Como atesta a foto que já aqui reproduzimos, Jorge Amado integrava a platéia da primeira sessão de “Literatura” no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, na Bahia — a mesma, dia 11 de agosto de 1959, na qual Jorge de Sena expôs a sua “tese” e foi “relator” de 4 comunicações. Certamente, daí vem o conhecimento pessoal entre os dois Jorges, depois aprofundado.
Porém, a participação de Jorge Amado no gigantesco colóquio não se restringiu à assistência. De uma das sessões consagradas à “Língua”, resultou a proposta “para que se introduzisse o estudo das línguas africanas no currículo da Faculdade de Filosofia”, levando o antropólogo Vivaldo da Costa Lima a manifestar-se em prol da língua iorubá. Igualmente favorável, Jorge Amado pronuncia-se com firmeza, conforme registram os arquivos do evento [1]:
O Sr. Jorge Amado – invocando sua recente admissão como obá de Candomblé junta a sua voz à do Relator e aparteantes que se seguiram no sentido de que efetivamente seja criada a cadeira de iorubá na Universidade da Bahia. Acredita que o Magnífico reitor da Universidade da Bahia, que é realmente magnífico,terá sensibilidade bastante para atender a esta sugestão tão oportuna.
Sobre Jorge Amado e o Candomblé, não será demais recordar o testemunho perplexo de Eduardo Lourenço, que privou com o romancista durante o ano em que esteve na Bahia como professor de Filosofia (1958-9) [2]:
Jorge Amado tal como o lemos nos livros é de esquerda e naquela altura esta ideologia de esquerda era pouco compatível com as manifestações ditas primitivas. Então, com grande espanto nosso, fomos convidados para assistir à iniciação, à entronização do Jorge Amado como pai de santo. E lá estivemos. Eu disse para mim mesmo: “Não é possível que este homem esteja ao mesmo tempo de um lado e de outro…” E ele estava, mais do outro do que daquele que eu pensava estar, o ocidental.
Assim, não admira que uma visita a uma “Casa de Candomblé” constasse da programação, digamos, recreativa do Colóquio. Na verdade, como atestam vários testemunhos, o que houve foi uma grande festa no mesmo terreiro onde Jorge Amado foi alçado a Obá, o Ilê Axé Opô Afonjá, e onde costumava levar os amigos estrangeiros, como fará em 1960 com Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Terreiro da respeitadíssima Senhora, que, mais tarde, em 1965, recebeu o título de “Mãe Preta do Brasil” e foi aclamada pelas comunidades religiosas afro-brasileiras, que lotaram o Maracanã, no Rio de Janeiro, com seus representantes, além de políticos e jornalistas. Para esclarecer os coloquistas sobre o que presenciariam, Vivaldo da Costa Lima escreveu o opúsculo Uma festa de Xangô no Opô Afonjá, distribuído na ocasião [3].
Coube a Jorge Amado, aliás Otun Obá Arolu, saudar os convidados, em nome do terreiro e de sua Ialorixá, num discurso que foi publicado na íntegra no Diário de Notícias de Salvador, e que Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o famoso Mestre Didi, filho carnal de Senhora, transcreveu no seu livro História de um terreiro nagô [4], sublinhando sua “enorme repercussão”. Dele, alguns destaques:
Na minha qualidade de Otun Obá Arolu deste Axé Opô Afonjá, tenho a honra e a alegria de receber, em nome de todas as iyawô, Ogan e Obá, em nome de Senhora, nossa mãe e mãe deste terreiro, sucessora da inesquecível Aninha, aos membros e convidados do IV Colóquio Luso-Brasileiro. Sede bem-vindos a esta casa de Xangô e que as graças dos orixás protejam vosso amor à cultura e vossa dedicação a estudos tão importantes para nós, brasileiros. […]
Estais em vossa casa porque este terreiro de Xangô, este candomblé de Senhora, tem sido – permanentemente e sempre – uma casa da cultura e da inteligência baiana. […]
Aqui passaram e estudaram Martiniano do Bomfim, babalaô desta casa, nosso Edson Carneiro, o feiticeiro Pierre Verger, e hoje nós, homens de cultura, somos defensores de seu segredo e de sua grandeza, ao lado dessa figura invulgar de mulher, feita de uma só peça, rainha, se a este título damos sua significação mais profunda. […]
Sim, é necessário que se saiba e se proclame nosso orgulho baiano e brasileiro das raízes africanas sobre as quais estamos plantados […]
Embora essa sessão esteja mencionada na carta de 15/8/959 (“à noite as cerimónias do candomblé, o culto negro”), dirigida a Mécia, não encontramos notícia de que Jorge de Sena dela tenha participado.
Certo é que os dois Jorges tiveram algum convívio, a ponto de Sena ir jantar à casa de Amado, em Copacabana, como se lê na carta de 17/9/1959, endereçada a Mécia a partir do Rio e a ponto de Sena incluir o número de seu xará na lista de “telefones úteis” que fornece a Mécia em carta enviada de São Paulo, a 6/10;1959, relativa ao desembarque da mulher e dos filhos no Rio, vindos de Portugal: “Para prevenir qualquer hipótese de eu não estar no Rio [a esperá-los], que não acontecerá, se Deus quiser e como eu quero ardentemente”. Na lista, dentre outros, figuravam também os nomes de Manuel Bandeira, Alexandre Eulálio e Cleonice Berardinelli. E adverte a esposa: “Toda esta gente se mexerá por nós no que for preciso” [5].
Em termos críticos, o primeiro comentário de Sena sobre o escritor baiano é enaltecedor: “O Jorge é hoje uma senão a mais ilustre e respeitada figura de escritor, ao lado do Bandeira e do Drummond (carta a Mécia de S. Paulo, 3/10/959).
Embora Sena não tenha dedicado ensaio algum à obra de Amado, este é mencionado com apreço em vários dos seus textos que privilegiam o Brasil, hoje reunidos em Estudos de Cultura e Literatura Brasileira, de que é exemplo o “Papel dos escritores no Brasil”, aqui transcrito.
1. Maria de Fátima Maia Ribeiro. IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS LUSOBRASILEIROS: relações culturais, identidade, alteridade. Tese de Doutorado. Salvador, UFBA,1999.
2. A miragem brasileira. Colóquio Letras nº 171, Lisboa, FCG, maio/agosto 2009, p. 303
3. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/93351111/Uma-Festa-de-Xango-No-Opo-Afonja-Vivaldo
Mais informações sobre essa “festa”, e sobre Senhora, podem ser encontradas em http://jeitobaiano.wordpress.com/2010/03/31/mae-senhora-%e2%80%93-110-anos-do-nascimento/
http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n2_3_p5.pdf
http://www.posafro.ufba.br/_ARQ/dissertacao_luiza_dos_reis.pdf
4. SANTOS, Deoscóredes Maximiliano dos (Mestre Didi). História de um terreiro nagô. 2. ed. São Paulo: Max Limonard, 1988.
5. A correspondência trocada entre Jorge e Mécia nesta “fase brasileira” está em vias de publicação, sob responsabilidade da pesquisadora Maria Otília Pereira Lage.