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Conversas com o poeta: Sena entrevistado no Brasil

 Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.

(Jorge de Sena, “Em Creta com o Minotauro”)

 

A relação de Jorge de Sena com o Brasil data de seus tenros anos, através das páginas de livros encontrados na biblioteca da família; mas com o contato físico com a terra terá início a 23 de novembro de 1947, quando, ainda como cadete da Marinha Portuguesa, aporta na cidade de Santos. Vinte e dois anos mais tarde, em agosto de 1959, Sena chega ao Brasil, à Bahia, a fim de participar do IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, e, pouco depois, fugindo do opressivo regime salazarista e dos temores que o fizeram sentir-se exilado dentro de seu próprio país, aceita o convite para colaborar na formação de cabeças pensantes na universidade brasileira, entrando como Professor para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, há pouco inaugurada no interior de São Paulo. O poeta buscava no Brasil, segundo palavras de Mécia de Sena, aquela liberdade de viver e expressar-se que lhe era indispensável e não havia na pátria (SENA, Mécia de, 1999, p 15), a exemplo de, entre outros, Fidelino Figueiredo, Rodrigies Lapa, Adolfo Casais Monteiro, Joaquim Barradas de Carvalho e Fernando Lemos.
Um depoimento do escritor, logo após sua chegada, bem demonstra o importante papel que o país representava para os intelectuais portugueses naquele momento:

“O Brasil continua a ser um país mítico em Portugal. Foi o mito da fortuna em pouco tempo, hoje é o mito de uma liberdade que fala português […] Conhecê-lo, compreendê-lo e amá-lo é outra coisa, e mais difícil. Eu, que sempre procurei conhecê-lo e compreendê-lo, inicio agora a minha aprendizagem de amá-lo.” (SENA, 1959)
Os frutos dessa liberdade em verde e amarelo podem ser constatados em sua obra: de 1959 a 1965, período mais fértil de sua trajetória, o poeta dedicou-se intensamente a seu ofício de escritor, além de atuar como crítico literário, pesquisador e professor universitário – carreira [esta] para a qual estava excepcionalmente vocacionado e em Portugal não lhe dariam (SENA, Mécia de, 1999, p.15).
Reflexo da possibilidade de se expressar livremente é o conjunto de cinco entrevistas concedidas por ele nessa altura a periódicos de destaque no Brasil. Dentre os temas abordados, alguns têm especial relevo, como o das circunstâncias deste exílio, o da situação político-econômica portuguesa no momento, o do papel social da literatura e da arte, além de suas impressões sobre a Literatura Brasileira. E, sem dúvida, estas entrevistas atestam mais uma vez a íntima relação que se observa entre a vida e a obra de Jorge de Sena.
Data de agosto de 1959, mês de seu desembarque, a primeira entrevista no Brasil, concedida a Paulo Carvalho e publicada no jornal carioca Tribuna da Imprensa, sob o título Jorge de Sena não crê em poesia concreta: só em concretistas (SENA, 1959). Como motivação, o fato de ter sido Sena o relator de uma tese sobre o Concretismo no recém-realizado Colóquio na Universidade da Bahia. Sobre essa escola, tão discutida no momento, opina: pode ter um esforço meritório no sentido da renovação da linguagem poética. Sua realização tem sido […] insatisfatória, talvez por pretender ser uma criação em si mesma, e não uma crítica da criação (SENA, 1959). Tal comentário talvez tenha levado em conta tanto a alegada neutralidade política da Poesia Concreta, quanto a forte ligação do movimento com a revista portuguesa Tempo Presente, declaradamente fascista, segundo palavras do entrevistador. De todo modo, deve-se salientar que, nesse auge do movimento concretista, os nomes de escritores como Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos circulavam entre os poetas portugueses de vanguarda.
Em síntese, Sena procura deixar claro na entrevista que não é contrário àquele movimento, resistindo, contudo, a aceitar uma poesia que não atue como veículo de crítica social. E certo é que o escritor, talvez por residir no Estado de São Paulo e estar relativamente próximo do grupo acabou por adotar algumas de suas propostas, conforme se observa em seu livro de poesias Seqüências (SENA, 1980), onde busca conciliar aqueles princípios de valorização do corpo do texto e de reestruturação semântica com a poesia de cunho político. Mas o maior exemplo dessa presença concretista na poesia de Jorge de Sena localiza-se nos Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena (SENA, 1989), publicados em 1962 na própria revista Invenção – plataforma histórica do grupo paulista – antes de serem inseridos como grand finale no livro Metamorfoses.
Depois daqueles comentários, mas ainda refletindo sobre a Literatura Brasileira, Sena lamenta o desconhecimento generalizado que esta sofre em seu país e refere-se a Guimarães Rosa como nome que provavelmente nunca se escreveu em Portugal. Por oportuno, vale lembrar o quanto Sena, tempos depois, já como professor universitário em seu exílio nos estados Unidos, virá a empenhar-se na valorização e difusão dos escritores brasileiros.
Mais adiante, enfatiza o surto excepcional da literatura de mulheres observável em sua terra naquele momento. Também merece ênfase – nessa e nas demais entrevistas concedidas durante o período em causa – a defesa do comprometimento social que a literatura e o escritor devem ter. logo nesta primeira entrevista, Sena demonstra a grande lucidez com que vê a literatura como veículo de esclarecimento social, e a firmeza com que trata a situação política portuguesa, a qual será abordada de forma cada vez mais dura pelo escritor.
A matéria intitulada “Jorge de Sena (crítico e poeta) no Brasil” (SENA, 1959), publicada no Jornal de Letras de novembro de 1959, retoma pontos da entrevista anterior, como se pode notar na seguinte avaliação:

