1. A sucessão de D. Sebastião: uma história trágica
D. Filipa – Sempre vos vi meu rei. Quando morreu,
nesse desastre, o outro…
Nunca o nascimento de um príncipe em Portugal tinha sido tão desejado e esperado como foi o de D. Sebastião.
O príncipe D. João, filho de D. João III, morreu infante em 1553, comprometendo a herança da coroa por não deixar nascido nenhum herdeiro. Porém, dois meses depois da morte do infante, a princesa viúva, a infanta espanhola D. Joana, filha de Carlos V, imperador da Alemanha, deu à luz o príncipe ansiosamente esperado pela nação inteira como garantia de continuidade da dinastia portuguesa. Era o dia 20 de janeiro de 1554, e o príncipe recebeu o nome do santo do dia, Sebastião, e o cognome de Desejado.
Quando D. João III morre, em 1557, o novo rei tem apenas três anos. Fica como regente do trono sua avó, Catarina, de 1557 a 1562 e, depois, seu tio-avô, o Cardeal Infante D. Henrique, até 1568. Nesse ano, inicia-se o reinado pessoal de D. Sebastião. Era não só o rei de Portugal, mas também o único sobrevivente dos onze descendentes legítimos de D. João III. Repousava sobre o jovem rei uma tremenda responsabilidade. No entanto, revelando-se, desde a infância, física e mentalmente doente, e abominando a idéia de se casar, D. Sebastião fadava-se a não representar mais que uma curta preparação para o advento de uma nova dinastia: situação bastante perigosa diante da força e da importância que adquiria um neto de D. Manuel, o rei da Espanha, Filipe II.
Dos sonhos fantásticos de conquista do Marrocos, do sentido de irrealidade desse Galaaz casto, cercado de aduladores e religiosos imbuídos da idéia de uma cristandade triunfante e dominadora, decorreu o desastre de Alcácer Quibir, no trágico mês de agosto de 1578.
Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro
Mas sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.
Fernando Pessoa
Desaparecido aos 24 anos o jovem monarca, sobe ao trono seu tio-avô, o Cardeal Infante D. Henrique, com 66 anos, velho e alquebrado. Não reinaria por longo tempo e não tinha filho que lhe sucedesse. Seu reinado foi um curto período, o suficiente para se proporem as candidaturas ao trono. Nenhum descendente de D. João III. Todos remontavam suas pretensões a D. Manuel I, o Venturoso.
Na linha masculina, do infante D. Luís, duque de Beja, que nunca se casara e morrera em 1555, havia um filho, dito ilegítimo, de nome António; do infante D. Duarte, a filha Maria, duquesa de Parma, deixara um filho, Ranúncio, futuro duque de Parma, um bisneto de D. Manuel, portanto; a outra filha de D. Duarte era Catarina, duquesa de Bragança.
Das duas filhas de D. Manuel, Isabel era casada com Carlos V, e seu filho, Filipe II, era rei de Espanha. Da outra, a infanta Beatriz, viúva, desde 1553, do duque de Sabóia, havia Manuel Felisberto, o novo duque de Sabóia.
A pretensão de D. Catarina tinha a seu favor o fato de ser a duquesa casada com um português, João, duque de Bragança.
D. António, filho do duque de Beja, tinha a vantagem de ser o único filho varão dos filhos de D. Manuel. Seria, pois, tranqüila sua escolha, não interviessem particularidades de sua origem: sua mãe, Violante Gomes, era uma mulher do povo, que, além da suspeita de ser cristã-nova, era conhecida pelos apelidos de Pelicana e Pandeireta, que não a recomendavam. O filho do infante e da Pandeireta foi educado pelos cônegos regrantes de Santo Agostinho, em Coimbra, completando sua formação com os jesuítas de Évora. Sucedeu a seu pai como Prior do Crato, condição em que se indispôs com seu tio-avô, o Cardeal-Rei. Tanto fez D. Henrique, que o Prior deixa Portugal, exilando-se na Espanha.
Ao se iniciar seu reinado pessoal, D. Sebastião mandou chamar D. António de volta à pátria e confiou-lhe missões militares no norte da África, em 1568 e 1571. Governador português de Tânger em 1574, participou da batalha de Alcácer Quibir, onde caiu pri-sioneiro dos mouros, mas foi logo resgatado.
O Cardeal-Rei não deixava de odiar o sobrinho-neto, que não tardou a se desterrar de novo.
Ao se colocar a questão da sucessão, o Prior logrou ser declarado filho legítimo, aduzindo documentos e testemunhos de que seus pais se haviam casado secretamente. D. Henrique contestou a declarada legitimidade de D. António e obteve uma contra-sentença de ilegitimidade para o sobrinho, privando-o de todas as honras e tenças que tivesse na corte, e ordenou, ainda, que saísse de Portugal. D. António atravessou a fronteira rumo à Espanha, mas logo retornou.
Gozava o Prior de certa popularidade, uma vez que o povo rejeitava a idéia de um rei estrangeiro e via nele o único candidato capaz de desafiar o poder de Filipe II, desde sempre o concorrente mais forte. Se lhe faltavam argumentos legais, Filipe possuía força e determinação para os suprir.
Os seus embaixadores, enviados e espias, juntamente com subornos e ameaças militares, fizeram um excelente trabalho em convencer, ameaçar e comprar os elementos dirigentes da sociedade portuguesa.[1]
Nas cortes realizadas em Almeirim e Santarém, de abril a julho de 1579, Febo Monis, procurador de Lisboa, pronunciou-se contra a escolha de um rei estrangeiro. D. Henrique ordenou que as cortes se abstivessem de dar parecer sobre um possível acordo entre os dois únicos candidatos reconhecidos por ele: Filipe II e a duquesa de Bragança, declarando a seguir que considerava os direitos do primeiro superiores aos da segunda.
