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Poesia Dodecafónica? Jorge de Sena e Schönberg, à luz de Adorno


Música do vácuo, do vazio, do inútil, do insensível, do sem vida, 
mas mais terrível que isso, não do nada,
já que o nada, a negação, seria
um pouco de consolo dúbio,
um pouco de ternura e de ilusão

Jorge de Sena

1. Na relação música/literatura, têm-me interessado, até agora, alguns casos de proximidade entre um texto literário e outro musical, onde não existe da parte do Autor uma intenção de estabelecer ligações entre eles. Proximidade apenas apercebida por um leitor/ouvinte atento, em textos de Vergílio Ferreira (com Chopin) e de Maria Velho da Costa (com Bach). Neles, interessou-me a existência de processos de intertextualidade ou de uma contaminação estabelecidos à margem da consciência de quem escreve. De certa forma, algo semelhante ao que se passa com a própria música, que no dizer de Leibnitz é "um exercício de alma que não sabe que está a musicar."[1]

Em Jorge de Sena, como em tantos outros escritores, poetas ou não [2], a relação com a música é outra. Sobre o conjunto de poemas de Arte de Música, diz Sena: "aconteceram-me"; "representam vivências de uma obra ou de um compositor, que acabaram por cristalizar-se verbalmente"[3]. Tais poemas mostram pois uma ligação explícita entre poema e peça musical, percorrendo o Autor uma série de possibilidades nessa relação.

Os actuais trinta e quatro poemas da segunda edição dessa antologia por si elaborada têm quase todos o mesmo título que a composição musical, inteira ou em excerto, o nome do compositor, do intérprete ou da cantora, à volta do qual gira o conteúdo do poema. Vários deles são uma escrita, a posteriori ou no momento, do efeito da audição de cada obra musical sobre o sujeito:

Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música
("La Cathédrale Engloutie", de Debussy, 1964)

como me alegra
("Prelúdios e Fugas de J.S. Bach para órgão", 1964)

Ou são o comentário sobre a própria peça no momento da sua audição, que é descrita no seu fluir ou nos efeitos acústicos e estéticos de determinados procedimentos, instrumentais e outros:

trila, retrila, reexpõe, repete
("Andante com variazioni, em fá menor, de Haydn", 1963)

ritmo orquestral; contraponto; vozes, timbre, melodia
("Missa Solene, op. 123, de Beethoven", 1964)

um canto de oboé,
com percussões pontuando o mundo a que assistimos,
ao som dos arcos e metais

("Sinfonia Fantástica de Berlioz", 1964)

Por vezes nota-se também, nesse comentário ou descrição, o uso de regras idênticas às da própria composição musical: por exemplo, uma espécie de contraponto verbal, como em "Water Music, de Händel", 1964, e em "Prelúdios e Fugas, de Bach", 1964. Noutros casos, comentários aos nexos entre composição musical e o texto-suporte verbal (libretto de ópera, outros textos); ou ainda a evocação de algumas ligações com os contextos de onde nasce o texto musical ou com o próprio compositor (Haydn, Bach, Mozart); ou entre a música e a vida que vivemos ('A Criação, de Haydn", 1973); ou mesmo interrogações quanto à natureza da própria música:

Se há mistério na grandeza ignota,
e se há grandeza em se criar mistério,
esta música existe para perguntá-lo

("Ouvindo o Quarteto op. 131, de Beethoven", 1964)

Entre outras modalidades aqui não nomeadas, figura o louvor da música, sempre para além das palavras:

então este milagre
acontece de a música dizer o que as palavras apenas indicavam ou escondiam

("Canções de Schubert…", 1974)

A música, é diz-se, o indizível [,..]
que passa das palavras para ser apenas o ritmo e os sons e os timbres

("Ouvindo o Quarteto op. 131, de Beethoven", 1964)

E é aqui clara a afinidade com Debussy, quando diz que "a música começa aí onde a palavra é incapaz de expressar-se; escreve-se música para o inexprimível"[5].

