Embora escrito em 1998, quando se assinalavam os 20 anos de falecimento dos três grandes escritores, este ensaio de Fernando J. B. Martinho (cuja permissão para o reproduzir muito agradecemos) permanece como importante contributo a uma visão de conjunto da poesia portuguesa na 2a. metade do séc. XX, e, ao rastrear o quanto foram eles "fermento activo na cena poética nacional", convida a estudos que estendam ao século XXI essa tão fecunda herança.
À entrada do último livro de Luís Filipe Castro Mendes, Outras Canções (1998), há uma epígrafe de Ruy Belo: «O receio da morte é a fonte da arte». Ela articula-se com uma outra, de Umberto Saba, no fim do volume: «Ed è il pensiero della morte che, in fine, aiuta a vivere». Esta combinação de epígrafes, vinda de um autor inserido num período que tem particularmente insistido na inseparabilidade da poesia e da vida, sublinha a ideia de que o receio, ou o pensamento, da morte é não apenas a fonte da arte, mas também o motor da própria vida.
Num poema da primeira parte do livro (p. 21), Castro Mendes glosa uma epígrafe de Jorge de Sena. E o mesmo poeta se encontra palimpsesticamente presente em dois textos da terceira parte, «Camões na Ilha de Moçambique: uma variação» (1978o, p. 53) e «Gonzaga na Ilha de Moçambique: uma meditação» (ibid., p. 54). No primeiro (dedicado à memória de um outro poeta que também cantou a Ilha, Rui Knopfli), através da citação de um seu título; no segundo, por via da alusão a um celebrado verso de Gonzaga («eu tenho um coração maior que o mundo»), objecto de uma sua homenagem de alguns anos antes. Um e outro monólogos dramáticos, diferentemente do que se verificava nos textos de Sena, os poemas de Castro Mendes ilustram bem a tendência citacionista da sua poesia (e não só; igualmente da actual lírica portuguesa), que, por entre alusões, referências, citações, apela para a cumplicidade de um leitor minimamente capaz de aceder à enciclopédia envolvida. Observe-se, de passagem, como, ao mesmo tempo, eles exemplificam o carácter frequentemente múltiplo do jogo intertextual, pondo em evidência, através do cruzamento de diversas vozes, a infinidade de elos da cadeia que constitui a tradição literária.
Se, como acabamos de ver, a presença de dois dos poetas que aqui homenageamos é facilmente reconhecível na recolha de Luís Filipe Castro Mendes, já a do terceiro, Vitorino Nemésio, não é tão imediatamente perceptível. Se, no entanto, lermos com atenção um dos dois poemas dedicados a Ouro Preto no livro, «Anoitecer de Ouro Preto» (pp. 27-28), não deixaremos de notar nele um eco de Nemésio, ainda que muito diluído. Este é, aliás, um texto que mostra à perfeição como a escrita poética é feita de ecos, reenvios, numa activação permanente da memória literária cujas linhas muitas vezes aparentemente se perdem em disposições capilares ou entrelaçamentos em filigrana dificilmente identificáveis. A memória mais presente no poeta quando da composição do texto, que adopta a forma romancística, é a do «Romance de Ouro Preto» de David Mourão-Ferreira (1988, pp. 398-400). O problema é que na memória deste se recortava com toda a nitidez o Nemésio autor de «romances» e evocador do sortilégio da cidade de Minas Gerais, e, por isso, ele o invocava como um dos espíritos do lugar e o convocava ao espaço do poema para lhe «fazer companhia» (ibid., p. 399). Assim, a memória do texto de Mourão-Ferreira arrasta consigo a dos textos de Nemésio, se é que, como creio, a destes não se impõe, afinal, de modo menos oblíquo do que poderíamos pensar.
Se passarmos a outros livros de muito recente publicação, sem dificuldade nos daremos conta da centralidade dos nossos três poetas nos cânones pessoais dos seus autores. Atentemos, por exemplo, no último livro de Nuno Júdice, A Fonte da Vida, de 1997. Aí encontramos um poema intitulado «Vénus Anadiómena» (p. 42), em que, de imediato, lemos uma alusão à sequência de Jorge de Sena, «Quatro sonetos a Afrodite anadiómena» (1978a, pp. 149-153). O texto de Júdice segue, no entanto, um caminho totalmente diverso, como, logo, parece sugerir a simples mudança de designação da deusa, da mitologia grega para a romana. Com efeito, o poema de A Fonte da Vida, se exceptuarmos o jogo aliterativo presente num dos versos («fruto de fumo no fundo da fonte»), é alheio ao experimentalismo fónico do texto seniano, e prefere dizer o «desejo» em palavras que não «deixem de significar semanticamente» (cfr. Sena, 1978a, p. 164): «e dá-me / a cor de pálpebras sem o peso do / sono!, para que a tua presença se / vista de mármore, os teus braços / ganhem a consistência da eternidade, // e uma onda rebente nas raízes / de uma frase tumultuosa, levantando / o vento da terra, abrindo as nascentes / do amor, e restituindo-te o corpo / que desejo com a queda das folhas, a / nudez dos ramos, a embriaguez do ar». A Vitorino Nemésio, por sua vez, é dada a fala num poema incluído em Não É Certo Este Dizer, de João Miguel Fernandes Jorge, um dos poetas que, nos anos 70, estavam «com o que ele» fazia e lhe compreendiam «a tradição», para usarmos os termos com que Joaquim Manuel Magalhães se referia à identificação de «alguns da nova poesia» com o camarada mais velho numa conhecida nota crítica sobre Sapateia Açoriana, Andamento Holandês e Outros Poemas (p. 80). Ruy Belo, a quem, como há pouco vimos, Luís Filipe Castro Mendes foi buscar a epígrafe liminar de Outras Canções, fora já objecto de uma glosa por parte do mesmo poeta numa sua colectânea anterior, no poema «Nós os vencidos do Surrealismo» (1994, p. 20), em que a transformação operada implicava essencialmente uma mudança do campo religioso para o campo literário. Mas deixemos por ora este texto, a que, oportunamente, havemos de voltar, e passemos a um outro ponto, uma vez que o que nos interessou essencialmente ao referir os textos recentes de Júdice, Fernandes Jorge e Castro Mendes foi chamar, rapidamente, a atenção para a presença viva, actuante de Sena, Nemésio e Ruy Belo na memória literária de três poetas representativos da lírica portuguesa das últimas décadas.
