Ao longo de vinte e três anos, de 1946 a 1969, José Régio e Jorge de Sena trocaram um extenso e intenso intercâmbio postal. No levantamento de Mécia de Sena, que deu origem ao volume por ela organizado e simplesmente intitulado Correspondência (Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986) constam cinquenta e seis envios de Sena para Régio, e cinquenta deste para aquele, distribuídas em cartas propriamente ditas — quarenta e nove escritas por Sena e quarenta e sete por Régio, alguns bilhetes postais (seis escritos pelo primeiro e apenas um pelo segundo) e um cartão, também remetido por Sena a Régio. A correspondência de Sena inclui cartas dactilografadas — dez no total; a de Régio é totalmente manuscrita. No volume organizado pela viúva de Jorge de Sena, reproduz-se também uma carta escrita por seu marido em seu auto-exílio brasileiro e não enviada a Régio, que se reveste, por isso mesmo, de especial interesse e à qual voltarei mais adiante, bem como as respostas parciais de Régio a um longo questionário sobre sua obra mandado a si por Sena, e que seria publicado, ou daria as bases para a escritura de um artigo deste sobre ela, jamais concluído; desde já, para essas respostas chamo a atenção dos estudiosos da obra regiana, uma vez que aqui não serão enfocadas.
Como não podia deixar de ser, tal intercâmbio longo e volumoso constitui um lugar privilegiado para a consideração de dois dos mais significativos criadores da literatura portuguesa das décadas intermediárias do século passado, tanto no que revelam sobre as suas personalidades, como pelo que guardam sobre a vida literária da e na época. Além disso, apesar de Régio e Sena serem, obviamente, dois indivíduos com características, gostos e horizontes específicos, a relação postal entre ambos pode assumir por assim dizer um valor referencial, no sentido em que, se lida com um ponto de vista generalizador que privilegie a historiografia da literatura, pode indicar as zonas, de conflito e comunhão entre a geração da presença e a posterior, fortemente marcadas por Régio e Sena, tal e como é do conhecimento geral. Mais além de tudo isso, ainda, a epistolografia Régio/Sena tem interesse para o estado — ou, mais do que isto: para a compreensão da relação entre dois autores com interesses literários e estéticos semelhantes, sob a luz da exemplaridade — positiva ou negativa — que a figura do mais velho pode significar para o mais moço, entre a figura daquele como uma espécie de modelo literário para o bem ou para o mal, o que me leva neste momento a recordar, ainda que en passant, a mecânica da «anxiety of influence», conceito pós-freudiano cunhado por Harold Bloom. Minha preocupação, devo dizer, não é com a petite histoire, um risco sempre presente quando se trata de processar qualquer epistolografia que inclua tanto informações de cunho profissional como pessoal, tanto de referências às perpétuas quezílias literárias quanto as da ordem mais subjectiva. Ao contrário, preocupo-me em estudar como se dá — ou melhor, como se dava — a transmissão de uma certa sensibilidade literária intergeracionalmente. Numa época em que cada vez menos se corresponde através do papel e da carta e luxo supino! — através do manuscrito, e na qual o intercâmbio crescentemente virtual torna-nos proclives à desmemória da falta do documento, é com nostalgia e com relativa inveja que me debruço sobre a relação postal entre José Régio e Jorge de Sena.
Vale dizer que há muitos veios a serem explorados nessa correspondência exemplar. Aqui nos deteremos em apenas três aspectos: primeiro, salientar nela alguns trechos relacionados com a concepção da obra literária e da linguagem poética; segundo, e como não podia deixar de ser em se tratanto de um intercâmbio postal que tem tanto de profissional como de subjectivo, avaliar a imagem evolutiva de cada um deles com relação ao outro; finalmente, e em consonância com este último aspecto, recuperar as críticas de Sena a Régio na carta não enviada, já acima mencionada. Em poucas palavras, aqui se tentará analisar, ainda que sumariamente, a correspondência entre ambos num arco que vai das considerações estéticas às éticas.