A música é só música, eu sei
("Bach: Variações de Goldberg", 1966)

E no "Post-fácio" Jorge de Sena escreve: "a música não exprime nada senão ela mesma" (208).
Em qualquer dos casos, percebemos, e por vezes é mesmo dito, que a música provoca frequentemente no eu ouvinte um efeito de suspensão, à semelhança do que encontramos, por exemplo, na experiência da música vivida pelo monge medieval da Cantiga 103 de Santa Maria – um esquecer-se, sendo: "se escaeceu seendo"[6]. Nas palavras interrogativas de Sena:

tamanha suspensão da realidade a ponto
de real e virtual serem idênticos, e de nós
não sermos mais o quem ouve, mas quem é? A ponto de
nós termos sido música somente?[
7]

Desse modo, a música como que "reenvia ao Ser"[8] e se prolonga, actuante, no ouvinte, impregnado pelo que escutou e através disso amplificado, nele provocando uma passividade activa, um fieri: a música faz o seu ser ou, como diz Jankélévitch, "La musique […] répond […] en faisant"[9]. O ouvinte é assim constituído em sujeito criador, repercutindo o poema o refazer íntimo daquele fazer, ou fazer-se, música, que já Oscar Lopes notou [10], e se lê num dos poemas a propósito de Mozart:

um homem que é mais do que si mesmo
e um mundo que sempre outro se amplia de homens
felizes de que a música os não diga
mas os faça
[…].[11]

Ou ainda, no poema sobre as variações Goldberg, de Bach, acentua-se a transformação operada no ouvinte, pelo acto mesmo de ouvir:

[…] não há regresso após tanta invenção.
nem a música, nem nós, somos os mesmos já.
Não porque o tempo passa, ou porque a cúpula se erga,
para sempre, entre nós e nós próprios. Não. Mas sim porque
o virtual de um pensamento, se tornou ali
uma evidência: se tornou concreto.

Trata-se de uma espécie de êxtase, ou de ritual do êxtase, que nada tem a ver com a pseudoactividade de um momento puramente mimético, como o que Adorno identifica no carácter fetichista da música [12]. Ao reenviar a um "suplemento" de ser, a música distancia, pois, o sujeito do logocentrismo de uma filosofia da presença [13].

2. De entre este conjunto de poemas, centro-me aqui na recepção musical de Schönberg em dois poemas de Jorge de Sena. No comentário feito pelo poeta às duas peças e seu autor, em nota aposta a estes (e todos os poemas – traço bem seniano – têm uma nota-comentário para além do texto), vemos registados elementos sobre o tipo de inovação do compositor: dados precisos, rigorosos [14], em que sobressai um fascínio de ordem intelectual por aspectos do processo de construção da sua obra. Apesar de longo, é importante a leitura pelo menos de excertos desse seu texto crítico:

[,..] não comunguei nunca nas maldições contra o dodecafonismo e o seu fundador Schönberg, música tão legítima como qualquer outra, e, de um ponto de vista 'vanguardista', mais". É certo que Verklärte Nacht, op. 4, representa apenas um paroxismo máximo do pós-wagnerianismo, sem romper com ele […]. E hoje é mais fácil reconhecer a que ponto as teorias de Schönberg são menos uma quebra com o wagnerianismo que o desenvolvimento lógico da harmonia wagneriana e post-wagneriana (especialmente Mahler) […]. Mas o sexteto de cordas […] contém, na dialéctica de intensidade expressiva e de economia de meios, a ruptura em que o expressionismo schönberguiano se desenvolveria. O "Concerto para piano, op. 42", de 1943, uma das suas últimas obras […], mantém-se fiel ao atonalismo dodecafónico, lançado em 1909, mas com alguns traços de regressão total na repetição de certas notas da série temática, e na reaparição de certos acordes. Esta tensão regressiva, como a progressiva do sexteto de cordas, é o que mais me fascina em Schönberg […].[14]

Esse fascínio parece só ter correspondência em emoção estética perante a audição de uma das peças de Schönberg da primeira fase da composição: "Verklärte Nacht", um sexteto de cordas de 1899. Quanto à segunda peça, o "Concerto de piano, op. 42", uma obra já tardia, composta em 1943, a recepção poética parece não mostrar nenhuma adesão à música ouvida. O que, sim, parece estar presente quer num quer noutro poema é a percepção profunda dos pressupostos estéticos, tão diferenciados, de uma e de outra peça musical. O primeiro poema, sobre o "Concerto de piano", data de 1963, ao passo que o poema sobre o sexteto de cordas é do ano seguinte, de 1964. Começo pelo primeiro. Nele, o sujeito ouvinte como que rejeita a violência de tal música, não aderindo a esta forma de linguagem, fria de emoções, nem se integrando no seu fluxo: "neste chinfrim tão comovente de não comover-nos."