Os duques de Bragança, não obstante o apoio de muitos nobres e de grande parte do clero, atuaram com muita prudência para não porem a perder os recursos de uma casa opulenta e forte. Logo que Filipe obteve o apoio do alto clero e da maior parte da nobreza, também eles aderiram à causa da Espanha.
O Prior do Crato chegou a ser aclamado rei em Setúbal, Santarém e Lisboa, mas, logo em julho de 1580, o duque de Alba invadiu Portugal com forte exército, enquanto a esquadra espanhola posicionava-se no Tejo. O duque desembarcou em Cascais e derrotou sem problemas, em Alcântara, o improvisado exército de D. António, formado de sete a oito mil homens. Era o dia 25 de agosto de 1580. No mesmo dia o duque ocupa Lisboa e D. António consegue escapar à perseguição entrando na França, onde foi bem recebido e reconhecido rei de iure de Portugal por seu "primo" Henrique III.
Em abril de 1581, nas cortes reunidas em Tomar, Filipe II foi solenemente jurado e aclamado rei de Portugal com o título de Filipe I.
D. António tentou ainda continuar a luta, contando com o auxílio da França e da Inglaterra. Foi nos Açores que a causa da independência se manteve mais forte e por mais tempo. A Ilha Terceira, último baluarte da resistência de D. António, só capitulou em agosto de 1583. O Prior abrigou-se na França passando daí à Inglaterra, onde reinava Elizabeth I, a feroz inimiga de Filipe II. No exílio, D. António conseguiu incitar ataques franceses e ingleses contra o território continental e possessões ultramarinas. Em 1589, depois da derrota da Invencível Armada de Filipe II contra a Inglaterra, o almirante inglês Francis Drake atacou as costas da Península, desembarcando em La Coruña, que saqueou, em Peniche e em Cascais, mas encontrou Lisboa fortemente protegida. A peste sobreveio, e os ingleses resolveram abandonar o cerco, apesar dos protestos de D. António.
Uma outra expedição, desta feita, organizada pelos franceses, foi projetada para 1595, mas a morte do Prior, neste mesmo ano, pôs-lhe fim.
2. D. António, um sonho mau de independência: a tragédia histórica
Eu fui um sonho mau de independência.
(Ato IV, p. 128.)
No posfácio de O Indesejado (António, Rei), Jorge de Sena escreve que essa peça é uma tragédia. Uma tragédia histórica:
Esta peça é uma tragédia. Uma tragédia histórica. Uma tragédia em verso. Tudo isto é medonho, rebarbativo e audacioso, bem sei. Não vejo, todavia, inconveniente algum em apelidá-la de tragédia… muitas peças em verso são excelentes comédias, e a natureza da tragédia não exige obrigatoriamente que o discurso seja versificado. Exige, sim, que a peça tenha categoria poética, isto é: visão unificante, densidade de pensamento, equilíbrio rítmico das partes em relação ao todo e da expressão em relação à intenção. Sendo a tragédia a representação simbólica de uma crise dialética, não pode dispensar-se – além de, como teatro, possuir acção exterior ou interior – de possuir também aqueles atributos da máxima categoria de criação, sem a qual se não exibe, condigna e excepcionalmente, a crise inspiradora.[2]
"Sendo a tragédia a representação simbólica de uma crise
dialética…" E foi uma representação simbólica de uma crise dialética que Jorge de Sena quis representar ao escrever O Indesejado.
Tendo em mente a tradicional estrutura da tragédia ática, este estudo se propõe identificar os processos que caracterizam essa representação simbólica (a tragédia) na peça de Jorge de Sena.
Nem todas as tragédias gregas dos autores paradigmáticos desse gênero dão o mesmo realce a todas as partes da estrutura da tragédia. Ou melhor, nem todas as tragédias são constituídas de todas as partes que a tradição grega deu à estrutura trágica. Desejou-se, neste estudo, fazer uma leitura da peça de Jorge de Sena, em que se pudessem identificar processos e partes características da tragédia.
Sabe-se que D. António, Prior do Crato, pretenso herdeiro ou virtual candidato à sucessão de D. Sebastião, carrega em sua vida aquilo que os teóricos da tragédia chamavam hamartia. Essa hamartia grega, que é uma culpa quase sempre herdada de antepassados, é que D. António leva consigo como se fosse ele um bode expiatório – lembre-se de que tragédia é em seu sentido primacial o canto do bode – a expiar os pecados de seus pais. Como a hamartia de Édipo vinha-lhe dos erros de Laio, seu pai, – veja-se o que a esse respeito ensina Junito Brandão -:
Laio, todavia, herdeiro não apenas do trono de Tebas, mas sobretudo de algumas mazelas de "caráter religioso" de seus antepassados, particularmente de Cadmo, que matou o Dragão de Ares, e de Lábdaco, que se opôs ao deus do êxtase e do entusiasmo, cometeu grave hamartia na corte de Pélops. Desrespeitando a sagrada hospitalidade, cujo protetor era Zeus, e ofendendo gravemente Hera, guardiã severa dos amores legítimos, raptou o jovem Crisipo, filho de seu hospedeiro. Agindo contrariamente ao que é "justo e legítimo" para empregar a expressão de Heródoto (1,96), o futuro rei dos tebanos acabou ferindo os deuses e praticando um amor contra naturam.[3]
a de D. António vem-lhe de seus pais, o infante D. Luís, que nunca se casara, e de sua mãe, D. Violante Gomes, mulher de vida incerta.