Com relação ao primeiro aspecto, Régio, já em carta de 26 de Fevereiro de 1942, busca estabelecer um terreno comum com Sena, considerando a concepção da obra literária. Este havia escrito uma crítica sobre Histórias de Mulheres que impressiona muito favoravelmente o autor delas, porque parece pautar-se pelo que considera «o essencial, o importante, o significativo» no livro, ao contrário de outras críticas «só preocupadas com a superficialidade técnica, e apostadas em julgar livros que são sentidos como se foram exercícios literários» (op. cit.; pgs. 38/9). Vislumbramos aqui um horizonte de imanentismo da «coisa» literária, uma concepção que não a vê redutível a uma crítica «objectiva», um intuito de preservação da «artisticidade» da obra literária; por outro lado, tal concepção parece excluir, nela, qualquer sentido de experimentalismo, seja ele propriamente literário ou literário-crítico. A julgar pelo trecho, para Régio a peça crítica tanto melhor será quanto maior for a sua proximidade, sua empatia para com o texto criticado. Não temos uma resposta directa de Sena a este trecho, nem a esta visão, no âmbito da sua correspondência com Régio.
Temos, sim, um outro trecho de Régio, em carta escrita mais de oito anos depois (24 de Novembro de 1950), na qual ele critica dois livros de Sena (Pedra Filosofal e O Indesejado). Passada quase uma década, já a distância da linguagem literária de ambos autores, e indirectamente, entre ambas gerações, torna-se patente quando Régio aponta a Sena que «o problema que tanto um outro [desses livros] logo põem é o da sua difícil comunicabilidade. Quer-me parecer que nenhum autor, entre nós, atingiu tal intelectualização e tal hermetismo (..,)» (pg. 59). Açulado pela dupla categorização, Sena responde incontinenti (26 de Novembro de 1950), e formula um tanto abruptamente a Régio três questões: «(…) não será um parti-pris demasiado de geração, de época, de formação espiritual, que o leva a considerar-me hermético? Naquele sentido em que achamos hermético ou destituído de valor significativo aquilo que é significação dialeticamente distante de nós?», finalizando o trecho por perguntar-lhe se tal parti-pris «Não será um daqueles (…) que uma pessoa como V é das raras entre nós com obrigação e possibilidade de superar» (pg. 60). A esse trio de perguntas incômodas somam-se várias outras que se apresentam ao leitor actual como uma auto-defesa e auto-definição estética de Sena, em franca contraposição com o que percebe serem as bases crítica e estética do mais velho. Depois de mencionar uma notável corrente de nomes «herméticos» ou «intelectualistas» de duas gerações internacionais, a correspondente à de Régio e à sua própria — entre eles, Eliot e Pound e Auden e Dylan Thomas, no que faz gala de suas leituras inglesas —, Sena procura estabelecer a diferença entre si e Régio, dizendo que «há neles» — isto é, nesses poetas — «toda uma experiência espiritual de post-simbolismo, de surrealismo que homens como V. conhecem como informação cultural, mas não vivem como actividade do espírito poético.» (pg. 61).
Régio não polemiza e não responde aos protestos de Sena, que soam como uma verdadeira interpelação. Prudentemente, havia dito em sua carta que teria gostado de tratar esses tópicos ao vivo e talvez o tenha feito; temos a impressão de que, com o tempo, cada vez se comportava com maior cuidado com Sena, dono de uma particular susceptibilidade, só comparável com sua grande inteligência, que Régio, diga-se de passagem, não perde oportunidade de realçar em suas cartas. Não por falta de matéria restante sobre o tema que viemos trilhando, aqui chegamos ao segundo aspecto que queremos tratar.