Duas coisas parecem aqui perturbar a audição, provocando um modo de recepção em geral disfórica do "Concerto", quando ouvido. Por um lado, a atonalidade pura, integrada em rígidos parâmetros serialistas. No poema é dada a ouvir uma música "reduzida", e que nos "reduz", a um "beco sem saída":

É que o desmascarar da música
reduzida à sua mesma inumanidade
reduz tudo o que somos ou julgamos ser
nas horas de melancolia
a este beco sem saída:
uma raiva melancólica e cordata
sem qualquer nexo com a própria solidão que exprime.
Música que é sentida e apercebida, entre outras coisas, como música do "vazio", a que falta "algo", como se lê no poema:
Música do vácuo, do vazio, do inútil, do insensível, do sem vida,
mas mais terrível que isso, não do nada,
já que o nada, a negação, seria
um pouco de consolo dúbio,
um pouco de ternura e de ilusão
.[15]

Esta música, ou parte dela, surge para o sujeito ouvinte "sem qualquer nexo com a própria solidão que exprime". Ora, para Adorno, "o discurso solitário diz mais da vida social que o discurso comunicativo", "o expressionista revela a solidão como destino universal"[16] e será precisamente ao insistir na solidão até ao paroxismo que Schönberg revela o carácter social da música.

Para Sena, essa solidão é uma solidão deixada intacta – "a solidão sobre si mesma fica" – como intacto fica também o mundo:

a derrocada monstruosa e caricata
das presunções melódicas e harmónicas
de uma sociedade vil e condenada à morte.

Tais "presunções melódicas e harmónicas", a meu ver, terão de ser olhadas à luz do facto de a beleza cromática, que é a do dodecafonismo, se construir por dissemelhanças, contrastes e antíteses, em vez de por relações de semelhança ou por analogias, como acontece na música diatónica [17]. Aqui, parece significativo ouvirmos a crítica que o próprio Schönberg faz à tonalidade quanto esta teme exceder as suas regras:

Quando ouço certas obras tonais, nas quais todas as relações incompatíveis com a tonalidade […] no final são recusadas, em favor de um acorde em fá sustenido ou dó maior, dependendo da tonalidade em causa, penso inevitavelmente nesses três reis magos, selvagens e nus, que não trazem mais que uma gravata e um chapéu".[18]

O que permanece no final da leitura deste poema parece ser a única comoção possível: a do "não ser comovido", o que contrasta com as suas demais recepções musicais, as quais desencadeiam no sujeito que as transfigura uma diversidade de poemas, de grande beleza e em sintonia com a música ouvida. Isto possivelmente representa um distanciamento relativamente à modalidade expressionista constante, embora com intensidades diversas, nas composições de Schönberg. Porventura, por ela criar a imagem de um estado desesperado do sujeito e do mundo? Ou por nela a única saída possível ser a aporia de uma subjectividade revelada no seu impoder? Ou por o sujeito, compositor e ouvinte, ter a sensação de que "reina" sobre a música através de um sistema racional, para afinal acabar por sucumbir a esse mesmo sistema?[19] Com exactidão, nunca o poderemos saber. Adorno explica como é que o dizer da verdade na música de Schönberg é feito acontecer, dizendo que esse 'dizer a verdade ou não-verdade' não se pode encontrar na simples análise de categorias como atonalidade, técnica dodecafónica, neoclassicismo, mas sim apenas na cristalização concreta de tais categorias no tecido da própria música.[20]

Talvez aqui Sena sinta, na mesma linha de Adorno, que a música diz "a verdade" e por isso, em vez de comunicar, assuste e afaste:

As dissonâncias assustam [os ouvintes], porque lhes falam da sua própria situação: por isso é que lhes são insuportáveis. [21]

É que a "rigidez da obra configura a angústia perante o desespero da sua não-verdade"[22] e, porventura, conforme ainda Adorno sugere, os ouvintes entendem-na bem demais e não gostam de ouvir tanta coincidência com a realidade:

O medo que hoje, como então, Schönberg e Webern difundem não emana do facto de eles serem incompreensíveis, mas, pelo contrário, o facto de serem demasiado bem entendidos. A sua música configura esse medo, esse espanto, essa percepção da situação catastrófica, a qual outros só conseguem contornar, regredindo. Chamam-lhes individualistas, no entanto, as suas obras não são mais que um diálogo permanente com as forças que destroem a individualidade – forças essas, cujas 'sombras sem forma' penetram, superampliadas, na sua música. As forças colectivas liquidam também na música a individualidade não redimível; porém, só os indivíduos são capazes de, face a elas e ao reconhecê-las, representar ainda o desejo da colectividade. [23]

Apesar do serialismo, parece haver sempre, na obra do compositor austríaco, resíduos da "incontinência expressiva" da sua inicial fase expressionista: na sua expressão de angústia, "a música da fase expressionista de Schönberg testemunha o seu impoder"[24], não transcende o real; "dirige-se ao sofrimento real", mas aparece como "sofrimento não transfigurado".[25] Porque tal arte "não escapa, mesmo na sua forma pura e intransigente, à reificação reinante, mas antes produz, a partir de si, características da mesma natureza daquilo a que se opõe, justamente no esforço de defesa da sua integridade."[26] É que "as obras de Schönberg, na sua fase serialista, põem de novo substancialmente o problema da forma, sem no entanto apresentarem a sua unidade orgânica por meio de processos puramente musicais"[27].