“O romance para ser grande tem que ser uma visão da vida que implique tanto os valores literários como os não-literários. Mas não se trata, como pensam muitos, de uma transposição da vida, vista sob um ângulo determinado. O que conta realmente é a criação global de um mundo […]. Creio até que se pode definir o romance como a objetivação de uma vivência em seu complexo social.” (SENA, 1959).

Aborda ainda questões complexas como o intercâmbio cultural luso-brasileiro e o desenvolvimento da literatura em Portugal. O autor considera que apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelo país […] dados os fatores especificamente internos [a evidente crise político-econômica] o público começa a tomar consciência do verdadeiro papel social da literatura (SENA, 1959). E no que tange a esse papel social da literatura, Sena acreditava haver naquele instante em seu país, uma aguda consciência política por parte dos melhores escritores (SENA, 1959).
Declarações assim bem comprovam como o exílio no Brasil representa uma enorme transformação em sua vida: antes tolhido pela censura salazarista, no novo país frui a liberdade de poder analisar, criticar, denunciar.
Nas entrevistas subseqüentes, Sena mantém esse discurso de conscientização do valor da literatura e dos escritores frente aos problemas políticos vivenciados por Laís Corrêa de Araújo, do Estado de Minas. Na matéria intitulada “Conversa com o escritor”, Sena considera que a Literatura Portuguesa, naquela década, buscava apurar um sentido de dignidade, elevando o nível anterior. Já a Literatura Brasileira, a seu ver, atravessava uma fase de indecisão, na qual transitavam figuras universais como Guimarães Rosa e novos nomes, ainda à procura de sua identidade artística. Indagado a respeito da sua vinda para o Brasil, o escritor confirma dever-se ao convite para participar do já referido congresso em Salvador. Todavia, confirma que os motivos políticos foram determinantes para que decidisse permanecer. Aliás, ainda no tópico da política portuguesa, Sena manifesta sua grande apreensão sobre a guerra que assolava as colônias em África no momento, particularmente Angola. Num esforço de síntese, além de traçar um panorama político e social do Portugal de então, detém-se no panorama cultural que, na sua ótica,

“é constituído pelos escritores ou intelectuais da oposição ao regime (declarada ou tácita) e por mais alguns que evitam pronunciar-se (ou até pactuam) por cobardia e medo ou por inconsciência política. O regime de Salazar não tem a seu serviço nenhum intelectual de categoria ou verdadeiro e integral respeito.” (SENA, 1961)