Desde a sua primeira carta a Sena (9 de Fevereiro de 1947), Régio manifesta-lhe um tema ao qual voltará algumas vezes ao longo da correspondência e que, antes de vincular-se à esfera do propriamente literário, dá-nos uma pauta de sua abordagem humana, inter-pessoal. Refiro-me à sua chamada de atenção — não encontro melhor termo — a Sena sobre o seu temperamento. Cito a passagem: «Quando conversarmos lhe direi que só me desagrada, às vezes, nos seus escritos, um tom de azedume, desconfiança, não sei quê, que acho impróprios dum rapaz que ainda não vi ter razões de queixa contra a Natureza ou o Destino.» (pg. 30) Moto contínuo, de maneira ou cândida ou ardilosa — prefiro a primeira hipótese —, escreve a Sena algo lapidar: «Em mim, tenha confiança», um enunciado de grande poder se considerado no contexto de qualquer diálogo inter-geracional.
De facto, creio que o apelo causou efeito e que Sena teve confiança em Régio. Num primeiro momento, já uma semana depois de escrita a carta a que nos referimos, responde com uma longa missiva que hoje pode ser lida como uma autobiografia precoce e condensada, tanto se esmiuça o mais jovem em narrar ao mais velho as situações familiares e pessoais íntimas que, infere-se, justificariam o tal seu quê azedo e desconfiado, ou, como dirá depois, de «rangente», nele detectados por Régio. Voltemos um pouco atrás: como lhe corresponde como poeta mais velho, Régio a esta altura da correspondência dá a pauta, e a pauta que estabelece é a da confiabilidade, confiabilidade interpares e, o que é mais quiçá importante, entre gerações.
Não é necessário dizer que esta pauta lhe permite retomar as suas críticas ou os seus conselhos a Sena, dizendo-lhe na carta seguinte que «quereria eu que o ranger de dentes se não ouvisse tanto; e outras suas qualidades mais nobres, mais luminosas que a propensão para o ressentimento e a desconfiança, tomassem a dianteira.» (pg. 38) Mas sim talvez seja necessário dizer que ela — digo, a pauta — só subsiste ao longo do tempo se aquele quê ofeçece a certeza da confiabilidade se mantiver à altura da sua promessa, tanto quanto se aquele a quem esta se destina for capaz de, também ao longo do tempo, relativizar as instâncias da sua expectativa e não degenerá-las em sentimentos de traições; em resumo, tal e como entre quaisquer vínculos inter-subjectivos, tudo funcionando como se um pacto entre aquele que confia – o «confiador» — e aquele que assegura a confiança — o «confiável» — tivesse que desenhar-se e manter-se na relação, independentemente de sua manifestação verbal e, menos, literária.
O facto é que Régio estende desde um início a possibilidade de tal pacto a Sena e que este o aceita. O que quero sublinhar aqui é que me parece que ambos o mantiveram menos pelo interesse supostamente comum de afirmar uma posição semelhante no contexto literário de então, e inclusive menos devido às suas personalidades individuais, mas sim pelo peso simbólico, ético, que o mesmo representava em si. Neste momento, recordemos que este passou por uma prova de fogo à altura em que Sena, já no Brasil, escreve e não manda uma carta a Régio, como apontei antes.
Em 1964, Sena está em Araraquara, Estado de São Paulo, dando aulas de literatura portuguesa na recém — criada universidade estadual. Já antes havia sido professor nà não menos nova estadual de Assis, cidade da qual, note-se, escreve em 1960 uma das mais saborosas cartas a Régio, que versa sobre a sua experiência brasileira. Se na carta de Assis, depois de elogiar a qualidade do teatro brasileiro vis-à-vis o português, e de exaltar o clima de liberdade moral e política vigentes, Sena optimisticamente confessa ter-lhe «valido a pena este salto mortal», para usar as palavras com as quais se refere à sua mudança para o Brasil, na carta não enviada o tom e oposto. Lembremo-nos que no dia 31 de Março daquele ano deu-se o golpe militar no Brasil, que entre outros efeitos teve d de implicar, já em 1966, na mudança de Sena e sua numerosa família para os Estados Unidos, em busca das garantias à actividade intelectual e de cátedra que o regime instaurado passa sistematicamente a perseguir.