Falecidos por coincidência no mesmo ano, Nemésio, Sena e Ruy Belo correspondem a momentos muito diferentes da nossa poesia novecentista. Sem pretendermos, de modo algum, prendê-los, a nenhum deles, aos ditames de uma periodização limitadora, não nos parece, todavia, possível dissociar Nemésio do Segundo Modernismo, não obstante as profundas mudanças de rumo que se observam ao longo do seu extenso itinerário poético, nem desligar Sena de um momento ulterior dentro da nossa tradição modernista que alguns já têm designado, não sei se convincentemente, de Terceiro Modernismo (cfr. Lopes, 1987, p. 770), apesar da complexa evolução por que também passa a sua abundante produção poética, nem separar Ruy Belo do momento em que, entre os anos 60 e o decénio seguinte, a modernidade, na arguta observação de Eduardo Lourenço, de si mesma se despedia (p. 199). Ao morrer aos 76 anos, Nemésio teve, de alguma forma, ocasião de ver concluído o seu edifício poético, até simbolicamente, como o atesta a publicação em 1972 de Limite de Idade. Já do frenesi criativo de Sena, falecido antes de completar os 60 anos, muito haveria ainda a esperar, tanto mais que entre os últimos textos compostos se encontram alguns dos seus melhores. Quanto a Ruy Belo, é extremamente doloroso fazer contas (que às vezes nos esquecemos de fazer) e verificar, com dura surpresa, que a morte lhe veio com pouco mais de 45 anos. Quando morre, Nemésio é um poeta reconhecido pelos seus pares e pela crítica; a consagração levou algum tempo, mas quando chegou, chegou com força, e o seu lugar no cânone tem-se mantido sem desfalecimentos até hoje. Sena era, ao morrer, uma figura respeitadíssima, e não lhe faltava o reconhecimento dos outros poetas e dos críticos; descrente desse reconhecimento, que sempre lhe pareceu pouco, o que pensará, lá onde estiver, da sua imparável canonização nos últimos vinte anos? A Ruy Belo, desde o princípio que lhe não minguou a consideração dos que, na instituição literária, definem o lugar e a estatura de um escritor, mas a glória, coisa que a sua formação lhe dizia ser efémera, não pareceu preocupá-lo grandemente.
Não obstante o que acima ficou dito acerca de Nemésio e de Sena, é curioso observar que a definição da sua verdadeira estatura enquanto poetas faz deles, enquanto fermento activo na cena poética nacional, fundamentalmente poetas da segunda metade do século, o que, no caso de Ruy Belo, pela simples factualidade cronológica, não há que fazer ressaltar. É certo que Nemésio publicou três títulos importantíssimos na primeira metade da centúria, La Voyelle Promise (1935), O Bicho Harmonioso (1938) e Eu, Comovido a Oeste (1940), mas o seu efeito sobre a poesia da época ou imediatamente posterior parece-nos reduzido, como também nos parece indubitável que, se esses livros não tivessem tido continuidade nos publicados a partir do começo dos anos 50, a estatura literária do poeta não teria atingido as proporções com que hoje a vemos, das de mais vincada presença em todo o período pós-Pessoa. Do mesmo modo, não é possível desconhecer as primeiras colectâneas de Sena, mas também nos parece estar fora de dúvida que é a partir da publicação de As Evidências, de 1955 e de Fidelidade, de 1958, que a grandeza do poeta se torna claramente perceptível. É também, aliás, a partir da década de 50 que podem reconhecer-se em alguns poetas o que poderíamos considerar os primeiros sinais da herança de um e de outro.