Por outro lado, o que parece também perturbar a audição, em Sena, é precisamente o serialismo, esse princípio de coerência estruturante da peça e que é, aliás, expressamente anotado no poema, ao nomear "seriados", "seriação". O "Concerto de Piano" cristaliza assim no texto:

[esta] dissertação heteróclita
e rigorosamente prosseguida no seu próprio tempo
de que o piano marca os seriados sons propostos;
e é ouvido como:
[uma] seriação
tão implacável que nem se dá por ela. (itálicos meus)

O próprio compositor diz ter recorrido a este modo de construção, que elabora tipos expressivos, organizando as séries em funções deles, para conter o seu inicial excesso de expressividade, pouco construída. Outro comentador musical, Aldo Gargani, diz que Schönberg reclama a invenção própria do pensamento musical, "[a]o insistir na construção, formação, estrutura – numa palavra, na expressão artística, mais do que em qualquer dispositivo técnico […]. Esta expressão representa, a seus olhos. a matriz construtiva que nenhuma codificação formal privilegiada pode disciplinar a priori [28].
Neste poema de Sena, sobressai justamente o limite do efeito da "construção" da peça, ou da criação de uma estrutura, aqui dita "implacável", pela sua "regressão" à forma, às pequenas formas, de um quase "classicismo", o serialista. Embora se sugira também uma questão mais geral que é, eventualmente, a de nenhuma estrutura poder, em qualquer caso, dar sentido ao sem-sentido da própria existência, como se lê no poema sobre o "Concerto":

o mais terrível desta
dissertação heteróclita
[…]
é que não há sentido em dar sentido
a uma estrutura musical, já que o sentido

é ele mesmo a sequência falsa que não significa, (itálicos meus)

Contudo, noutros poemas referentes a outro tipo de música, anterior ao Modernismo, é precisamente a estrutura da peça que se torna aliciante. No texto sobre música de Dowland, por exemplo, a estrutura é ouvida como quase "divina":

Desta música não ouço mais do que a
nítida estrutura que se oculta […]
Uma estrutura: como um deus que a face
encosta pensativo
[…].[29]

Este poema mostra a ideia beethoveniana de mundos melhores, a que Sena parece aderir em bastantes das suas outras "recepções" musicais. A propósito de Beethoven, por exemplo:

É
desejo ansioso de que um Agnus Dei
se interponha (ao contrário da morte) mediador humano
entre um nada feito música
e outro possivelmente Deus"
[30]

Ideia esta que é também aludida no poema "Fantasias de Mozart para tecla", de 1965, na figuração de um "sonho ascensional".

Pelo contrário, o texto musical diz agora o "ruído" ou a dissonância do mundo e a do sujeito, qual "busca desesperada de um ailleurs improvável", nas palavras de Daniel Sibony, a outro propósito. Tal dissonância irá dominar, logo a seguir, no Expressionismo propriamente dito, tanto em Schönberg como noutros compositores.

Já o poema escrito depois, "Noite transfigurada", sobre o sexteto de cordas "Verklärte Nacht", composto quarenta e quatro anos antes do "Concerto de Piano", parece desencadear no eu ouvinte uma emoção estética em maior sintoma com o fluxo musical:

Como tão tensas cordas
vibram assim, apaixonadamente,
a dor dos gestos que nos arcos vai
[…] e, sem voz,
o cântico dulcíssimo que volta ansioso –

Eventualmente, por a peça apresentar características do período pós-romântico, dado que o compositor trabalha ainda sobre as inovações harmónicas de Wagner ou de Strauss, embora "estique" já a tonalidade até aos seus limites possíveis. E a incipiente emancipação da dissonância não é aqui mais do que o meio extremo da subjectivização romântica. No poema "Noite transfigurada", lemos um quase "pavor" que "canta":

Depois do desespero destas formas puras
[…] em suspensas
pausas de som chorando cataclismos,
sussurros e murmúrios, gritos, […]
Tão tensas as arcadas, tão furiosas,
tão grandiosamente este pavor canta
– que humanidade resta após o dissipar-se
deste sonho de som perpetuado em cordas
vibrando assim frementemente humano? 