Nessa carta, datada de 20 de Abril de 64, Sena insurge-se contra Régio por ter este ignorado o golpe militar e suas possíveis repercussões numa carta escrita uma semana antes, nos seguintes termos: «( … ) Portugal é um país tão espantoso, que Você me escreve a 12 e nem sequer se interroga sobre o que está acontecendo no Brasil, e sobre se os seus amigos serão ou não atingidos pelo que se passa… Será que não lê jornais, ou os jornais aí não bastam para perceber-se?» (pg. 171) Se até aqui tudo soa como uma queixa sobre a desatenção ou mesmo a alienação política de Régio, o caminho pelo qual Sena envereda a seguir é muito mais pessoal e agressivo. Sem alongar-nos demasiado, frisemos apenas que, depois de acusar a indiferença de Régio em responder o questionário sobre ele e sua obra, mencionado no começo desta comunicação, Sena resume com amargura a sua situação face à de Régio: «Você feliz, deliciando-se com o muito trabalho que tem por ser monumento nacional, e eu aqui sem saber o dia de amanhã, ou a liberdade de amanhã… (pg. 172) Evidentemente, o que explicitamente leva Sena a este ex-abrupto é a crise política que o afecta; no horizonte, entretanto, desenha-se a consciência da sua diferença — geracional e estética, está bem, mas também, e extensamente vital —, da qual o seu azaroso nomadismo pode ser visto antes como resultado do que causa.
«( … ) não faço parte do séquito das suas sombras. Não fui -nunca também um jovem poeta a seus pés. Não sou, notoriamente, autor de hagiológios. E você apesar do desprezo que tudo isto lhe merece, é disto (que não deixa de gostar», extravasa mais adiante (pg. 173). E pergunta a seguir: «Quer ou não quer lealmente colaborar comigo?», referindo-se precipuamente à questão do já citado questionário mas também, indirectamente, voltando ao tema que ressaltamos, ao trazer à baila, até nesse momento de azedume total, o pacto pré-existente.
De maneira significativa, a carta de 20 de Abril de 64 ficou sem assinar. Escreveu-a, ao que parece, mesmo para não a mandar; antes do que como um tosco — ou «agreste», como qualifica Mécia de Sena — desabafo, poderíamos dizer: escreveu-a para um destinatário já introjectado, para um destinatário que já se havia tornado tão modelar, para bem ou para mal, que se havia erigido, por isso mesmo, em algo indispensável. Talvez pudéssemos pensar que Sena tenha escrito essa carta para si mesmo. Se tivesse pensado — no futuro e em seu lugar nele, provavelmente a tivesse autografado, crer-se-ia. Como dizem os italianos, chi Io sà: são todas suposições. De minha parte, penso que escreveu-a para respeitar o pacto, para vê-la escrita, e sentir-se incapaz de mandá-la, sequer de assiná-la, e isto não simplesmente, como se dirá, por respeito às condições físicas ou emocionais de Régio à época, numa reserva que pareceria demasiado edulcorada, em se tratando de Sena.
O facto é que não a mandou e, dessa maneira, não arriscou desrespeitar ou romper o limite ético, que era mais importante que as acusações, fundamentadas ou não, sobre a própria atitude ética do destinatário, no que tangia aos seus relacionamentos com outros poetas de menor idade. E tal limite não o poderia traduzir eu melhor do que com a noção e pacto silencioso desconfiança mútua.
Melhor dizendo e para terminar, para afirmá-lo refez a carta em questão de dois meses e a 7 de Junho a manda a Régio prenhe de todos os tópicos que recheavam a não enviada, agora bem menos agrestemente desenvolvidos. Mas aqui já nos afastamos do nosso ponto de interesse. A ameaça de rompimento fora devidamente superada. O poder da palavra de Régio, escrita havia mais de vinte anos, seguia vigente, capaz de neutralizar o peso das fraquezas que Sena passara a identificar não só em sua obra mas em sua pessoa.