Deve-se recordar que 1961 é um ano de grande ebulição política, à qual o escritor não poderá ficar alheio: em Portugal, o eclodir da Guerra Colonial, que, treze anos mais tarde, acarretaria a queda do regime salazarista e o fim do Império Ultramarino; no Brasil, a renúncia de Jânio Quadros e a consequente posse do Vice-presidente João Goulart, comprometido com interesses ditos esquerdistas, seria o estopim para um período de turbulência política que culminou no Golpe Militar de 1964. Como se sabe, será a nova situação política brasileira a causa do segundo exílio de Jorge de Sena.
No decorrer da entrevista, o escritor anuncia para o mesmo ano, a publicação em Portugal de uma coletânea de ensaios e de um novo livro de poemas – referindo-se certamente ao elogiado Metamorfoses. Já no Brasil, planejava editar Os Grão Capitães, uma coletânea de contos que não seria possível lançar em Portugal pela violência da temática e da linguagem (SENA, 1961), uma vez que, na sua avaliação, a obra continha algumas coisas do ponto de vista político […] pretendem ser de degradação da sociedade portuguesa (SENA, 1961) . Contudo, o projeto teve de ser protelado e a obra só foi lançada em 1976, em Portugal.
Em sua quarta entrevista publicada no Brasil, em julho de 1963, ao jornal Notícias Literárias (SENA, 1963), o escritor divulga seu livro A literatura inglesa (SENA, 1963), recém-lançado pela Editora Cultrix de São Paulo (e só postumamente publicado em Portugal). No quadro das grandes literaturas ocidentais, Sena enaltece a Inglesa julgando não haver qualquer outra que ofereça uma tão extraordinária continuidade de autores […] simultaneamente nacionais e universais (SENA, 1963); e, numa aproximação com as literaturas de Língua Portuguesa, comenta:

“A literatura inglesa é culturalmente, uma escola de liberdade e de dignidade, sendo, ao mesmo tempo, um correlativo a várias coisas que prejudicam as literaturas de língua portuguesa, como a presunção dos gênios inspirados e analfabetos, ou a petulância da pedantaria crítica.” (SENA, 1963)

A propósito, sublinhe-se que o interesse de Jorge de Sena pela Literatura Inglesa, que remonta de sua juventude, será uma constante em sua obra, numa declarada anglofilia que ainda não era comum entre os intelectuais portugueses da sua geração. Além da obra agora publicada, resultado de vinte e cinco anos de pesquisas, iniciadas com a tradução comentada de História da Literatura Inglesa, de A. C. Ward, vale lembrar a coletânea, de cartas e conferências, Inglaterra Revisitada.
Em fevereiro de 1965, o jornal O Globo, do Rio de Janeiro, publica a sua última entrevista brasileira (SENA, 1965, P.9), conduzida por Alexandre Eulálio, cujo motivo central é a lírica camoniana, em virtude da tese de livre-docência que Sena há pouco defendera, com distinção e louvor, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, para onde se transferira em 1961. A tese Os sonetos de Camões e o soneto quinhentista peninsular é defendida pelo autor como uma revisão do cânone de autoria dos sonetos atribuídos a Camões ao longo dos séculos, com base em critérios inovadores, a que chegou depois de longo e intenso convívio com a obra do poeta.
Sobre essa pesquisa e mais a enorme produção ensaística de Sena, o jornalista e intelectual Alexandre Eulálio alerta o leitor para o fato de que Jorge de Sena, Engenheiro que [em seu país] exercia a profissão, ao mesmo tempo em que participava de modo intenso da vida artística portuguesa, só se poderia dedicar de modo completo às letras desde que – naturalizado brasileiro – ingressou no nosso magistério universitário. (op. Cit.)
Nesse ano, Sena tinha no prelo os contos de Novas Andanças do Demônio e o livro de poemas Segundas Metamorfoses, afinal publicado depois com o título de Arte de Música. Escrevia ainda o romance Sinais de Fogo, o qual definiu como

“[…] um magno romance sobre a evolução política e moral da minha geração, que começa com a Guerra de Espanha e termina com a bomba atômica. [Sinais de Fogo] pretende ser ao mesmo tempo um testemunho e documentário de uma geração, além do levantamento moral e ambiental de uma consciência em situação.” (SENA, 1965, p.9)