O próprio Jorge de Sena, em seu "Post-Fácio", confirma essa colocação ao escrever: "O Prior do Crato… sofre as consequências de seu nascimento, da legitimidade duvidosa de sua pretensão."[4]
O problema é explicitado logo no primeiro ato, num diálogo entre o protagonista e o bispo da Guarda:
D. António – Sois meu amigo, vejo, como homem.
Negar tanta amizade… só assim.
E eu sou um homem. Que sou mais que um homem?
Que uma ambição lutando contra tudo,
(só este verso com ironia)
aliada à grande esp'rança, que é de alguns?
Estou vivo e apareço. Mas esp'rança
a maior, a mais pura, a mais preciosa
of'rece o povo ao rei que se acovarda
e se esconde na morte ou não sei onde…
Bispo – Esse morreu. E dar um nome à esp'rança,
o povo dá-o sempre. Se tivéssemos
com que comprar todas as memórias,
todos se lembrariam só de nós.
Perdão, senhor, de vós, do vosso nome.
D. António – Qual? O que minha mãe não me concede?
E tantos me contestam?
Bispo – Esse ou outro
Ninguém senão a Igreja nos baptiza
O resto: alcunhas, quando não são títulos.
D. António – Alcunhas… "Pelicana"… "Pandeireta"…
Bispo – Nomes de vossa mãe… Deixai que falem!
Judeu, bastardo – tudo vos chamaram.
Ambos sabemos isso, meu senhor.
Mas sabe-o Deus, que a vós deu nascimento
por esta salvação de todos nós,
se é que Deus quer que se salve agora
um povo tão perdido a engrandecê-Lo!
(pausa)
(Ato I, p. 23-24.)
Tem-se nessa cena acima a explicitação da desmedida do herói trágico. Segundo as teorias, o herói, ao tentar ultrapassar os limites impostos pelos deuses, comete a híbris, a desmedida, e por isso é castigado pelos deuses. Observe-se que no caso de D. António é o bastardo que ousa estender as mãos para a coroa de Portugal, "uma ambição lutando contra tudo", quando não se é "mais que um homem". Fazer-se candidato à coroa é ultrapassar a raia marcada pelos deuses, no caso, os poderosos (D. Henrique, Filipe II, a maioria do clero e da nobreza). Note-se também que, no momento em que se manifesta a culpa trágica e atávica, cujas conseqüências o herói tem de suportar, que se mostra também explicitada a moira, isso é, o fado, a fatalidade. E ela é anunciada pela boca do Bispo, o que lhe confere sacralidade.
Mas sabe-o Deus, que a vós deu nascimento
por esta salvação de todos nós
se é que Deus quer que se salve agora
um povo tão perdido a engrandecê-Lo.
(Ato I, p. 24.)
D. António vai glosar esse mote do Bispo "Por esta salvação de todos nós".
D. António – Por esta salvação de todos nós…
Que salvação é essa? Num naufrágio
salva-se a tábua a que se agarram náufragos?
Flutua longamente… porque é tábua.
E sou tão frágil eu, nesta aventura,
que só por ambição ainda flutuo…
Eugénia Vasques[5] escreve, com a maior propriedade:
[…] o herói trágico que aqui se configura sob os traços distintivos do cepticismo e da dúvida, privado de Fé e revoltado contra Deus, mas, na sua qualidade de homem existencial, ainda assim activo na sua luta (cfr. Sartre, pp. 32-33), não segue, com efeito, o percurso moralizador que supõe a cartarse provocada pelo terror e pela piedade. A finalidade da fábula de O Indesejado, é, em termos de didática especial e de recepção, bem mais demolidora. Se D. António é marcado por alguma infracção (hybris) ou por algum erro (hamartia) que trazem consigo ineluctavelmente, o desfecho infeliz (cfr. Poética 1453a; 120), eles radicam no próprio facto de ter nascido bastardo, de não ser reconhecido, e ainda assim ser compelido pela noção do dever e da honra (arété) a cumprir o Destino como uma "azêmola dos Fados".
(O Indesejado, p. 140.)
A hesitação parece ser uma das marcas da personalidade de D. António, "[…] personalidade indecisa com arrancos de orgulho e um fundo de descrença em si próprio", resume Eugénia Vasques.[6]
É nesse ponto que reside o trágico naquilo que ele tem de contradição irreconciliável: o homem sobre cujos ombros é posta a moira, a missão de salvar seu povo, em oposição aos "deuses" contrários, é um indeciso, inseguro, incerto do apoio de que necessita. D. António sente que o povo não o vê, que não vê nele mais que o filho de D. Luís, mas nunca o rei.
D. António – Mal se sabia que eu chegava. O povo olhava-me e não via… ou via apenas: uma batalha lá perdida em África, onde, no entanto, se perdia um reino; um rei que não deixara descendência… Herdeiro me não via… Era o Prior, o filho, sim, do infante D. Luís, ou dos cativos o primeiro a vir…
(Ato I, p. 37.)
No entanto, logo depois, o povo que o havia aclamado em Santarém, aclama-o agora em Lisboa. A aclamação na capital do reino é marcada como um momento de intenso regozijo e entusiasmo popular.
As aclamações e os repiques atroam os ares. O povo brande as armas. Febo Moniz e Diogo Botelho ajoelham. D. António com as mãos presas por ambos, que lhas beijam, e rodeado de povo que vai ajoelhando e procura tocá-lo, volta a cabeça, e contempla profundamente D. Filipa, impassível no outro extremo da sala. As aclamações multiplicam-se.