De facto, Jorge de Sena regista aqui, e de forma mais explícita na "Nota" sobre a peça, essa tendência, ainda germinal, para a modalidade expressionista que irá caracterizar a fase imediatamente seguinte da composição schönberguiana, a partir de 1909, sobretudo. Mas já aqui é audível a expressão poderosa de um mundo em cataclismo – e sempre a arte "nem que seja como negação pura" é "um momento do decurso do mundo"[32]. Aliás, como o próprio compositor irá declarar, doze anos mais tarde, na sua correspondência com Kandinsky, nas cartas de 1911, em plena fase expressionista, o seu desejo de a música ser pura expressão (Ausdrück) do desespero do sujeito e do estado do mundo. O intuito de na criação se apagar toda a vontade consciente, para que seja o Inconsciente a falar, sem o suporte de nenhuma teoria em acordo com Kandinsky. Diz o pintor:

aquilo a que chamo o apagar da vontade consciente na arte, […] a arte pertence ao inconsciente! O artista tem de expressar-se a si mesmo! Expressar-se sem mediação! [33]

Isso permitirá, continua Kandinsky, que a forma estética seja buscada através do só "sentimento" (Gefühl):

Neste momento não a considero [a teoria] necessária. Procuramos ainda com o sentimento.[34]

No entanto, e agora segundo Adorno, a materialidade da música mistura com o sujeito uma objectividade (Sächlichkeit):

A arte actual […] reflecte e torna consciente tudo o que desejaríamos esquecer, ergue-se contra a não-verdade da luz; opõe-se ao omnipotente estilo do néon da nossa época, configurações de uma escuridão recalcada, e apenas ajuda a esclarecer, na medida em que transporta a luminosidade do mundo com a consciência das suas próprias trevas".[35]

Como vimos, fica a impressão de que Sena, um ano mais tarde relativamente ao poema anterior, adere esteticamente a este sexteto de cordas. Mesmo assim, não será que as interrogações formuladas no texto quanto ao valor de permanência de tal música se dirigem precisamente, mas deles distanciado, a esses traços expressionistas emergentes? Por exemplo estes versos, não serão eles um sinal disso, ao acentuarem o "rigor furioso" desta música?

em contrapontos tão contínuos
que a tessitura de inconsútil música
é como um mar de luz sombria
em que se afunda este rigor furioso?
[…]
depois de tais excessos de ser música
que música podia haver?

Na sua "Nota" sobre estas peças, Sena escrevia, repito:

[a] tensão regressiva [no "Concerto de piano"] como a progressiva no sexteto de cordas ("Verklärte Nacht") é o que mais me fascina em Schönberg.[36]

Isto leva a crer que é sobretudo o conhecimento de Sena quanto às formas de composição schönberguiana o que provoca em si uma admiração que poderíamos ver em uníssono com a do Thomas Mann de Der Zauberberg, nesse seu visível apreço por Schönberg. Jorge de Sena admira, sobretudo (e quase só desenvolvo as suas próprias palavras na "Nota" referida), a capacidade de subversão dos processos de composição: a ruptura com a tonalidade e a introdução da atonalidade / dodecafonismo; como simultaneamente admira o facto de Schönberg não ter deixado de recorrer à tradição musical, imediata e mediatamente anterior (Wagner, e também Mozart, Beethoven, Brahms), trabalhando a partir dela e assim associando à atonalidade / dodecafonia outros elementos retirados dessa tradição. Isto é: por um lado, assiste-se à tendência para a dissolução da ordem tonal da música anterior (já visível, embora ainda muito incipiente, no Sexteto); e, por outro lado, vê-se que o compositor, numa fase posterior, associa o atonalismo, neste caso, dodecafonismo, com estruturas anteriormente usadas na composição: estruturas rítmicas ou métricas, ou outros parâmetros, como a altura nas harmonias. Ou ainda o facto de fazer citações tonais (no "Quarteto para cordas", de 1908, entre outros casos) e de retomar a própria noção de "concerto" ou de introduzir a "valsa" em "Pierrot Lunair", de 1912.

Quanto à audição das peças e seu impacto estético no sujeito-poeta-ouvinte, parece certo, como tentei mostrar, que o poema "Noite transfigurada" se emociona com esta música, onde uma harmonia e algumas linhas melódicas deixam ainda transparecer uma vertente encantatória, sugestiva, apaixonada, resultante de uma total abertura ao fluxo das paixões, sem que nenhuma "teoria" ou estrutura formal o controle. No entanto, o "Concerto de piano" ouve-se no poema precisamente nessa atitude de maior distanciação da emoção, possivelmente pelo seu maior destacamento em relação à forma romântica, pelo controlo formal da intensidade expressiva (e expressionista), ou seja, na sua maior frieza emotiva de "derrocada monstruosa".