Comum aos três poetas, é, como já se terá depreendido do que atrás dissemos, a centralidade da sua posição no cânone dos poetas revelados nas últimas décadas. O reconhecimento dessa relevância, e do exemplo que representaram para as novas gerações, tem mesmo levado algumas vozes a falar de uma aproximação de Nemésio e de Sena ao Pós-Modernismo, o que se nos afigura em qualquer dos casos (cfr., relativamente a Nemésio, Mourão-Ferreira, 1992, p. 4, e, relativamente a Sena, Silvestre) dificilmente defensável. Uma coisa é a presença seminal de um e de outro poeta na memória literária dos poetas enquadráveis no período da nossa lírica que se poderia considerar pós-modernista; outra, muito diferente, é situá-los periodologicamente, por esse motivo, sob o signo do Pós-Modernismo. Que ambos abriram caminhos determinantes a muitos dos poetas revelados a partir dos anos 70, como teremos ocasião de ver, é incontestável, mas isso não autoriza, de modo algum, um deslocamento periodológico, que não tem a sustentá-lo mais do que um ou outro traço avulso sempre passível de se puxar para onde se queira. Nem a complexidade do enquadramento periodológico de um e de outro poeta, adensada pela grande diversidade de pistas e registos que se observa nos seus percursos, permite aquela aproximação. Integram-se os dois, cada um a seu modo, é evidente, e com pontos de partida geracionais muito diferentes, no paradigma modernista, cujo processo evolutivo as suas obras reflectem, ora aproximando-se mais de uma ora da outra das duas vertentes que Sena distinguiu no Modernismo (cfr. 1994, pp. 74-75). Ao longo dos anos, Sena sempre fez questão de acentuar o vector vanguardista do nosso Modernismo, a ponto de num texto de 1967 (cfr. 1988, pp. 107-123), em plena vigência de tendências neovanguardistas na nossa poesia, por um alargamento excessivo do conceito de vanguarda, quase deixar rasurado o carácter duplo do Modernismo que noutros textos não deixou de destacar (e.g. 1994, pp. 13-80). Deixem-se aqui registadas como exemplo dessa quase indistinção entre vanguardismo e Modernismo duas passagens do texto de 1967: uma que se fala do grupo da presença a tomar "a bandeira vanguardista nas suas mãos" (p.114), quando é bem sabido que o Segundo Modernismo se distingue precisamente, embora de alguns dos autores nele enquadráveis não estejam ausentes preocupações vanguardistas, pela clara preponderância do vector modernista (stricto sensu) sobre o vector vanguardista; a outra em que, a propósito da poesia de Reinaldo Ferreira, se diz ser ela «um hábil compêndio de todas as conquistas formais do vanguardismo menor» (p. 122), quando essa poesia é generalizadamente vista na continuidade do que no Primeiro e no Segundo Modernismos passa ao lado da vertente vanguardista. Ora, nada mais longe da fidelidade de Sena ao espírito vanguardista que, a certo passo do mesmo texto, o faz, por exemplo, dizer que «depois de 1915, e sobretudo depois de 1945, quando se dá como que o triunfo definitivo do vanguardismo, nunca mais foi possível em Portugal que um poeta se alheasse de padrões vanguardistas, sem correr o risco de ser medíocre, passadista, inculto, provinciano, de baixo nível de cultura e gosto» (p. 112), do que o olhar lançado por alguns poetas dos últimos decénios sobre «modernismos» e «vanguardas», que, aqui, ilustro pelas palavras de um deles, em texto versificado que serve de posfácio a Gramática do Mundo, de Maria de Lourdes Belchior: «Modernismos e as poses que se lhes seguiram/até há poucos anos atrás acabaram.» (cfr. Magalhães, in Belchior, 1984, p. 117); «Conseguiremos nós reencontrar a paz/ da linguagem que nos reensine um mundo / sem a brutalidade do que nos mostrou / o arruinado pavor das vanguardas?» (ibid., p. 119).
Quanto a Nemésio, frequentemente a sua poesia se insere, como deixei dito noutro lugar, «na linha mais transgressiva do Modernismo», pelo gosto pronunciado que evidencia por «dissonâncias, prosaísmos, ou sinuosidades ou inesperadas mudanças» do discurso, por todo o tipo «de experimentações ou ousadias a nível do trabalho de linguagem» (cfr. Martinho, inédito), que levaram inclusive alguns experimentalistas a ver nele um «precursor» (cfr. Castro, 1985, p. 159). Ruy Belo, que situámos, como estarão lembrados, de acordo com a proposta de Eduardo Lourenço (p. 199), no momento em que a modernidade se despede de si mesma, está ainda do lado dessa modernidade, como pode depreender-se de alguns pontos essenciais da sua poética, que retiro de uma entrevista dada nos anos 60: o entendimento da poesia como «fundamentalmente uma aventura de linguagem» (1984, p. 23), o acentuar da sua «natureza revolucionária – renovação da sensibilidade, da linguagem» (ibid.,p. 24), e a «atenção» prestada aos problemas levantados por duas correntes dominantes nos anos 60, «a do realismo» e «a da vanguarda», embora ele se considere incluído no que considera a terceira corrente, a dos que «se empenham sobretudo em solucionar as questões que a sua própria obra lhes vai pondo», e a que associa também os nomes de António Ramos Rosa e Herberto Helder (ibid,, pp. 24-25).