Esse momento, pode-se dizer, representa o apogeu do herói em seu itinerário. A aclamação, porém, por outro lado, sugere o canto das sereias ou a tentação da serpente no Paraíso. É, enfim, o momento do grande passo. A partir de agora, o herói está convidado a se superar, aceitando o desafio. E é no segundo ato, dois anos depois, em Angra, na Ilha Terceira dos Açores que o herói assume seu destino. Vale como símbolo dessa passagem, dessa ultrapassagem, a condenação à morte de Duarte de Castro, um de seus companheiros, que havia perdido toda a sua fortuna na campanha de
D. António. Num clima de ambigüidade que, aliás, é constante nessa tragédia, não fica muito clara a razão da sentença de D. António: se Duarte de Castro foi condenado por ter assassinado um companheiro por causa de uma mulher ou se havia realmente traído D. António. Este, ao proclamar a sentença, a atribui aos dois crimes: a traição e o assassinato.
D. António – Amanhã morrerá Duarte de Castro,
decapitado, e ao romper do dia,
por atentar, há muito, contra a vida
de seu Real Senhor;
(tumulto) e por ter morto
um meu amigo e partidário fiel,
cavaleiro da minha Real Casa.
Levem-no.
(Ato II, p. 79.)
De acordo com a teoria da tragédia,[7] depois que o homem ultrapassou o métron, a medida humana de cada um, ele é vítima do ciúme dos deuses, pois que o mortal que ultrapassa sua medida é, de certa forma, um competidor, um êmulo dos deuses. O castigo sobrevém-lhe imediatamente; é a ate. A cegueira da razão apossa-se do mortal ousado e tudo que ele fizer será para apressar a queda final nos braços da fatalidade. Assim se explica a atitude fria e firme de D. António ao fazer morrer seu amigo dedicado sem atender aos pedidos de clemência feitos por outros companheiros de campanha.
Ao se falar em vingança dos deuses, há que se ter em mente que os "deuses" aqui são as forças contrárias a D. António: o poder corruptor de Filipe II, que comprava a peso de ouro os possíveis seguidores do Prior; a rejeição às suas origens incertas, a passividade do povo, que, talvez, o desejasse como rei, mas não queria dar seus filhos para a luta, enfim, até a própria incerteza e hesitação do Prior. Todas essas forças contrárias conjugadas representam aqui os "deuses" ciumentos da tragédia ática.
O terceiro ato se passa em Londres, sete anos após o tempo representado no segundo ato.
Quando a ação teatral se inicia, D. António já esteve em Portugal com o almirante inglês Francis Drake e sentiu lá que as chances eram poucas. Diz D. António:
Desembarquei, senti aquela terra,
como há já muito não sentia nada!
De Peniche a Lisboa, eu vi o povo
confiar em mim, se o não arrebatasse!…
Não me seguia, vinha à porta olhar,
dizer adeus, sorrir… Nem talvez isso.
E que eu lhes não pedisse o coração,
lhes não pedisse a vida nem os filhos.
(Ato III, p. 86.)
E mais adiante:
Ninguém se levantou! Bastaram forças
a tempo erguidas, para os "meus" esp'rarem
que eu acabasse a esp'rança que trazia
ou me acabasse a peste. A própria peste
lá não faltou também. Estávamos nós,
Lisboa estava e o poder da Espanha.
E a nossa angústia, a nossa ansiedade!…
Nada faltou. Ninguém. E só a pátria.
Diogo Botelho – Houve revoltas, meu senhor, sabeis…
(interrompendo)
D. António – Eu sei que houve revoltas quando não era
[possível já qualquer vitória!…
Quiseram convencer-se de que tudo
estava perdido e não valia a pena
senão morrer no cadafalso por…
sei lá… talvez até por mim.
(Ato III, p. 87.)
É nesse terceiro ato, ainda, que se dá o diálogo entre D. António e seu filho primogênito Manuel, que já não crê nas possibilidades do pai de vir a ser rei e nem se vê mais como herdeiro da coroa; por isso, está de partida para a Espanha. Fica no ar a idéia de ter sido ele também comprado por Filipe II. No quarto ato, já em Paris, fica-se sabendo que ele permanecia em Londres.
D. Manuel – Não estarei mais. Eu parto para Espanha.
D. António – Para?!
D. Manuel – Espanha, meu pai.
D. António (investindo com ele) – Traidor!
D. Manuel – Serei!
Não sou rei nem pretendente ao trono,
E vós, quando éreis pretendente ou rei,
Negociações tivestes com Espanha,
segundo me disseram.
D. António – Dizem tudo!…
Paga-te bem El-Rei Filipe?! Sai!
Recolhe aos aposentos. Nunca mais
sem ordem minha, sem o meu perdão,
te atrevas a deixá-los! Se Filipe
sabe comprar a seus rivais os filhos,
também, como ele, os seus rivais conhecem
uma razão de Estado, à qual não escapam
os príncipes de sangue…
D. Manuel – E muito menos
os príncipes sem sangue…
Ao ver o filho primogênito, o que levava o nome do avô ilustríssimo passar também para o outro lado, completa-se para o herói trágico a metabolé, ou seja, a reviravolta de um estado de felicidade (aliás, bastante relativo) para a desgraça. Assim como a aclamação de Lisboa foi o grande momento de felicidade, o abandono do primogênito terá sido o mais cruciante momento do herói.