Naturalmente, Jorge de Sena, como Adorno, sabia que um acorde em que não se reconhece uma expressão histórica exige do ouvinte que ele tenha em conta as implicações históricas que se lhe tornaram natureza, não querendo isso dizer que o acolhimento estético se sintonize com a racionalização do fenómeno. Ora, talvez isto mostre o quanto a inovação da música contemporânea, mesmo quando ela é entendida nos seus processos de composição e admirada, cria uma linguagem tão diversa daquela a que o ouvido estava habituado que o resultado será a existência de ruídos na audição. E é por isso que a adesão emocional e estética à música modernista poderá ser menos simples que a adesão às linguagens modernistas noutras artes: na literatura, na escultura e na pintura, sobretudo. Mesmo se é verdade que Schönberg e Kandinsky, os dois na primeira década do século XX, manifestam aproximadamente as mesmas intenções na criação musical e pictórica, dizendo o pintor:
Considero que a nossa harmonia de hoje não se encontra por caminhos geométricos, mas antes pelo antigeométrico e pelo antilógico. E esse caminho é o das dissonâncias em arte, tanto na pintura como na música. E a dissonância pictórica e musical de 'hoje' não é mais que consonância de 'amanhã'.
Palavras estas que são confirmadas pelo músico:
Também estou de acordo com o que você descreve em relação ao elemento de construção.[37]

Contudo, não há dúvida de que o pintor é em geral claramente mais bem acolhido, na sua recepção, que o músico. E isso, só por si, indica esse maior problema no acolhimento de uma linguagem musical inovadora -neste caso, tanto na atonalidade pura como na integração desta em parâmetros serialistas. Afinal, porque toda a inovação exige sempre a possibilidade de relação com o já conhecido. Mas é sobretudo na música que se torna mais problemática a abertura do ouvinte a novas modalidades de composição. Adorno confirma-o, justamente ao dizer que "o ouvido […] permanece regressivo"[38]. E parece ser exactamente isso o que o "Post-fácio" de Sena à sua Arte de Música diz:

A nossa fruição estética da arte do passado, e isso é mais evidente no caso da música, depende estritamente de uma experiência cultural dela; e se podemos fruir igualmente de música medieval ou barroca ou contemporânea, é precisamente porque culturalmente a nossa consciência estética se abriu, numa experiência de historicidade, para lá da música da nossa primeira educação musical e do nosso 'meio'[39].

Lidos estes dois poemas de Jorge de Sena, somos deixados, enquanto leitores e ouvintes, com a sua beleza poética e musical. No entanto, as profundas afinidades entre audição musical / poema, presentes em quase todos os textos deste livro, estão muito reduzidas nos dois poemas sobre partituras de Schönberg. Talvez por isso, e diferentemente do que acontece com os demais textos, não existe aqui, aparentemente, nenhum nexo, ou paralelismo formal, entre poemas e peças musicais. O que há sem dúvida é essa diferente cristalização poética de um dizer rigoroso dos dois procedimentos de criação musical do autor austríaco nestas suas peças. Tão pouco existe uma ligação entre os processos de construção dos poemas com os modos de composição musical, ligação essa que encontramos em muitos outros casos, como no início se viu. Não se trata pois de uma poesia dodecafónica, que manifestasse uma vibração por simpatia com a música. E esse destacamento do poeta-ouvinte em relação à composição dodecafónica serialista é porventura uma das razões para a menos numerosa presença de audições da música dodecafónica e serialista nesta "Arte de Música".