As ações desencadeadas pela ditadura militar, que dirigia o Brasil desde o Golpe de 1964, trariam de volta ante seus olhos as memórias indesejáveis do período em que viveu em seu país sob a égide salazarista. A nova condição política brasileira foi, indubitavelmente, a causa mais próxima para que, em outubro de 1965, Sena partisse com a família para os Estados Unidos. Nas palavras de Carlos Drummond de Andrade,

“Não soubemos conservá-lo connosco, nem sequer chegamos a conhecê-lo na plenitude de seu espírito. Foi um professor que passou pelo Brasil, de 1959 a 1965. Mas que sonhou em dar ao Brasil, através da língua portuguesa, uma situação de prestígio na literatura mundial. Se não o conseguiu, não foi por omissão.” (ANDRADE, 1978).

Sena deixou-nos um legado inestimável, não somente pelo volume e qualidade da obra que produziu, inclusive no Brasil, mas pelo alto senso de dignidade com que procurou conduzir sua vida. As entrevistas aqui apresentadas só o ratificam, pois, apesar de pouco numerosas, são o reflexo do muito que pensou e do muito que se Lê nas incontáveis paginas que assinou.

 
Referências bibliográficas:
ANDRADE, Carlos Drummond. Jorge de Sena, também brasileiro. In Jornal do Brasil, Rio de janeiro, 8 de dezembro de 1978.

SANTOS, Gilda (org). Jorge de Sena em rotas entrecruzadas. Lisboa: Cosmos, 1999.
SENA, Jorge de. A lírica de Camões será reeditada em novas bases pelo escritor Jorge de Sena. Entrevista a [Alexandre Eulálio]. O Globo 16 Fev. 1965.

_______. Conversa com o escritor. Entrevista a Laís Corrêa de Araújo. Estado de Minas 27 Ago. 1961.

_______. Inglaterra Revisitada (Duas Palestras e Seis Cartas de Londres). Lisboa: Ed. 70, 1986.

_______. Jorge de Sena (crítico e poeta) no Brasil. Jornal de Letras, Novembro de 1959: 8. Rpd. Parcial, como Jorge de Sena no Brasil, em Correio do Ceará 18 Nov. 1959.

_______. Jorge de Sena não crê em poesia concreta, só nos concretistas. Entrevista a Paulo Carvalho. Tribuna da Imprensa, 26 Set. 1959.

_______. Uma escola de liberdade e dignidade: Jorge de Sena fala sobre a literatura inglesa. Notícias Literárias, São Paulo, Jul. 1963.

_______. A Literatura Inglesa: Ensaios de interpretação e de história. São Paulo: Cultrix, 1963. 2ª ed. Revisada por Mécia de Sena: Lisboa: Cotovia, 1989.

_______. Arte de Música: Trinta e Duas metamorfoses Musicais e um Prelúdio, seguidas de um “Pout-Pourri”, e com Postfácio do Autor. Lisboa: Moraes, 1968.

_______. Novas Andanças do Demónio. Lisboa: Portugália, 1966.

_______. Poesia II. Lisboa: Ed. 70, 1989.

_______. Poesia III. Lisboa: Ed. 70, 1989.

_______. Seqüências. Lisboa: Moraes, 1980.

_______. Sinais de Fogo. Lisboa: Ed. 70, 1979.

SENA, Mécia de. Mensagem. In SANTOS, Gilda (org.). Jorge de Sena em rotas entrecruzadas. Lisboa: Cosmos, 1999.

WARD, A.C. História da Literatura Inglesa. Lisboa: Estúdios Cor, 1960.

 

* Flavia Tebaldi é Mestre em Literatura Portuguesa pela UFRJ e atualmente cursa o doutorado na UFF, ainda com pesquisa sobre a obra de Jorge de Sena.
Texto publicado em Gilda Santos, org. Jorge de Sena: Ressonâncias e Cinquenta Poemas, Rio, 7Letras, 2006, p. 26-31.