Eugénia Vasques[8] chama a atenção para o tema do anel ("lembremos o wagneriano tema do anel funcionando, nesta tragédia, como uma espécie de leitmotiv musical"). É muito pertinente a idéia dessa imagem porque realmente o tema do anel, que aparece no primeiro ato, é retomado no segundo e no terceiro, numa intermitência que chama a atenção, já que, nas três vezes em que ele se manifesta, vem sempre ligado a uma das três mulheres, personagens da vida amorosa de D. António, cuja "natureza donjuanesca" é contada por Jorge de Sena, no "Post-Fácio" da tragédia, entre os motivos de seu sofrimento.
O wagneriano tema do anel, de que fala Eugénia Vasques, remete às lendas germânicas em torno do anel dos Nibelungos. Eram esses anões donos de riquezas e sedentos de ouro e poder e, conforme ensinam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant,
[…] querendo dominar os elementos e os homens. Vivem uma felicidade ilusória e precária, sonhando construir pela força e pela astúcia, um império de sonho, cujas construções estão predestinadas a um rápido desabamento […] Simbolizam a megalomania da gente miúda, as capacidades exageradas pela imaginação, a ambição desmedida dos homens. São como forças do inconsciente que, impelindo a uma cobiça insaciável, resultam finalmente na morte. Simbolizam também as empresas humanas destinadas, como o universo, a uma inexorável destruição.[9]
Ainda seguindo a lição do Dicionário de Símbolos, o anel dos Nibelungos era a garantia visível de seu poder. Wotan despojou-os desse poder com um único golpe de lança. O anel na mão do homem assinala a dominação dele sobre a natureza, tornando-o, ao mesmo tempo, servo dos turbilhões de desejos e das conseqüências dolorosas que o exercício desse poder acarreta. E, voltando a reproduzir textualmente a lição de Chevalier e Gheerbrant, "É uma figura do desejo de poder".
Ao associar o tema do anel às mulheres da vida amorosa do Prior, Jorge de Sena quis simbolizar e ao mesmo tempo enfatizar o poder viril de D. António, a sua possibilidade, ou melhor, a sua potencialidade de fazer de cada uma delas sua mulher e também sua rainha.
No primeiro ato ele oferece o anel a D. Filipa de Portugal, a mulher que o ama, mas a cujo amor ele não corresponde.
D. António – Senhora: amam-se as pátrias a si próprias.
Ninguém me tem amor, D. Filipa.
(Tem começado a ouvir-se um clamor de populaça
[que a ambos perturbará.)
D. Filipa (apaixonadamente) – Não o tendes vós, senhor, que
[mo dizeis.
D. António (arrancando, de um dos dedos, um anel com diaman-
[te, enquanto o clamor vai aumentando sempre.)
– Aceitai este anel. Era da c'roa.
Possa ele ser vosso…
D. Filipa (voltando ao proscénio, vagarosamente)
– Meu senhor, não pode.
(com ternura e amargura, a meia voz)
Éreis o rei, o rei que regressava!…
(pausa)
D. António (seguindo-a) – Senhora, olhai-me bem: não era eu já?
Não era ainda?
D. Filipa – Guardareis o anel?
(Ato I, p. 37-38.)
A segunda cena com o anel dá-se na visita que lhe faz
D. Violante do Canto, a quem ele ama e deseja.
Violante – E o mesmo tu não fazes… Retiraste das minhas
[mãos a tua.
D. António – Retirei porque senti…
Violante (interrompendo) – Como te enganas!… Eu (tocando o
[anel, e dizendo que não com a cabeça)
só quero agradecer-te quanto sabes
e tens sabido, amor, fazer-me tua.
(D. António vai beijá-la. Violante evita)
Mas porque o sabes… Tudo o que tu sabes
sempre soubeste?… Sempre foste assim?
(Ato II, p. 64.)
O anel, visto também como símbolo de potência viril, tem essa simbologia explicitada na cena em que
Violante, tocando o anel, diz:
só quero agradecer-te quanto sabes
e tens sabido, amor, fazer-me tua.
A terceira cena com o anel está no terceiro ato, quando em Londres, D. António recebe a visita de Lady Harriet, duquesa de Nethershan. O diálogo entre os dois logo mostrará que Lady Harriet representa o amor do passado, o que já se foi.
D. António (aproximando-se mais. Perturbação de Lady Harriet)
– Vós viveis hoje, e eu vivo sempre…
Lady Harriet (apontando o anel) – O anel…
D. António (afastando-se triunfante)
– Era o que queríeis, era? Adivinhei.
(sorri com ironia)
A mim não qu'reis pelo que sou.
(tira o anel do dedo) É vosso.
Lady Harriet – É quanto tendes?!
D. António (ansioso) – É. Não o aceitais?
Lady Harriet (com gravidade) – Aceito.
(Ato III, p. 114.)
A entrega do anel pode ser claramente lida como a entrega de si próprio, como símbolo do abandono da luta. Lê-se no anel e em seu simbolismo o reflexo de toda a trajetória trágica do herói. É sintomático da deposição das armas na luta pelo trono o fato de logo a seguir à visita de Lady Harriet, quando o emissário da rainha (da Inglaterra) vem convidá-lo a que compareça ao palácio, ele não só recusa o convite como também mente sobre isso, quando diz que no dia seguinte ele também não poderá comparecer porque será recebido por sua corte. Ora, a rainha sabe que ele não possui corte alguma em Londres; que lá a rainha é apenas ela.
D. António entrega o anel, símbolo de seu poder e de sua ambição. Não aceita o convite pelo qual tanto esperou e aceita que está velho ao associar seu cabelo com a neve que cai lá fora.