NOTAS
* Texto publicado em Românica. Revista de Literatura: Itinerários de Poesia: Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Ruy Belo (8) 1998, pp. 165-177 e aqui ligeiramente alterado.
1. Apud Óscar Lopes, Uma Arte da Música e outros Ensaios. Porto: Oficina Musical, 1986, p. 29.
2. Há outros casos de relação entre música e literatura. Por exemplo, e referindo apenas alguns casos, tomar por modelo os procedimentos musicais de um compositor: Oscar Wilde, Bernard Shaw, Proust, Thomas Mann e o impacto de Wagner sobre eles; ou como modelo de uma composição (Kundera e o seu romance baseado numa sonata de Mozart, ou entre nós, por exemplo, A. M. Machado, em Arte da Fuga); textos literários que reflectem sobre um texto musical, ou simplesmente lhe dão relevo dentro do seu texto (entre nós, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade, Vasco Graça Moura, Adalberto Martins, entre outros; Hopkins, Stendhal, Jane Austen, George Eliot); que comentam processos de composição ou
que descrevem o fluir da música (Thomas Mann), como já noutro espaço tive ocasião de referir (Cfr.: "Uma leitura musical de Aparição de Vergílio Ferreira". In O Sexo dos Textos. Lisboa: Caminho, 1995, p. 184.
3."Post-fácio" (1967; ver. 1969; acresc. 1977). 'Arte de Música: trinta e duas metamorfoses musicais e um prelúdio seguidos de um pot-pourri e com um post-fácio do autor". In Poesia-II. 1968; Lisboa; Ed. 70, 1988, pp. 205-212; p. 207.
4."Ouvindo poemas de Heine como Lieder de Schumann", 1964; "Assim falou Zaratustra, de Richard Strauss", 1965, entre outros.
5. Apud Guido Salvetti, Historia de la Música, El siglo XX, 1ª. parte. Ed. Espanola coord. e rev. por Andrés Ruiz Tarazona. Trad. Carlos Alonso. Madrid: Turner, 1986, p. 46 (Original: Torino, 1977).
6. Este monge, de Afonso X, suspenso pelo canto de uma ave, não dá pela passagem de trezentos anos "ou mais": "oyu hua passarinna / cantar log'en tan bon son, que sse escaeceu seendo / e catando sempr'alá. Atan gran sabor avia / daquel canfe daquel lais, que grandes trezentos anos / estevo assi, ou mays, cuidando que non estevera / senon pouco."
7. Jorge de Sena, "Bach: Variações de Goldberg", p. 171.
8. Christine Buci-Glucksmann, L’Enjeu du beau: musique et passion. Paris: Galilée, 1992, p. 147.
9. Vladimir Jankélévitch. La Musique et l'inéffable. Paris: Seuil, 1983, p. 107.
10. Oscar Lopes, op. cit., p. 45.
11. "Fantasias de Mozart para tecla", 1965, p. 178.
12. Theodor Adorno. Dissonazen; über den Fetischcharakter in der Musik und die Regression des Hörens. Gesammelte Schriften. Band 14. 1956; Frankfurt: Suhrkamp, 1973, p. 42. Traduções minhas dos textos de Adorno.
13. Parafraseando Christine Buci-Glucksmann, p. 168.
14. E na "biblioteca" musical do poeta, conforme indicação de Mécia de Sena, existem cerca de dez discos com diferentes obras de Schönberg, que o poeta terá ouvido longamente.
15. 'Sena, "Noite transfigurada" e "Concerto piano, de Schönberg", em "Notas a alguns poemas". In Poesia II, pp. 230-231.
16. E o "nada" pode ser música, como diz Sena noutro poema, "Missa Solene, op. 123, de Beethoven": "[mediação] entre um nada feito música/ e outro possivelmente Deus."
17. Adorno, "Schönberg und der Forschritt". In Philosophie der neuen Musik. Gesammelte Schriften. Band 12, 1958. Frankfurt: Suhrkamp, 1975, p. 48: "Die 'einsame Rede' spricht mehr aus von der geselschaftlichern Tendenz ais die Kommunikative"; p. 51: "der Expressionist deckt Einsamkeit als Augemeinheit auf."
18. Ver sobre o assunto C.B.-Glucksmann, p. 161.
19. A Schönberg, "Tonalität und Gliederung" (1925). In Stil und Gedanke. Aufsätze zur Musik. Gesammelte Schriften. 1 S.Fischer Verlag, 1976, 125, p. 208, apud Aldo Gargani. "Thecniques descriptives et procédures constructives: Schönberg, Wittgenstein". In Jean-Pierre Cometti (ed.). Ludwig Wittgenstein. Sud: Revue Littéraire. Marseille, 1986, p. 102.
20. Cfr.: Adorno "Schönberg und der Forschritt". In Philosophie, p. 62: "Musik entwirft das Bild einer Verfassung der Welt, die, zum Guten oder Argen, Geschichte nicht mehr kennt"; p. 71: "die Aporie der ohnmächtigen Subjektivität". P. 68: "Das Subjekt gebietet über die Musik durchs rationale System, um selber dem rationalen System zu erliegen".
