Em uma antologia composta pelos dez poemas dos quatro poetas hispano-americanos presentes no volume Poesia do Século XX, podemos ver, através da seleção, tradução e notas de Jorge de Sena, qual era a América Hispânica que lhe interessava particularmente e que melhor dialogava com a sua postura intelectual e artística.
CÉSAR VALLEJO
Peru
1892-1938
Rumei sem novidade pela listrada rua
que eu cá sei. Tudo sem novidade,
deveras. Eu fundeei por coisas assim
e fui passado.
Dobrei a rua pela que raras
vezes se passa a bem, saída
heróica para a chaga daquela
esquina viva, nada por metade.
São os grandores,
o grito aquele, a claridade de acarear,
a barreta submersa em seu papel de
…já!
Quando a rua está olheirenta de portas
e apregoa de descalços atris
adiar para amanhã as salvas pelos dobres.
Agora formigas ponteiros de minutos
adentram-se adoçadas, adormidas, pouco
dispostas, e se encolhem,
queimados os fogos, nos altos andares de em
1921.
Pristina e última pedra de infundada
ventura, acaba de morrer
com alma e tudo, Outubro, quarto, e grávida.
De três meses de ausente e dez de doce.
Como o destino,
mitrado monodáctilo, ri.
Como por trás se despejam juntas
de contrários. Como sempre assoma o algarismo
abaixo da linha de todo o avatar.
Como chanfram as baleias a pombas.
Como por sua vez estas deixam o bico
na terceira asa cubicado.
Como cavalgamos, de cara para monótonas ancas.
Reboca-se dez meses para a dezena,
para outro mais além.
Dois quedam pelo menos nas fraldas todavia.
E os três meses de ausência.
E os nove de gestação.
Não há sequer violência.
O paciente encorpora-se,
e sentado empavoa tranquilas misturas.
PEQUENO RESPONSO POR UM HERÓI DA REPÚBLICA
Um livro quedou à beira da sua cintura morta,
um livro rebentava do seu cadáver morto.
Levaram o herói,
e corpórea e aziaga entrou sua boca em nosso alento; suámos todos, com o umbigo às costas;
caminhantes as luas nos seguiam;
lambem suava de tristeza o morto.
E um livro, na batalha de Toledo,
um livro, atrás um livro, em cima um livro, rebentava do cadáver.
Poesia do pómulo cor de amora, entre o dizê-lo
e o calá-lo,
poesia na carta moral que acompanhara
seu coração.
Quedou-se o livro e nada mais, que não há
insectos na tumba,
e quedou à beira cia sua manga, o ar remolhando-se
e íazendo-se gasoso, infinito.
Todos suámos, com o umbigo às costas,
também suava de tristeza o morto
e um livro, eu vi sentidamente,
um livro, atrás um livro, e em cima um livro,
rebentou do cadáver ex-abrupto.
VALLEJO, CÉSAR — Nasceu em Santiago de Chuço, no Peru, em 1892, o mais jovem de uma família de onze filhos. Os seus estudos foram interrompidos por pobreza (trabalhou então num engenho de açúcar), e só os reatou em 1913, quando frequentou o curso de letras em Trujillo, trabalhando ao mesmo tempo num colégio. Daí passa a Lima, e publica um primeiro livro de versos (1919), ainda muito na linha "modernista" (parnasiano-simbolista) de Ruben Darío. E então preso, acusado de "incêndio, assalto, homicídio frustrado, e subversão" (a última palavra era a chave desta lista clássica…), sendo solto ao fim de três meses. Em 1922, publica a colectânea Trilce, que era uma revolução de vanguarda em língua espanhola e antecipava o surrealismo — o livro passou inteiramente despercebido. No ano seguinte, receoso de que uma "revisão" do seu processo o levasse de novo à cadeia, escapou-se para a Europa, para não mais voltar ao Peru. Centrado em Paris, trabalhando como jornalista, viaja largamente até à Rússia, onde esteve três vezes. Expulso pela polícia francesa, por comunista estrangeiro, passou à Espanha da República e, mais tarde, à da guerra civil que lhe deu poemas admiráveis (Espana, aparta de mi este cáliz, 1937). Em 1938, gravemente enfermo, voltou a Paris para morrer. Em Paris, em 1939. saiu a colectânea da sua poesia de 1923-38: Poemas Humanos. Um dos fundadores da Vanguarda hispânica, poeta que prenuncia o surrealismo pela quebra audaciosa dos nexos lógicos da linguagem, poeta político, romancista social da opressão no seu país, Vallejo é, com Pablo Neruda (1904-1973). uma das grandes vozes hispânicas que a crítica "oficial" hispano-americana em vão se esforça por amestrar.