O anel voltará a ser lembrado na hora da quarta visita feminina: a da morte, mas aí ele não se recordará de onde o pôs, se o perdeu…
O anel… o anel… Já o não tenho… Dei-o
há quantos anos… Mas perdi… Roubaram-mo.
(Ato IV, p. 144.)
O quarto ato, seis anos depois do tempo do terceiro, passa-se em Rueil, subúrbio de Paris, em l595; é todo ele uma preparação para a cena final, a da morte do rei. Está ele na companhia de seu segundo filho, D. Cristóvão, de Diogo Botelho e de Cipriano de Figueiredo. Depois entrará Frei Agostinho, seu confessor.
3. De Jorge a António: a metamorfose do excluído
Para emergir nascemos.
Enquanto Jorge de Sena escrevia O Indesejado (entre dezembro de 1944 e novembro de 1945), Jean-Paul Sartre publicava L'Age de Raison e Le Sursis, já tendo publicado em 1938 o romance em que o escritor expõe seu pensamento filosófico sobre o absurdo da condição humana, La Nausée e duas de suas principais peças teatrais: Les Mouches e Huis Clos; a primeira de 1943 e a segunda de 1944.
André Malraux já havia publicado La Condition Humaine, prêmio Goncourt de 1933, e seu outro romance Les Noyers d'Altenburg.
De Albert Camus já fora publicado o romance L'Etranger, de 1942, os ensaios de Noces, 1938, Le Mythe de Sisyphe, 1942.
O ano de O Indesejado, ainda sem edição nem representação, é também o ano do Caligula, de Camus.
O objetivo dessa precária nota sobre a literatura francesa nas décadas de 30 e 40 é mostrar que antes e durante o tempo de elaboração de O Indesejado já se conheciam os principais romances e peças teatrais que expunham o problema da condição humana naquilo que ela tem de absurdo e carente de sentido. Nesse período, quando se tinham produzido os horrores de Guernica, a insensatez da Guerra Civil Espanhola, a agressão da Itália ao milenar Império Etíope e, finalmente, quando Adolf Hitler prometia ao povo alemão mil anos de Reich, esmagando e humilhando os homens e as nações, a literatura questionava o absurdo que se podia considerar a vida do homem sobre a terra que Antoine de Saint-Exupéry chamou Terre des Hommes, 1939.
Em Portugal, a segunda metade da década de 30 registra o crescimento do poder de Salazar. A conversão gradual do primeiro-ministro em ditador significou também o revigoramento do Estado Novo. Veja-se o que escreve a respeito Oliveira Marques:[10]
Além da chefia do Governo e da pasta das Finanças, Salazar tomou para si a da Guerra (desde 1936) e a dos Negócios Estrangeiros (desde 1936), conservando a primeira até aos começos e as outras duas até ao final da guerra. Considerava-se o guia da nação, acreditava que havia coisas que só ele podia fazer ("Infelizmente há muita coisa que parece só eu posso fazer" – nota oficiosa publicada em Setembro de 1935) e conseguia que parte crescente do país o fosse acreditando também.
Salazar, do mesmo modo que Franco, na vizinha Espanha, conseguiu manter a neutralidade de Portugal na Segunda Guerra. Durante quase todo o período de guerra a oposição manteve-se mais ou menos desativada até que, em 1943, dois anos antes do final da Guerra, as hostilidades à ditadura recomeçaram. Nesse ano constituiu-se o movimento chamado MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Antifascista), cuja atividade, evidentemente, não pôde ser grande.
A vitória aliada em 1945 deu ocasião a manifestações pró-democráticas e pró-socialistas. O Governo dissolveu a Assembléia Nacional e convocou eleições. Logo a Oposição se deu conta de que a liberdade concedida não ia além das declarações. As eleições tomaram tal rumo, que a Oposição resolveu abster-se, e todos os candidatos da União Nacional (pró-ditadura) foram eleitos sem contestação. Em lugar da democracia, o que veio foi o reaparelhamento e aperfeiçoamento da Polícia Secreta, que passou a ser conhecida como PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado).
É na vigência desse quadro político, aqui apenas esboçado, que foi escrito e lido para amigos O Indesejado. A tragédia, como ressalta o autor, é histórica. Mas não só isso. Jorge de Sena pretende situá-la no contexto daquele Portugal em que se vivia então. Daí a referência sutil que ele faz em seu "Post-Fácio" (1949) aos "dois panoramas portugueses: o panorama dramático e o dramático panorama. Não sei se me entendem".[11]
Para uma melhor leitura da tragédia de Jorge de Sena, há que tentar inseri-la dentro das raias de três contextos. O primeiro deles seria o de um teatro de resistência à ditadura salazarista, do qual
O Indesejado não deveria ser excluído. Se o foi, tal exclusão se explica, talvez, pelo fato de que tradicionalmente se inscrevem nessa categoria as peças de teatro ditas épicas, de raiz brechtiana. Elas normalmente enfocam fatos de um passado histórico de modo a lançar alguma luz reveladora sobre o momento político presente, já que a censura não permitiria que dele se fizessem críticas diretamente, através de qualquer meio de comunicação social. É nessa linha brechtiana que se colocam algumas das peças de mais veemente, porém, até certo ponto, despistada sátira ao regime salazarista. O Render dos Heróis, de José Cardoso Pires, em 1965, e Bocage – Alma sem Mundo, de Luzia Maria Martins, em 1967, conseguiram iludir a censura e até estrear, mas foram retiradas de cena. Outras, como O Judeu, de Bernardo Santareno, ou Felizmente, Há Luar, de Luís de Stau Monteiro, nem mesmo lograram obter a licença da censura para sua apresentação.