Debrucemo-nos, finalmente, em respeito pelo título desta comunicação, sobre as heranças de cada um dos poetas, individualmente considerados, se é que tal é possível ou conveniente. E comecemos, como manda a cronologia, pelo mais velho, Nemésio. E pela questão de saber se entre os seus herdeiros estariam os surrealistas. Isto porque se tem posto o problema, e Sena foi um dos que melhor o puseram (cfr. 1988, pp. 247-249), das possíveis relações das três obras publicadas por Nemésio a partir de 1935 com o Surrealismo. Sem descartar a possibilidade de o autor de La Voyelle Promise ser, como diz, «sabedor e consciente de 'ismos' em geral e surrealismos em particular» (p. 248), Sena conclui que nem Nemésio nem Casais, que, nesse ponto, põe a par daquele, «absorveram nem estavam interessados em absorver surrealismo algum […], para lá talvez de uma certa libertação do discurso poético que, todavia, por mais desarticulado […] que fosse, não perdia contacto com a lógica tradicional expositiva de expressão» (p. 248). Do que parece não haver dúvidas é que Nemésio não figurava entre as leituras dos nossos surrealistas dos fins dos anos 40 e princípios de 50, como também, por diferentes razões, que têm a ver com a sua publicação tardia nos anos 60, não constavam os Poemas Surdos de Edmundo de Bettencourt. É certo que, numa piedosa nota a «Para uma cronologia do surrealismo em português», um texto de 1973, de Cesariny, são mencionados os três referidos títulos de Nemésio, o de Bettencourt, a par de outro presencista, o pintor Júlio (p. 264), mas é evidente que os três nomes ali figuram a bem da verdade histórica, que um olhar retrospectivo de alguma forma exige. Será em poetas revelados pouco depois do breve e intenso surto surrealista, na sua primeira fase, que iremos encontrar as que poderíamos entender como as primeiras marcas de uma influência de Nemésio, se descontarmos o caso açoriano, que, pela sua extensão e profundidade, mereceria um estudo à parte e feito por especialista da literatura dos Açores, que eu reconhecidamente não sou. Entre esses poetas, figura seguramente Pedro Tamen, cuja convergência com Nemésio se verifica por dois lados: por uma identidade temática, de signo religioso, especialmente sensível nos seus primeiros livros, e por um comum comprazimento deliciado no jogo verbal que a poesia também é e nunca deixou de ser, como uma das mais nobres manifestações do homo ludens. A herança que recebe de Nemésio um outro poeta que se estreia no mesmo ano de Tamen, Fernando Echevarría, não passa pelo ardente apelo místico patente nas suas primeiras recolhas, inequivocamente com outra proveniência, a da tradição dos grandes místicos espanhóis, mas pelo impulso metafísico que, nos anos 80, percorre dois livros seus de explícita referência filosófica» (cfr. Echevarría, 1993, p. 5), Introdução à Filosofia (1981) e Fenomenologia (1984), nos quais Óscar Lopes certeiramente vislumbrou ecos do Nemésio mais explicitamente heideggeriano (cfr. Saraiva e Lopes, p. 1107). Também não será de pôr de parte a hipótese de o Nemésio dos anos 50 com inquietações metafísico-religiosas ter pesado nas leituras do primeiro Ruy Belo, absorvido por idênticas preocupações, mas, surpreendentemente, são escassas as referências ao autor de Conhecimento de Poesia nos seus escritos críticos. Há, sim, uma referência ao Nemésio de tão grande voga televisiva num passo de um seu poema de Transporte no Tempo, de 1973, à volta do poeta seu amigo João Miguel Fernandes Jorge (19816, pp. 71-72), nojeito muito seu de irónica e deambulatória coloquialidade: «O joão miguei agora quase se pendura / do que o nemésio na televisão nos diz / e o nemésio é certo goza como um preto / pois sobre o cristo que decerto gostariam que falasse / fala do neolítico ou de coisas / como o começo do comércio entre as nações». A obra de Nemésio ocupou, de resto, um lugar de destaque no horizonte de outros poetas nascidos na primeira metade dos anos 30, para além de Tamen e Ruy Belo. Ainda muito recentemente António Osório, que se iniciou nas revistas dos anos 50, mas que só volvidas duas décadas veio a publicar em livro, manifestava, numa entrevista, o seu apreço pelo poeta açoriano (Público, «Leituras», de 28 de Março de 1998). E Herberto Helder reservara-lhe, na antologia Edoi Lelia Doura, de 1985, generoso espaço, quando nela não incluiu nem Sena nem Ruy Belo, não por não os ter na alta conta em que certamente os teve, mas porventura por não os ver «entregues […] a uma comum arte do fogo e da noite» sob cuja égide colocou a sua magnífica e «ferozmente parcialíssima» antologia. A este respeito, é curioso observar a atitude dos organizadores de uma não menos parcialíssima mas não tão convincente antologia, Sião, Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião, relativamente aos nossos três poetas. Transcrevo, sem comentários, que me fariam alongar desnecessariamente a exposição, passagens das notas de apresentação, brevíssimas, aliás, a cada um deles. De Nemésio se diz (p. 53), depois de lhe referir o lugar e as datas de nascimento e morte: «Aquilo que dele até o público culto lembra resume-se à caricatura com que sempre a TV maquilha quantos ali vão. Limite de Idade (1972) representa um tour de force na lírica portuguesa». Sobre Sena escrevem os organizadores (p. 63), após a menção ao lugar e anos de nascimento e morte: «Teve inimigos, como tanta gente que demasiado se expõe, mas o seu péssimo estômago nunca digeriu. E foi até ao Pacífico arejar. Tocou muitos burros ao mesmo tempo, o que não abona em virtude: traduções, prefácios, ensaios vários, teatro, prosa… tudo! Retenha-se o romance Sinais de Fogo. Rancor, mau-viver, arrogância, isso acabará poi ser-lhe perdoado neste reino de estupidez; excepto o dossier-Surrealismo». Acerca de Ruy Belo se diz (p. 101), na primeira parte do que se segue à referência ao nascimento e à morte do poeta: «Pelos motivos habituais dessa dialéctica bem portuguesa que se ilude no luxo de fechar portas na cara dos poucos vivos, enquanto refocila em tudo o que feda moribundo, a Ruy Belo iam-no ignorando».
