Jorge de Sena e os haikais

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Admirador de Bashô, Jorge de Sena também se aventurou pelos haikais

Aqui trazemos seus poemas, precedidos pelo comentário de Paulo Franchetti, um especialista brasileiro nessa forma poética, gentilmente escrito para “Ler Jorge de Sena”. 

E trazemos também as traduções que Sena assinou de haikais do mestre japonês, seguidos da pequena apresentação do autor.

 

Os haikais de JS

Jorge de Sena sem dúvida conheceu bem o haikai clássico. Introduziu 20 deles, de Bashô, no seu Poesia de 26 séculos. Por isso, a questão que se coloca ao ler os poemas de sua autoria por ele denominados hai-kais não é essa, e sim o que o poeta desejou fazer ou conseguiu fazer ao convocar o nome e o espírito da forma.

A questão não tem resposta simples. Tecnicamente, poucos desses poemas, se lidos isoladamente do conjunto e da denominação, seriam considerados haikais. Talvez um, talvez nenhum. Não só por não guardarem a estrutura do terceto, com a qual se popularizou o haikai no Ocidente, mas principalmente porque a quase todos falta a objetividade despojada que identificamos como essencial para a definição do gênero.

Ao vincular tais textos ao gênero haikai, então, o poeta buscava outra coisa. De imediato, é evidente que a denominação promove uma disposição de leitura. O leitor se prepara para um tipo de poesia, propõe-se uma atitude interpretativa.  Essa disposição e atitude é que serão contrariadas ou confirmadas ao longo da leitura. Mais contrariadas do que confirmadas, nesse caso.

O efeito de sentido é complexo. Trata-se de um poeta reconhecido, de um estudioso muito conceituado e de um evidente conhecedor da forma e da tradição do haikai. Mas os textos que produz e insere, por um gesto soberano, nesse gênero, não parecem pertencer a ele.

A forte personalidade do autor determina o afastamento, marcando presença não apenas nas referências ao “eu”, mas também na escolha da forma do dístico e do tom aforismático.

Para um leitor pouco familiarizado com o haikai japonês, a forma do dístico surpreende mais. Entretanto, quem já o leu no original sabe que a estrutura básica do haikai é a justaposição de dois segmentos frasais. A medida nada tem a ver com a utilizada por Sena, cujo dístico se compõe de dois versos de aproximadamente a mesma extensão. Mas em alguns do poeta português, a justaposição faz com que o texto mimetize a estrutura profunda do haikai.

Dos poemas do autor, o que mais pareceria, pela estrutura, um haikai é “para encontrar-se o acaso / ai quanto caminhar!”. Mas esse é justamente o que menos se sustentaria como haicai, por ser abstrato, não trazer nenhuma indicação de lugar ou de tempo, nenhum kigo.

Já o que me parece ter mais espírito de haikai é este “O mar se alonga ao longe tão sereno. No temporal, há pouco, era mais curto”. Porque aqui se tem uma observação muito precisa, muito objetiva. O horizonte se encolhe no temporal. Qualquer outro sentido simbólico pode construir-se, mas a base objetiva é firme e indiscutível.

Jorge de Sena poderia ter escrito pelo menos dois desses poemas na forma tradicional do haikai. Mas por alguma razão o quis fazer.

Como exercício, para mostrar as diferenças e as aproximações, faço-o eu aqui, sem pretender evidentemente corrigir, mas dialogar divertidamente com o poeta.

No primeiro, bastaria suprimir a notação subjetiva e teríamos um haikai, facilmente reconhecível como tal:

 

Tem chovido tanto…
Na noite do quintal,
O sapo canta.

 

No terceiro, seria o caso de eliminar a torção da frase, em nome da naturalidade da expressão:

 

O temporal passou.
O mar sereno
Parece mais longo.

 

Assim teríamos haikais. Mas esses textos, eu creio (embora conheça pouco a obra poética de Sena), dificilmente poderiam ser assinados por ele.

 

HAI-KAIS

Tem chovido bastante: insuportável tempo.
Na noite do quintal, o sapo canta.
*
Conversam como ao longe
não comigo.
Se comigo falavam
Cansar-me-iam.
*
Por nuvens as montanhas não têm picos.
Mas, negras e escalvadas, cabeleira branca.
*
O mar se alonga ao longe tão sereno.
no temporal, há pouco, era mais curto
*
O ano inteiro esta árvore
larga folhas mortas.
*
Roupa que se abre e cai:
surpresa; ou muito ou pouco.
*
No escuro cresce o amor
que só nocturno se ama.
*
Para encontrar-se o acaso
ai quanto caminhar!

Sentado, escreve e lembra
imagens que não viu.

 

HAI-KAI

Um pássaro canta: não tem voz
que só cantar dos outros ele imita.