Um segundo enquadramento da tragédia de Jorge de Sena diz respeito ao tema tratado. O Indesejado vem romper a longa tradição de "um teatro poeticamente eivado de um sebastianismo profundamente radicado", que vinha ainda do Frei Luís de Sousa, de Garrett, e que contemporaneamente à peça de Sena, tinha dado o "poema espetacular" El-Rei Sebastião, de José Régio, em 1949. Não só romper a tradição, mas também propor ao teatro português o tema de D. António, Prior do Crato, como um verdadeiro mito anti-sebastianista. É como tal que Jorge de Sena o vê no "Post-Fácio" (1949): "Sofre ainda [D. António] a sua natureza donjuanesca e, por cima de tudo, o anti-sebastianismo que a sua pessoa representa."
Se o tema é português – uma fase dramática da história portuguesa que exigiu do povo português – seja lá quem o representava então – uma opção entre a independência e a união com a Espanha, se D. António, Prior do Crato, é um príncipe português em busca do reconhecimento de seus compatriotas para que salve o reino da dependência dos Filipes, o problema trazido à consideração por Jorge de Sena ultrapassa o âmbito português e se inscreve como uma meditação profunda sobre o homem universal, o homem diante da responsabilidade de sua escolha. Muito bem a respeito disso escreve Jorge de Sena: "A tragédia é, precisamente, a tradução escritural simbólica desse estar conscientemente à beira do abismo do aceitar ou não aceitar."[12]
Assim, não se pode concordar com a opinião que João Gaspar Simões expõe em Crítica VI – O Teatro Contemporâneo (l942-l982):
Reprovávamos, portanto, em 52, a escolha de um tema histórico para a glosa em verso dramático do poeta Jorge de Sena? Não. Mas víamos com olhos receosos a circunstância de a sua peça se encontrar demasiado cingida a um tema histórico português, e a um tema histórico português que o autor da referida peça confessava não ser apenas histórico "no desenvolver da acção", mas de "relevância dela para o Portugal contemporâneo". Muito portuguesa na sua implicação histórica, tão portuguesa que o tema de O Indesejado só terá sentido para portugueses, posto que esse ferrete histórico nacional se aplicasse ao Portugal coevo (que se aplicava, pelo que havia de apático no reino que esperara por D. Sebastião, repelindo D. António, ao tempo sob o jugo de outro António, que não desejava, aceitando-o), a essa circunstância devia, em grande parte, a peça de Jorge de Sena carácter restrito, não bem nacional, mas quase regional. Em verdade os temas históricos de relevância nacional podem não ser de relevância universal. [13]
Na verdade, o prestigiado crítico João Gaspar Simões não soube alcançar inteiramente o valor simbólico, emblemático, da tragédia de Jorge de Sena. Um olhar menos "regional" e mais "universal" teria feito o ilustre crítico entender que a peça de Jorge de Sena não expõe apenas a ambição de um príncipe português pela coroa de seus antepassados; não é apenas um problema do homem português D. António, que viveu na segunda metade do século XVI, mas por trás dessa figura histórica portuguesa, ou melhor, glosando essa figura histórica portuguesa, até certo ponto bastante apagada, Jorge de Sena, poeta e intelectual português, dono de uma erudição e de uma visão universal que o faz cidadão do mundo, mostra o homem.
É nesse terceiro enquadramento que se tem de ver a tragédia de Jorge de Sena: o universalismo que ela atinge. O Indesejado, assim como toda a obra poética de Sena, deve ser considerado um testemunho do homem. A tragédia seniana expõe, como a obra dos mestres existencialistas franceses, a necessidade que tem o homem de se comprometer com sua escolha para se firmar e superar o absurdo da condição humana. Como Sísifo tem que rolar a pedra de seu castigo até o alto da montanha e ir lá repô-la quando ela descer até a planície, D. António ao se autodenominar "azêmola do destino" faz um novo Sísifo, ou seja, um Homem.
Numa leitura superficial poderá causar decepção o fato de os médicos franceses – eles valem uma pequena comédia dentro da tragédia – não encontrarem no coração de D. António "la petite croix significative".
2o médico Et je verrais très nettement que ce n'est pas un coeur royal, parce qu'il n'a pas sur la troisième diagonale, la petite croix significative.
(Ato IV, p. 147.)
É aí que encontramos o caráter principal de D. António: ser um homem como todos os homens. "E eu sou um homem. Que sou mais que um homem?" (Ato I, p. 23.)
D. António, ao sonhar-se rei, ao comprometer-se com sua condição de rei e defendê-la até o fim, não fez mais que dar testemunho de ser um homem. Ser rei contra o absurdo de existir; optar por se fazer e construir-se como um homem, mais ainda que um rei.
O Caligula, de Camus,[14] compreende, em face do que lhe mostrou a morte de Drusilla, que nada tem sentido, e escolhe o caminho do desregramento, da libertação de todas as regras para dar chances ao impossível como conquistar para si a lua, ou a felicidade ou mesmo a imortalidade.
O que vemos em termos extremamente didáticos na peça de Albert Camus, vemos colocado com menos ênfase, mas talvez com maior profundidade em Jorge de Sena.