Seja como for, a presença dos três poetas em Sião testemunha o apreço que por eles tinham os organizadores do florilégio, os quais, apesar de haverem, certamente, feito as suas escolhas a título pessoal, não deixavam de representar uma sensibilidade típica do período em que as faziam, e que, genericamente, se identificava com correntes pós-surrealistas da cultura underground. Feita esta prevenção, ela, sim, segundo me parece, necessária, é chegada a altura de identificar aquele que será o momento culminante no reconhecimento da marca deixada por Nemésio na nossa poesia contemporânea. A mais completa identificação com a poesia de Nemésio são alguns poetas da geração de 70 e dos que os continuam que a vão experimentar. E, aqui, torna-se indispensável a referência ao testemu¬nho contido na recensão que sobre Sapateia Açoriana, Andamento Holandês e Outros Poemas Joaquim Manuel Magalhães publicou na Colóquio/Letras em meados de 1977, para não mencionar o retrato que Ruy Belo, como vimos, nos deixou, numa passagem de um poema de Transporte no Tempo, do jovem João Miguel Fernandes Jorge nos inícios da década de 70 suspenso «do que o nemésio [dizia] na televisão» (1981Í), p. 72). Refere Magalhães, no termo do seu texto, que «alguns da nova poesia» lhe andaram com o Andamento Holandês «de casa em casa» (p. 80), não sem, antes, ter deixado de dar a entender por que o leram, ele e os seus companheiros, tão exaltadamente. E, entre as razões aduzidas, destacaria eu: por um lado, a compatibilização da «literatura com o real» (ibid.), e, por outro, a elevação dos «dados do real e pessoais a dados de cultura», sem cair na «poesia erudita» (ibid.). O fascínio sentido pelos que leram o Andamento Holandês quando da sua publicação, nos começos da segunda metade da década de 70, não arrefeceu ao longo dos anos, como se pode depreender das palavras de Gil de Carvalho num texto vindo a lume no dealbar dos anos 90 em As Escadas Não Têm Degraus, em que se aponta a «música do visível» como o contributo maior trazido pela sequência nemesiana de catorze poemas, que, um pouco mais à frente, se dizia ser «uma das mais livres concentrações de cultura, memória e sobretudo corpo da nossa poesia» (pp. 44-45). Mais perto de nós, num poema de Não É Certo Este Dizer, João Miguel Fernandes Jorge, que, desde cedo, soube estar atento àquela e a outras músicas que o verbo livre, errante e meândrico de Nemésio tinha para oferecer, deu-lhe, como no começo deixámos dito, a fala, para o colocar num processo interlocutivo com outro poeta, Mário Cesariny, cuja verosimilhança só as suas próprias afinidades electivas poderiam porventura justificar. Distinguem-se, nessa fala atribuída a Nemésio, alguns dos marcos mais em evidência no seu universo poético, como a «ilha» e a «cabrinha» de Eu, Comovido a Oeste, que se tornou um dos mais referenciados e reverenciados ícones desse universo. Se na genealogia poética de Fernandes Jorge figura em lugar de destaque Nemésio, outro tanto se não poderá dizer de Vasco Graça Moura, apesar das múltiplas declarações de apreço que, ao longo dos anos, este tem produzido acerca da sua obra, do longo ensaio que lhe dedicou (1987, pp. 53-79), dos mais brilhantes que sobre ele se escreveram, e de implícita ou explicitamente o convocar uma ou outra vez à sua poesia. Pode, como o faz na badana de Instrumentos para a Melancolia, de 1980, proclamar enfaticamente a sua preferência pelo autor de O Bicho Harmonioso no despique em que o confronta com Pessoa, ou, num poema da mesma colectânea («carta à mulher amada sobre a morte de Vitorino Nemésio», pp. 53-58), homenageá-lo, como «autor [seu] de tê-lo tido um pouco / sempre ali disponível pra relê-lo» (p. 56), que isso não faz dele automaticamente herdeiro de Nemésio, pertencendo, antes, segundo penso, como teremos ocasião de ver já a seguir, ao número daqueles que melhor se definem em função do legado seniano. Se quisermos apontar um exemplo de inequívoca contaminação pela escrita de Nemésio (cfr. Moura, 1987, p. 56), ou melhor ainda, de plena e desinibida assunção da sua herança, teremos que quebrar a regra que nos impuse-mos de não lidar com a poesia açoriana, e recorrer a um dos seus textos de maior fulgor, que é o poema de Emanuel Félix «Five o'clock tear» (pp. 115-116). Reconhecidamente a reescrita de um dos textos de mais marcada presença no cânone nemesiano, «Five o'clock tea» (1989a, pp. 210-211), todo o seu fascínio resulta das transformações que o simples acrescento de um fonema no título de Nemésio arrasta consigo, e que essencialmente se centram na imediata metamorfose do chá em lágrima e na transformação, por contiguidade metonímica, do registo irónico em elegíaco: "Coisa tão triste aqui esta mulher / com seus dedos pousados no deserto dos joelhos / com seus olhos voando devagar sobre a mesa/ para pousar no talher // Coisa mais triste o seu vaivém macio / p'ra não amachucar uma invisível flora/ que cresce na penumbra/ dos velhos corredores desta cada onde mora // Que triste o seu entrar de novo nesta sala / que triste a sua chávena / e o gesto de pegá-la. // E que triste e que triste a cadeira amarela/ de onde se ergue um sossego um sossego infinito / que é apenas de vê-la/ e por isso esquisito // E que tristes de súbito os seus pés nos sapatos / seus seios seus cabelos o seu corpo inclinado / o álbum a mesinha as manchas dos retratos // E que infinitamente triste triste / o selo do silêncio / do silêncio colado ao papel das paredes / da sala digo cela / em que comigo a vedes // Mas que infinitamente ainda mais triste triste / a chávena pousada / e o olhar confortando uma flor já esquecida / do sol / do ar / lá de fora / (da vida) / numa jarra parada".