11-12/1/1974

 

In: 40 Anos de Servidão. Lisboa, Ed. 70, 1989, p.140-1 eVisão Perpétua, Lisboa, Ed. 70, 1989, p. 192

Paulo Franchetti é Professor/pesquisador da UNICAMP, ensaísta e poeta.

 

 

Os haikais de Bashô traduzidos por Sena

BASHÔ

Japão

1644-1694

VINTE HAIKAIS E UM TRECHO EM PROSA

Quebrando o silêncio
do charco antigo a rã salta
n’água–ressoar fundo.
*
Não ver tinha graça
o Fuji- Yama escondido
na névoa da chuva.
*
Qual velha sem dentes
a cerejeira sem folhas
juvenil floresce.
*
Amigos, adeus:
tal como os gansos selvagens
perdidos nas nuvens.
*
Um gato maltês
pela racha na lareira
foi ter com a amada.
*
Na primeira chuva
do inverno mesmo o macaco
sonhará ter capa.
*
Mal pensas na morte
que cedo espreita: as cigarras
cantam no arvoredo.
*
Um branco narciso
E um branco biombo se reflectem
na sala quieta.
*
Para ver o que dá
de cavar gosto o pó do mundo
nas gotas de orvalho.
*
No mar que escurece
grita voando o pato:
é o que se vê: suave branco.
*
Primavera: até
montes sem nome se enfeitam
de véus matinais.
*
Sem nada, ainda piolhos
da minha viagem passeiam
no estival quimono.
*
Fiquei aterrado
ouvindo um grilo cantar
dentro do elmo antigo.
*
Bendito este vale
onde o vento suave cheira
vagamente a neve.
*
Tinha dó o poeta antigo
dos macacos que gritavam.
E a criança no vento?
*
Na manhã de neve
aqui estou só ruminando
salmão seco e duro.
*
Recordação de Edo:
este vento frio e fresco
que guardo no leque.
*
Alta brilha a lua
enquanto o verme escondido
a castanha roi.
*
Quando se calou
o gato desesperado,
no quarto entra o luar.
*
Todo o imenso dia
A cotovia cantou.
Inda insatisfeita?
*
Tal é a beleza deste livro, que pode comparar-se às pérolas que se diz sereias as choram no alto mar. Que viagem se conta neste livro, e que homem não é que a experimentou! Sé é de lamentar que o autor, tão grande homem como é, tenha sùbitamente envelhecido – e doente de branca geada sobre a fronte.

(Final do Post-Scriptum de O Caminho Estreito para o Longínquo Norte, datado do ano em que morreu.)

In: Poesia de 26 Séculos. 3a.ed. Porto, ASA, 2001, p.165-8. 

 

BASHÔ – Os mais antigos monumentos conhecidos da poesia japonesa datarão do século V da nossa era, quando a influência cultural da China e da Coreia arrancou a um estádio primitivo e que ignorava a escrita os habitantes do que é hoje o Japão. Mas durante a Idade Média já a literatura japonesa atinge, com altas realizações, completa autonomia. A unificação política do país estabelece-se definitivamente nos fins do século XVI, e propiciou uma brilhante expansão da literatura. O haikai torna-se um dos mais estimados “gêneros”, e dele o maior mestre, e um dos maiores poetas do Japão, é Matsuo Bashô, nascido em 1644 e que morreu com cinqüenta anos. Filho de um modesto samurai que servia a família feudal dos Tódos, foi dado como companheiro de estudos ao menino herdeiro, e assim teve início a sua educação literária. Através das suas obras (relatos memorialísticos das suas andanças pelo Japão, em que os poemas se intercalam) e de referências de amigos, a sua vida é conhecida com grande minúcia. Não é uma vida desordenada como a do chinês Li Po, mas a de um piedoso e estudioso cidadão da centralizada sociedade feudal do seu tempo. A poesia de Bachô é capaz de uma concentração extraordinária: capaz de, nos estreitos limites do haikai, incluir toda a gama da sensibilidade humana, num estilo que se não abandona nunca à sentimentalidade, e é de uma capacidade descritiva admirável, com por vezes uma aguda e muito realística ironia. O haikai é, na sua forma clássica, um poema de três versos, respectivamente de 5-7-5 sílabas. Outras variações, de ordem daqueles números de sílabas, ou de transformação de um dos valores no outro, eram permitidas. Nas traduções , respeitamos rigorosamente o número de sílabas que Bashô usa em casa verso (não contando, como se deve na metrificação portuguesa, as sílabas depois da última tónica) dos seus haikais. Anote-se que bashô significa banana, e é o nome adoptado pelo poeta, em homenagem irônica à bananeira que havia em frente à porta da sua casa.