21. Adorno, "Einleitung". In Philosophie, p. 14: "Wahrheit oder Unwahrheit Schönbergs […] lässt sich nicht in der blossen Erörterung con Kategorien wie Atonalität, Zwölftontechnik, Neoklassízismus treffen, sondem einzig in der konkreten Kristallisation solcher Kategorien in Gefuge der Musik an sich".
22. Adorno, "Einleitung". In Philosophie, p. 18: "Die Dissonanzen, die sie [die Hörer] schrecken, reden von ihrem eigenen Zustand: einzig darum sind sie ihnen unerträglich".
23. Adorno, p. 27: "Ihre Starre ist die Angst des Gebildes von seiner verzweifelten Unwahrheit".
24. Adorno, no texto Dissonanzen: über den Fetischcharakter in der Musik, p. 50: "Der Schrecken, den Schõnberg und Webern heute wie einst verbreiten, rührt nicht ihrer Unverstándlichkeit her, sondem davon, dass man sie nur allzu richtig versteht. Ihre Musik
gestaltet jene Angst, jenes Entsetzen zugleich, jene Einsicht in der katastrophischen Zustand, dem die anderen bloss ausweichen können, indem sie regredieren. Man nennt sie Individualisten, und doch ist ihr Werk nichts ais ein einziger Dialog mit den Mächten, welche die Individualität zerstören – Mächten, deren "ungestalte Schatten" übergross in ihre Musik einfallen. Die kollektiven Mächte liquidieren auch in Musik die unrettbare
Individualität, aber bloss Individuen sind fähig, ihnen gegenüber, erkennend, das Anliegen von Kollektivität noch vertreten."
25. Adorno, "Schönberg und der Fortschritt". In Philosophie, p. 47: "Im Ausdruck der Angst ]…], bezeugt die Musik aus Schönberges expressionistischer Phase die Ohnmacht".
26. Adorno, pp. 46-47: "Was die radikale Musik erkennt, ist das unverklärte Leid des Menschen."
27. Adorno, "Vorrede". In Philosophie, p. 9: "die Kunst [ist] nicht von der allerschenden Verdinglichung ausgenommen, sondern gerade im Bestreben. Ihre Integrität zu verteidigen, aus sich heraus Charaktere des gleichen Wesens gervorbringt, dem sie widerstrebt".
28. Adorno, "Einleitung". In Philosophie, p. 27: [nur Schönbergs Spätwerke] stellen substantiell abermals die Frage des 'Gestalts', ohne doch dessen organische Einheit mit den rein musikalischen Vorgängen zu präsentieren".
29. Aldo Gargani: op. cit, p. 103.
30. "Ouvindo canções de Dowland", 1960.
31. "Missa Solene, op. 123, de Beethoven, 1964.
32. Daniel Sibony. Les Trois monothéismes: juifs, chrétiens, musulmans, entreleurs sources etleurs destins. Paris: Seuil, 1992, p. 40.
33. Adorno, "Das Altern der neuen Musik". In Gesammelte Schriften, Band 14. 1956; Frankfurt: Suhrkamp, 1976, p. 157: "Was Kunst sagt, ist, wäre es auch bestimmte Negation, selbst ein Moment des Weltlaufs […].
34. Wassily Kandinsky und Arnold Schönberg: Der Briefwechsel. Herausgeg. von Jelena Hahl-Koch. Stuttgart: Verlag G. Hatje, 1993, pp. 17-18: "[was ich] Ausschaltung des bewussten Willens in tfer Kunst nenne; […] die Kunst gehört aber dem Unbewusstenl Man soll sich ausdriicken! Sich unmittelbar ausdrücken!" Traduções minhas.
35. p. 33: "Das halte ich jetzt nicht für nötig. Wir suchen noch mit dem Gefühl". Adorno, "Einleitung". In Philosophie, pp. 22, 23-24: "Kunst heute […], ali das reflektiert und zum Bewusstsein bringt, was man vergessen möchte. [Sie tritt] in Gegensatz zur unwahren Helle, Setzt dem omnipotenten Zeitstil des Neonlichts Konfigurationen jenes Verdragten Dunkeln entgegen und hilft zur Erhellung einzig noch, indem sie die Helligkeit der Welt bewusst ihrer eigenen Finsterniss úberfuhrt."
36. Sena, "Nota" sobre Arte de Música, pp. 230-231.
37. Na "Correspondência" entre Kandinsky e Schönberg [Der Briefwechsel, pp. 15; 17-18), diz Kandinsky, p. 15: "Ich finde eben, dass unsere heutige Harmonie nicht aud dem 'geometrischen' Wege zu finden ist, sondern auf direct antigeometrischen, antilogischen. Und dieser Weg ist der 'Dissonanzen in der Kunst' also auch in der Malerei ebenso, wie in der Musik. Und die 'heutige'malerische und musikalische Dissonanz ist nichts ais die Consonanz von 'Morgen'" E diz Schönberg, pp. 17-18: 'Auch was Sie über das konstruktive Element beschreiben, glaube ich."
38. Adorno, Dissonazen: uber den Fetischcharakter in der Musik, p. 39: "reggressiv […] bleibt das Hören."
39. Sena, "Post-fácio", p. 209. Deixo aqui o meu reconhecimento a Rui Vieira Nery pela sua confirmação esclarecedora quanto aos modos de construção destes textos musicais.