Como tivemos ocasião de ver, os primeiros sinais de uma recepção activa de Nemésio pela poesia portuguesa subsequente tornam-se perceptíveis nos an08 50, O mesmo se observa relativamente a Jorge de Sena, embora este se tenha apenas estreado em livro no decénio anterior. Com efeito, como já noutro lugar assinalámos (Martinho, 1996, p. 234), os sonetos de As Evidências, de 1955, na conciliação que realizam entre Classicismo e Modernismo, são, em termos de tradição recente, uma das referências maiores de José Terra, nomeadamente em Espelho do Invisível, de 1959. Tal é, de resto, confirmado num texto que Terra dedica a Sena, e que vem incluído na homenagem poética que a revista Nova Renascença (p. 375) prestou ao autor de Metamorfoses por ocasião do décimo aniversário da sua morte – um poema, muito ao gosto dos quinhentistas que aproximam homenageado e homenageante, Camões, autor do verso destacado em epígrafe, Ferreira, Sá de Miranda: «Águas do rio, que o teu nome evoca,/ desta Lutécia amada os anos volvem. / As Parcas vão fiando em sua roca / destino após destino. Já resolvem / em sopro etéreo aqueles altos 'spritos / que davam luz ao mundo e os dissolvem / no seio do inefável. Os aflitos / peitos aí repousam docemente. / Aquele grande Xerxes de olhos fitos / olhava o seu exército esplendente / nos campos da Tessália: – 'Oh gerações / dos homens que passais tão brevemente!…' / – dizia. – A ti, Jorge, outras razões, / à moda do Ferreira ou do bom Sá / (o de Miranda digo), outras lições / eu prometera há tantos anos já! / E agora envio-te estas rimas pecas, / ecos de um tempo infame. Que não há / no meu jardim mais que estas flores secas». Coetâneo de José Terra, e revelado numa das revistas dos anos 50, a Cassiopeia, embora só venha a estrear-se em volume no limiar dos anos 60, João Rui de Sousa, praticante como aquele de uma poesia reflexiva e aberta ao influxo das filosofias da existência, então com forte implantação em Portugal, insere-se igualmente na tradição a que Sena chamava «lírico-especulativa» (cfr. 1978a, pp. 160-161) e a que ele próprio deu renovado alento na nossa poesia contemporânea. Tanto José Terra como João Rui de Sousa figurariam certamente entre os poetas que José-Augusto França tinha em mente quando, num depoimento publicado no citado número da Nova Renascença, lembrava a «larga influência [de Sena] junto da geração seguinte à sua» (p. 357). Não surpreendentemente, pois, o poema com que, em irrecusável impulso identificativo, João Rui de Sousa presta tributo à sua memória na mesma revista, é, na sucessão de frases interrogativas, no dramatismo com que as faz glosar o título («Quantos anos tem a dor?»), uma homenagem ao Sena cantor do sofrimento que distingue sem remédio a condição humana e torturadamente abalado por nunca satisfeitas inquirições. Como não perceber o eco do Sena mais agonicamente atingido pelo «Nada» da nossa condição e do que dela ao longo dos séculos fizemos, nos versos finais tio poema: «Quantas mentiras, traições, infâmias / e tais outros vezos da lorpc/.a humana? / li quantas gargalhadas e balões e prados / apenas a esconder horror a mágoas / pelos meses mais duros e selvagens? // No lamaçal do mundo onde se roja/ o rol das intempéries, sevícias, exílios e opressões /- quantos anos tem a dor? / E quanta dessa dor – cumprida e rasa -/ se acolhe ao sossegar de um grande Nada?»? Já entrada a década de 60, natural seria que os experimentalistas, então em fase de afirmação, se interessassem pelas experiências realizadas por Sena nos «Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena», escritos em 1961 e publicados no ano seguinte na revista Invenção, de São Paulo, ligada aos concretistas. Aí deles terá tomado conhecimento E. M. de Melo e Castro, muito próximo, como 6 sabido, dos vanguardistas brasileiros, e que, logo um ano depois, incluía em Poligonia do Soneto um poema (1990, p. 165) em que era patente a leitura dos sonetos de Sena, pela semelhante ruptura semântica que realizava à custa de um empolamento do nível fónico: «ornipuri palente condurita / parladina sulnata infiliana/ cotronala contuta calacita / oropeta maluna dastriana». Já Gastão Cruz, no termo do decénio, em As Aves, não terá propriamente necessitado da mediação do Sena de«… de passarem aves» e da revisitação feita a este poema, para entrar em interlocução com o famosíssimo soneto de Sá de Miranda – ele que também fez do diálogo com os quinhentistas um dos meios privilegiados de renovação da sua poesia -, o que não significa de modo algum a ausência das glosas de Sena na sua memória literária, e a possibilidade de elas terem intervindo no processo criativo, pelo menos, como diria Eliot (pp. 27-29), enquanto agentes catalíticos: «e movem-se aves // mais do que as folhas que do alto caem/ mas sem sol grande as aves não se movem/ nem já não caem com a calma as aves» (cfr. poemas de Sena e de Gastão Cruz em Garcia, pp. 300-301). A verdade é que, a bem dizer, as glosas de Sena são indissociáveis do soneto mirandino para os poetas que depois delas escreveram e para quem, como deixou dito Ruy Belo num poema de Homem de Palavra(s), de 1970, afinal, «passam as aves em seu voo rasante / desde Sá de Miranda até Jorge de Sena» (ibid., p. 302).