VICENTE HUIDOBRO
Chile
1893-1948
Que o verso seja como chave
que abra mil portas.
Uma folha cai, algo passa voando;
quanto os olhos fitam criado seja,
e a alma do ouvinte fique palpitando.
Inventa novos mundos, cuida da palavra:
o adjectivo quando não dá vida, mata.
Estamos no céu dos nervos.
0 músculo pende,
como recordação, nos museus;
mas nem por isso temos menos força:
o vigor verdadeiro
reside na cabeça.
Porque cantais a rosa, poetas?
fazei-a florir no poema.
Só para nós
vivem sob o sol as coisas todas.
O poeta é um pequeno Deus.
Aquele pássaro que voa pela primeira vez
afasta-se do ninho olhando para trás
Com o dedo nos lábios
vos chamei
Inventei jogos de água
no cimo das árvores
Fiz de ti a mais bela das mulheres
tão bela que te avermelhavas na tarde
A lua afasta-se de nós
e lança uma coroa sobre o pólo
Fiz correr rios
que nunca haviam existido
Com um grito ergui uma montanha
e em torno dançámos uma nova dança
Cortei todas as rosas
das nuvens do Leste
E ensinei a cantar um pássaro de neve
Marchemos sobre os meses desatados
Sou o velho marinheiro
que cose os horizontes cortados.
HUIDOBRO, VICENTE — Poeta chileno, nascido em 1893, de família aristocrática e abastada. Os seus primeiros livros seguiam a moda do "modernismo" hispano-americano, mas, curioso da Vanguarda, transferiu-se para Paris, em 1916. E, em 1917, é, com Soupault, um dos principais colaboradores da revista "cubista" Nord-Sud dirigida por Réverdy. El espejo de água (1918), aonde figura o seu poema-manifesto Arte Poética, e Tour Eiffel (1918). obra ilustrada por Robert Delaunay, são livros em que o poeta de vanguarda se afirma, e lançador do "Criacionismo" que trazia audácias novas à poesia hispânica. Manifestes (1925) é uma tomada polémica de posição, em favor de Réverdy, contra os surrealistas que. após o terem proclamado, o excomungavam. Em 1927-28, Huidobro está em New York e também no Chile, mas logo regressa a Paris (1928-32). Desde 1932 até à morte, em 1948, será no Chile o homem que se quer o fundador de um vanguardismo que não interessa à maioria dos intelectuais hispano-americanos a não ser como atitude literária, ao mesmo tempo que vai tomando posição cada vez mais revolucionária em política (manifestada em vários romances). Poeta em francês e em espanhol, a sua importância e valor estão muito longe de ser incontestados e reconhecidos.
OCTÁVIO PAZ
México
1914-1998
donde espumoso o mar siciliano… (Góngora)
Coroado de sim o dia estende as suas plumas.
Alto grito amarelo,
ardente provedor no centro de um céu
imparcial e benéfico!
As aparências são formosas nesta sua verdade momentânea.
O mar trepa pela costa,
segura-se entre as penhas, deslumbrante aranha;
a ferida cárdena do monte resplandece;
um punhado de cabras é um rebanho de pedras;
o sol põe o ovo de ouro e derrama-se no mar.
Tudo é um deus.
Estátua quebrada,
colunas comidas pela luz,
ruínas vivas num mundo de mortos sem vida!
Cai a noite sobre Teotihuacán.
No alto da pirâmide os rapazes fumam marijuana,
tocam violas ásperas.
Que erva, que água de vida há-de dar-nos vida,
de onde desenterrar a palavra,
a proporção que rege o hino e o discurso,
o baile, a cidade e a balança?
O canto mexicano estala num carago,
estrela de cores que se apaga,
pedra que nos cerra as portas do contacto.
Sabe a terra a terra envelhecida.
Os olhos vêem, as mãos tocam.
Bastam aqui umas quantas coisas:
tuna, espinhoso planeta coral,
figos encapuçados,
uvas com gosto a ressurreição,
amêijoas, virgindades ariscas,
sal, queijo, vinho, pão solar.
Do alto de ser morena uma mulher da ilha fita-me,
esbelta catedral vestida de luz.
Torres de sal, contra os pinheiros verdes da margem
surgem as velas brancas das barcas.
A luz cria templos no mar.
Nova York, Londres, Moscovo.
A sombra cobre o plaino com a sua hera fantasma,
com sua vacilante vegetação de calafrio,
seu ralo véu, seu tropel de ratas.
Por intervalos tirita um sol anémico.
De cotovelos postos nos montes que foram cidades, Polifemo cabeceia
Mais abaixo, entre os fojos, arrasta-se um rebanho de homens
(Bípedes domésticos, a carne deles
apesar de recentes proibições religiosas —
é muito estimada pelas classes ricas.