Os escritores existencialistas surgidos no final da década de 30 buscavam uma justificativa, uma razão de ser para o absurdo de existir e morrer. Sartre viu a solução no compromisso, comprometer-se com os outros homens, com a justiça, a liberdade e a paz. Malraux acreditava que a arte poderia dar esse sentido ao absurdo da existência. E Camus, o mais rebelde, achava que, não existindo solução alguma para esse nonsense da existência, o caminho único seria tomar consciência do absurdo, fazer sua escolha (querer apanhar a lua, rolar a pedra para cima de novo) e manter-se vivo. Daí, ter formulado que o único problema realmente sério da filosofia é o suicídio. Viver apesar de.
Pode-se incluir Jorge de Sena entre os escritores existencialistas, pois toda sua obra poética – nela incluída sua tragédia em versos – é uma imensa cogitação sobre a condição humana, sua consciência, sua expressão e sua luta contra a morte e suas manifestações: falta de liberdade, injustiça, dor, tirania, falsidade, hipocrisia. Uma diferença, porém, salva o poeta português do pessimismo dos existencialistas franceses: a crença na imortalidade, numa eternidade que se manifesta como um eterno tornar-se numa infinda (infinita?) metamorfose.
Quando a hora chegar em que já tudo
na terra foi humano – carne e sangue -,
não haverá quem sopre nas trombetas
chamando o globo a um corpo só, informe,
um só desejo, um só amor, um sexo.
Fechados sobre a terra, ela nos sendo
e sendo ela nós todos, a ressurreição
é morte desse Deus que nos espera
para espírito seu e carne do Universo.
Para emergir nascemos. O pavor nos traça
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar que a Vida
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continue.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
A Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a eternidade.
Maria Alzira Seixo, com a lucidez que lhe é peculiar, deu um depoimento sobre Jorge de Sena para o programa da representação de O Indesejado, dentro do projeto Retorno à Tragédia na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1986. Nesse depoimento, a conhecida crítica literária identifica sete escritores, como diz ela "sete figuras tutelares (nem sempre bem conhecidas nem bem estudadas) do que se poderá chamar o classicismo da nossa modernidade". E enumera os sete: Vitorino Nemésio, José Rodrigues Miguéis, José Gomes Ferreira, Miguel Torga, Jorge de Sena, Adolfo Casais Monteiro e Irene Lisboa. Mantive-os na ordem em que Maria Alzira os indicou. Dos sete, Maria Alzira diz que "sobressai consideravelmente a figura de Jorge de Sena" pelo caso espantoso de sua poligrafia, da atividade humana e profissional multímoda, porque viveu longe da pátria durante o período mais importante de sua carreira sem deixar de ter com essa pátria um "fremente" diálogo – é dela o adjetivo –
[…] porque a extensão imponente da sua obra, a desmesurada capacidade de trabalho de que deu provas e a personalidade forte e frontal que muitos lhe conheceram quase o guindaram à categoria de mito (o mito do ausente realizado na incompletude, o mito de uma severa e ríspida consciência nacional exterior a perseguir-nos nos nossos sucessivos malogros e com eles igualmente sofrendo.
E, finalmente, para melhor justificar o título desta terceira parte de nosso trabalho, lembremo-nos do que escreve Jorge Fazenda Lourenço: "[…] a personagem do Prior do Crato, com seu humanismo de crise renascentista… é uma persona de Jorge de Sena". Na verdade, a experiência de ambos tem numerosos pontos de contacto. Em abono disso, podem-se usar as palavras de Sena, as mesmas que Fazenda Lourenço retirou do "Post-Fácio" de O Indesejado: "[…] ao escrever O Indesejado desejei ardentemente penetrar a experiência que de nós, como portugueses e cidadãos à margem ou nas margens do mundo nos é dado ter".
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—. Jorge de Sena Dramaturgo ou O caminho da literatura para a escrita teatral. Ensaio que retoma parcialmente o capítulo 6 de sua tese de doutoramento: Jorge de Sena: uma Idéia de Teatro. Santa Barbara, UCSB, 1993.
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Notas:
1 A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, Lisboa, Palas, 1985, v. II, p. 154.
2 Jorge de Sena, "Post-Fácio", O Indesejado, Lisboa, Edições 70, p. 153.
3 Junito de Souza Brandão, Mitologia Grega, Petrópolis, Vozes, 1989, p. 236-237.
4 Jorge de Sena, op. cit., p. 154.
5 Eugénia Vasques, Jorge de Sena: uma Ideia de Teatro (1938-71), Lisboa, Cosmos, 1998, p. 131.
6 Eugénia Vasques, "O Indesejado: uma pátria perseguida", Actual Cultura, 5 de agosto de 1985.
7 Albin Lesky, A Tragédia Grega, São Paulo, Perspectiva, 1976.
8 Eugénia Vasques, "Jorge de Sena dramaturgo ou O caminho da literatura para a escrita teatral", ensaio que retoma parcialmente ocapítulo 6 de sua tese de doutoramento: Jorge de Sena: uma Idéia de Teatro (Santa Barbara: UCSB, 1993).
9 Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dicionário de Símbolos, Rio de Janeiro, José Olympio, 1990.
10 A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, Lisboa, Palas, v. III, p. 382.
11 Jorge de Sena, O Indesejado (António, Rei), Lisboa, Edições 70, 1986, p. 152.
12 Id., ib. p. 175.
13 João Gaspar Simões, Crítica VI – O Teatro Contemporâneo (1942-1982), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 291-295.
14 Albert Camus, Le Malentendu suivi de Caligula, Paris, Gallimard, 1958.
* Ronaldo Menegaz é Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi Diretor-Geral da Biblioteca Nacional e Professor nos Cursos de Graduação e Pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atualmente trabalha no Setor de Lexicografia da Academia Brasileira de Letras.