Mas é na poesia portuguesa dos últimos decénios que mais extenso e fundo se torna o influxo de Sena. A voga que nela se observa do Bildgedicht, com mais ou menos vincadas propensões eefrásticas, tem origem nele, no exemplo de Metamorfoses, ou na tradição que, a partir do livro de 1963, se foi constituindo. O mesmo se diga da poesia que entra em diálogo com a música, para a qual foi determinante o livro publicado por Sena volvidos cinco anos sobre a saída de Metamorfoses, Arte de Música. Mas não só: igualmente grande parte da voga culturalista na nossa poesia das três últimas décadas dele deriva, da desinibida assunção da condição de poeta doctus que pratica nos seus versos, assim como é ainda ele que está, especialmente depois de Peregrinatio ad Loca Infecta, de 1969, na base de uma abundante poesia de lugares, de itinerância geográfico-cultural. Não é fácil, neste plano, destacar nomes de herdeiros seus, tão disseminada se encontra a sua herança. Avancemos, no entanto, com o nome, já anteriormente referido, de Vasco Graça Moura, até porque, no seu caso, há outras afinidades a salientar, da avassaladora referência camoniana ao que seria o maneirismo visceral de um e de outro, da condição de poeta-crítico à de infatigável poeta-tradutor de poesia, para não referir o vezo polemizante de um e de outro. Dele se transcreva um poema, «Jorge de Sena na Ilha de Moçambique» (Colóquio/Letras, n.° 67, Maio de 1982, pp. 58–59), cm que se cruzam os destinos de dois poetas (não apenas Sena, mas também o Camões que o autor de Fidelidade cantara no mesmo lugar) que ocupam um lugar central no seu cânone pessoal: «debruçado a esta janela quinhentista sobre a água lilás / do pôr do sol, jorge de sena repousava os olhos, ainda ofuscado / pela brancura da pedra e de tanta memória gastando-se / até onde pobremente o Camões se arrastara// e um d. joão de castro está sepulto, fora uma tarde desmedida / de amargos deslumbramentos, de intimidades fragmentárias, de / coisas a ressoar ('e nunca pude saber dele' / diz-se, na década oitava, de um manuscrito roubado), //jorge de sena andou por aqui enxugando o suor com um enorme lenço / e rugidos na alma, e nem viu as acácias, o seu fogo insolente, as mulheres de máscara branca, / crispado entre os amigos nesta escala da passagem / de nada para parte nenhuma, por ruelas e pátios de má fortuna abandonados, //viu sim os rebocos desfeitos pela traça do tempo, tanta textura de flores esboroadas, / tanto mapa perdido de aventurosos destinos, / e viveu tudo isso como se o próprio orgulho, a prumo, com o seu nobre olhar/ de exilado, fosse uma altiva insensatez. // sentia essa embargada transparência, um tão ágil amor desesperado, / e tinha de ter raiva: nem há neutralidades anódinas, é-se apanhado / por estas evidências a crescerem em nós como o coral insuportável / ramificando-se desta luz, desta água, desta força honrada do lugar. // a tarde foi caindo até ao cinzento escuro / e era parda a vela subitamente içada (ou rósea ainda?) / de algum barco pequeno cuja sombra partia. Como é possível o trabalho / de peregrinar sem vir aqui? possível que isto vá morrer? // «o coração da vida está na lucidez das cicatrizes / que nos povoam» disse-lhe circe na praia transformando-o / no vulto que descia a correr as escadas da prelazia até / à misericórdia, ao palácio do governador, à rua dos arcos, // desprezando a quem implorava, ou não desceria / porque lá esteve antes, mas que interessa?, / se andava por aqui crivado de dívidas e de versos / e lhe haviam tirado o seu parnaso e foi furto notável // e muito mais do que isso é comover-nos / este adobe de lembranças a destempo, esta severa condição / de um jogo limpo em que o real / só é dizível porque algumas palavras o destroem // e algumas palavras lhe resistem. anonimamente /jorge de sena voltou a pagar os duzentos cruzados da dívida: / camões parte amanhã mas continua aqui. / nem é desterro nosso que assim seja».