Até há pouco o vulgo considerava-os animais impuros.)
Ver, tocar formas formosas, diárias.
Zumbe a luz dardos e asas.
Cheira a sangue a nódoa de vinho na toalha.
Como o coral seus ramos dentro de água
estendo os sentidos pela hora viva:
o instante cumpre-se em concordância amarela,
ó meio-dia, espiga cheia de minutos,
taça de eternidade!
Os meus pensamentos bifurcam-se, serpenteiam, enredam-se,
e por fim ficam imóveis, rios que não desaguam,
delta de sangue sob um sol sem crepúsculo.
E tudo há-de acabar neste chapinhar de águas mortas?
Dia, redondo dia,
luminosa laranja de vinte e quatro gomos,
todos atravessados pela mesma doçura amarela!
A inteligência encarna por fim,
reconciliam-se as duas metades inimigas
e a consciência-espelho liquefaz-se,
volve a ser fonte, manancial de fábulas:
Homem, árvore de imagens,
palavras que são flores que são frutos que são actos.
PAZ, OCTÁVIO — Nasceu na Cidade do México, em 1914, e é hoje considerado o maior poeta mexicano, tendo sido objecto de uma celebridade internacional que reflecte os seus contactos literários com Paris e a Europa, e as posições de destaque que tem ocupado ao serviço do seu pais (embaixador por vários anos na índia, por exemplo). Recentemente, tem assumido papel de relevo na agitação política mexicana contra a transformação da revolução mexicana em estado burguês autoritário, subordinado aos grandes interesses financeiros. [Nobel em 1990 — Morreu em 1998.]
NICANOR PARRA
Chile 1914-1998
De cada vez que regresso
ao meu país
depois de uma longa viagem
o que faço primeiro
é perguntar pelos que morreram:
todos os homens são heróis
pelo simples facto de morrerem,
e os heróis são os nossos mestres.
Em segundo lugar,
pelos feridos.
Só depois,
não antes de cumprir
este pequeno rito funerário,
me considero com direito à vida:
cerro os olhos para ver melhor
e canto com rancor
uma canção dos princípios do século.
Escrevam o que queiram.
No estilo que lhes pareça melhor.
Passou demasiado sangue sob as pontes
para continuar-se a crer
que possa seguir-se um só caminho.
Em poesia tudo é permitido.
Com a condição expressa
é evidente
de superar-se o papel em branco.
Antes que caia a noite total
havemos de estudar as manchas na parede:
umas parecem plantas
outras assemelham-se a animais mitológicos.
Hipogrifos,
dragões,
salamandras.
Mas as mais misteriosas de todas
são as que parecem explosões atómicas.
No cinema da parede
a alma vê o que o corpo não vê:
homens ajoelhados
mães com criaturas nos braços
monumentos equestres
sacerdotes erguendo a hóstia:
órgãos genitais que se ajuntam.
Mas as mais extraordinárias de todas
são
sem dúvida alguma
as que parecem explosões atómicas.
"ME RETRACTO DE TODO LO DICHO"
Antes de despedir-me
tenho direito a um último desejo:
Generoso leitor
queima este livro
não representa o que eu quis dizer
apesar de ter sido escrito com sangue
não representa o que eu quis dizer.
A minha situação não pode ser mais triste
fui derrotado pela própria sombra:
as palavras vingaram-se de mim.
Perdoa-me leitor
leitor amigo
que não possa despedir-me de ti
com um abraço fiel:
despeço-me de ti
com um triste sorriso forçado.
Pode ser que eu nao seja mais do que isso
mas escuta a minha última palavra:
retracto-me de tudo o que disse.
Com a maior amargura do mundo
retracto-me de tudo o que disse.
PARRA, NICANOR — Nasceu em 1914, em Chillán. pequena cidade no Sul do Chile, onde seu pai era professor primário. Em 1938, formou-se em Matemáticas e Física em Santiago do Chile, tendo publicado no ano anterior um primeiro livro de poemas. Foi professor do ensino secundário até 1943, quando foi fazer estudos especializados nos Estados Unidos, onde se doutorou em física (1946). Desde 1952, foi catedrático de Física Teórica da Universidade de Santiago. Poemas y antipoemas (1954), seu segundo livro, foi o que o projectou como um dos grandes poetas modernos de Hispano-América. Em 1960, Discursos foi um livro de ensaios de Parra e de Pablo Neruda, que marcou época. Na revolução chilena, Parra, renegando muito dos seu passado, tomou atitudes — segundo parece — discutíveis. Mas, ao fim e ao cabo, não se sentiu bem no seu país, e exilou-se nos Estados Unidos. [Morreu em 1998.]