas se repousa.
Talvez correndo, talvez caminhando lentamente, a gazela vem em nossa direção há muito tempo, desde o século VII ou VIII antes de Cristo. Aparentemente originária da Ibéria, hoje mora em Londres, no Museu Britânico, cercada por muitas outras criações humanas eleitas por Sena como objeto de transfiguração poética. Sendo um monumento em potencial, sugere à imaginação do poeta toda uma época, um povo obrigado a fugir por montes e vales como uma gazela assustada, uma história de vítimas que, como tal, não deixariam outro depoimento ao discurso da História além da pequena escultura que, contudo, poderia ser um ídolo, uma divindade ao redor da qual outro povo, de outra casta, se reuniria para celebrar a vida, ou, longe disso, apenas um animal registrado nas sutilezas de sua movimentação natural, com suas orelhas erguidas, atentas aos sons da floresta, e patas hesitantes no momento que antecede o primeiro passo. No museu que guarda a célebre Pedra da Roseta, objeto responsável pela tradução do mundo antigo, não há filas de turistas ávidos por fotografar uma escultura de gazela. Daí a necessidade de convocá-la a, por meio da poesia, dar o seu testemunho, deixar-se também traduzir.
Em seus versos curtos, ágeis como um povo em fuga, como um passo de gazela; cheio de dúvidas e interrogações como o historiador que busca uma época imprecisa entre VII ou VIII a.C., como as orelhas atentas e o passo hesitante de gazela; solene e simples como uma escultura brônzea que se ergue num pedestal porém discreto de um museu em que pedaços de esfinge egípcia e de colunas gregas são igualmente por ela contemplados com seu olhar vago e vazio de gazela na floresta, o poema faz da Gazela da Ibéria uma deusa, uma oferenda, uma metáfora, uma gazela, uma testemunha sob interrogatório, dialogando com alguém que deseja conhecê-la e traduzi-la.
Vítima da lepra, da poesia, a gazela mutilada tem suas chagas inspecionadas pelo poeta, como testemunha de suas dores em comum, como espelho que permite enxergar as suas próprias feridas e mutilações. Está a gazela para Jorge de Sena como Marianne Moore para Cabral, e talvez haja na seleção dessas testemunhas, mutiladas ou não, um falar de mim, de nós todos aqui reunidos, falando de poetas, de feridas, de repúblicas, de utopias, de ironias, de nós mesmos.