Não surpreende que Ruy Belo se tenha tornado uma das figuras tutelares para alguns dos mais representativos poetas dos três últimos decénios. A proximidade ao quotidiano (cfr. 1984, p. 17) e a fidelidade ao real (cfr. ibíd., p. 23) na sua poesia, bem como a recuperação que nela efectuou da tradição da coloquialidade colhida, em larga medida, no Nobre que, em termos de modernidade poética, a iniciara entre nós, tudo contribuía para que ele viesse a exercer junto das gerações seguintes, e logo a partir dos anos 70, um poderoso influxo. Toda uma linha da nossa actual lírica que faz, em oposição a algumas orientações da poesia coetânea de Ruy Belo nos anos 60, da discursividade um dos seus valores, e que pratica prosódias mais livres e tem no seu horizonte o ideal de uma poesia conversada, lhe é de alguma forma devedora. Dentro dessa linha, um dos nomes mais em evidência é, sem dúvida, o de João Miguel Fernandes Jorge, que, não obstante o diálogo frequente com o universo da cultura na sua poesia, associaria menos ao culturalismo que parte de Sena (cfr. Lopes, 1990, p. 90). Claro que, no caso particular deste poeta, melhor seria falar num processo interactivo, nos dois sentidos, portanto, no que seria, afinal, antes uma troca estimulante de experiências, como não raramente acontece entre poetas de idades diferentes (veja-se, a este respeito, o que se passara anteriormente com Carlos de Oliveira e Gastão Cruz).
O que, no essencial, permanece de religioso na poesia de Ruy Belo, para lá das crises, das dúvidas, da agónica verificação do falhanço que em tudo espreita, será um dos elos por que a ele se ligam vários dos que vêm depois. Um deles, Manuel António Pina, também ele praticante de uma poesia não distanciada das vivências mais simples do quotidiano e de uma escrita que, por adequação a esse mesmo circunstancialismo, frequentemente fere a nota coloquial, escolhe, para epígrafe do poema inaugural de um seu livro, O Caminho de Casa, de 1989, percorrido por mal disfarçadas inquietações metafísico-religiosas, palavras de Ruy Belo («Somos seres olhados») que, depois, glosa, de modo a deixar suspensa a interrogação sobre a identidade do olhar último no termo da infinidade de olhares de que somos feitos (cfr. 1992, p. 147). A possibilidade de uma poesia religiosa entre nós continua, de resto, a tê-lo no seu horizonte, como pode ver-se num autor revelado na presente década, José Tolentino Mendonça, que parece, até pelo comum metaforismo bíblico, recuperar o primeiro Ruy Belo: «Retomarás o canto / o alvoroço das cítaras / as encantações / ténues ao atravessarmos / os campos // Retomarás o honroso posto de observador / no jardim do príncipe / calcularás o vento pelo levantar do fogo / o ouro dos frutos pelo desenho dos odores / saberás o enunciado dos fenos / a idade exacta das folhas / os húmidos sinais que soletram a cor / arriscarás adivinhações / chegarás aos segredos guardados / da arte das curas / e do presságio // Então pronunciarás os nomes /jubilosos» (p. 53).
No outro extremo, o das fés já irremediavelmente perdidas, ou, pelo menos, do agnóstico cepticismo dos nossos tempos finisseculares, Luís Filipe Castro Mendes, escassos anos antes de José Tolentino Mendonça, pegara no Ruy Belo já abalado por profunda crise religiosa de «Nós os vencidos do catolicismo» (1981a, p. 147) para o glosar, ao jeito da «repetição com diferença» que Linda Hutcheon, em ensaio famoso (p. 32), viu na paródia. Como sempre, a «diferença» é mais importante do que a «repetição», facilmente reconhecível como mandam as regras: não hájá no texto de Castro Mendes (1994, p. 20), com menos um quarteto, a crença na vida em que Ruy Belo teimava e, muito menos ainda, o dramático sentimento de abandono com que o autor de Homem de Palavra(s) repetia as palavras de Cristo na cruz; há sim, num processo de progressiva secularização, a mudança do campo religioso-teológico para o campo literário, para o campo da Poesia, nem ele já visto, em contraste com toda uma tradição da modernidade, como substituto da Religião: «Nós os vencidos do Surrealismo, / a quem a Poesia atraiçoou, / haurimos o perdido vanguardismo / num verso desmedido que sobrou. // Nós, que perdemos mais do que a medida, / fizemos do delírio álibi/ de enredar a poesia com ávida/ rasteira e pobre que se vive aqui. // Não tende contra nós o coração / endurecido, novas gerações: / lutando sempre à beira do sentido, / fizemos da fraqueza tentações». No plano dos textos de homenagem a Ruy Belo, refira-se o poema «R.B.» em Iniciais de José do Carmo Francisco (p. 26).
Restaria, a finalizar, deixar uma nota com certeza desnecessária: nisto de heranças, que raramente se apresentam em estado puro e, antes, como penso ter ficado claro, se cruzam, nada há de negativo, a não ser quando epigonalmente se recebem; pelo contrário, sempre elas foram um dos mais eficazes meios de que os grandes criadores se serviram para afirmar a sua individualidade. Até porque, bem vistas as coisas, elas não se recebem: conquistam-se. Já T. S. Eliot dizia que os poetas maus imitam e os bons roubam (cfr. Guillén, p. 319).
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