Escrita e defendida em 1964, a tese de doutorado e livre-docência de Jorge de Sena, O soneto de Camões e o soneto quinhentista peninsular só viria a ser publicada em formato de livro cinco anos depois, em 1969. Nela, como o título indica, o autor dá prosseguimento à sua investigação geral da lírica camoniana, dessa vez debruçando-se sobre os sonetos com o objetivo de estabelecer critérios estruturais capazes de resolver questões de autoria, assim como entender a evolução desta forma poética na Península Ibérica durante o século XVI e qual o papel de Camões nesse contexto. Pelo prefácio, que segue abaixo, junto à Introdução, percebemos a importância de Uma Canção de Camões para o pensamento seniano, pois nesta obra ele construiu as bases teórico-metodológicas que foram aplicadas em O soneto de Camões e em praticamente todos os demais estudos críticos. Também nota-se neste texto que, apesar do esforço de distanciamento analítico, Sena não se furta a polemizar com alguns dos maiores expoentes do camonismo de então, defendendo-se das críticas que vinha recebendo e “atacando” o que ele considerava falta de método e de rigor por parte daqueles. De todo modo, o texto que segue é importante em diversos níveis, seja para os estudiosos de Camões, seja para os de Sena e para todos os interessados em estudos literários como um todo.
Esta obra, que é a segunda na série de volumes dos meus estudos camonianos, aguardou cinco anos para entrar no prelo. Mas havia sido publicada, em restrita edição policopiada, em 1964, quando foi preparada (com menos ou menos extensas notas) para os fins a que a dedicatória e sua nota se reportam. Aquela edição, se tal pode chamar-se, tem tido alguma circulação no mundo supostamente erudito, com resultados cuja real paternidade só agora é tornada pública.
Uma Canção de Camões, Lisboa, 1966, aguardara quatro anos a sua publicação. Escrita em 1962, para um concurso que não chegou a realizar-se, tivera igualmente e também policopiada, mas em 1ª versão muito mais reduzida que o volume final, alguma circulação, ainda que menor do que a da presente obra. E, porque a originalidade dos métodos e das conclusões não estava defendida por um concurso que a tivesse tornado do conhecimento oficialmente público, resumi essa obra, a conselho de amigos, numa série de sete artigos (Camões e um método crítico) que o Suplemento Literário de “O Estado de São Paulo” generosamente acolheu em 1963.
Uma e outra das obras não eram, em 1962-64, as minhas primeiras incursões na tão exclusiva cavalariça de Áugias, que o “camonismo” se tornara nas últimas décadas, apesar de notáveis esforços e admiráveis trabalhos que, todavia, não haviam conseguido quebrar as barreiras académicas. Não só porque eu não sou o Hércules mitológico, mas também porque o dito camonismo possui um teimoso pó de séculos e um renitente ranço de mediocridade, capazes de contaminar mesmo os mais infensos, a limpeza da cavalariça não fui capaz de fazê-la num só dia, nem a farei numa vida, nem só eu.
Em 1948, numa conferência realizada no Porto (A Poesia de Camões – ensaio de revelação da dialéctica camoniana), editada pelos “Cadernos de Poesia”, em 1951, e coligido no meu volume de ensaios Da Poesia Portuguesa, Lisboa, 1959, foi que, há vinte anos, me apresentei ao público, pela primeira vez, com algumas ideias novas sobre Camões, que tiveram eco e fizeram caminho, apesar da obtusidade tradicional dos meios universitários mais especializados ou (e) dos mais presos a interesses estabelecidos na indústria camoniana. Só no Brasil, de 1959 a 1965, eu tive os meios materiais e temporais para ampliar e sistematizar as minhas pesquisas, que, em 1961, produziram os seus primeiros frutos no artigo O Maneirismo de Camões e no par de artigos Camões e os Maneiristas (publicados principalmente no supracitado Suplemento Literário paulistano), como na Primeira Parte do longo estudo A Estrutura de “Os Lusíadas”, aparecida na “Revista do Livro” do Rio de Janeiro. Já entretanto, como oportunamente lhe observou o Prof. Dr. Gerald Moser, da Pennsylvania State University, o Prof. Helmut Hatzfeld, de Washington, fizera sua a minha ideia, já proposta na conferência de 1948 e desenvolvida nos artigos de 1961, de Camões como maneirista (cf. o seu estudo Estilo manuelino en los sonetos de Camões, inserido depois no seu volume Estudios sobre el Barroco [1]). De 1961 a 1966, a aparição de Uma Canção de Camões foi ainda precedida pela conferência sistematizadora, Maneirismo e Barroquismo na Poesia Portuguesa dos Séculos XVI e XVII, proferida em S. Paulo, sob égide da Universidade e da Fundação Álvares Penteado, em 1963 (com edição policopiada, nesse ano, da série de conferências, de que foi parte, sobre o Barroco), e impressa na Luso-Brazilian Review em 1965; e precedida igualmente pela série de cinco artigos, O Camões da “Aguilar”, publicados em 1964 no Suplemento Literário de “O Estado de São Paulo”, como crítica severa mas necessária à edição da Obra Completa de Camões, preparada por A. Salgado Jr., para aquela editora. Nessa série era feito uso de muito do nosso material sobre os sonetos de Camões, parte do qual é apresentado neste volume. Ainda em 1964, a “Revista do Livro” publicou a Segunda Parte do estudo sobre A Estrutura de “Os Lusíadas”, cujas finais Terceira e Quarta Partes (sendo a Terceira a análise estrutural do poema) tiveram então edição policopiada que se esgotou por distribuição entre estudantes meus e outros interessados. Ainda em 1965, a “Revista Camoniana” de São Paulo, publicou um dos apêndices ao presentes livro: As emendas da edição de 1598 das “Rimas de Camões”.
Do ponto de vista das metodologias críticas, aplicadas diversamente em Uma Canção de Camões e neste livro sobre os sonetos, e que, com aquele livro, obviamente suscitaram a displicência ignara de jornalistas literários de carreira universitária ou a pudicícia escandalizada de hetairas impressionistas de carreira jornalística, o que aí se fazia não era novidade na cadeia das minhas investigações. Haviam já sido usadas com êxito em A Sextina e a Sextina de Bernardim Ribeiro, estudo publicado na “Revista de Letras” de Assis – São Paulo, em 1963, no prefácio às Poesias Completas de António Gedeão, em 1964, e na análise do poema de François Mauriac, O Sangue de Átis, publicada em 1965 na revista “O Tempo e o Modo”. E, de um ponto de vista teorético, esses métodos haviam sido precedidos pelo Ensaio de uma Tipologia Literária, de 1960, na “Revista de Letras” acima referida, e seguidos do artigo Sistemas e Correntes Críticas, aparecido em “O Tempo e o Modo”, pela mesma altura em que Uma Canção de Camões era dada a público. E vêm sendo largamente aplicados nos Estudos de História e de Cultura que tenho publicado, com quase contínua regularidade, na revista “Ocidente”, desde Fevereiro de 1963 a colectânea, e desde Outubro desse ano o estudo monumental e exaustivo sobre Inês de Castro e o seu mito histórico-literário, que inclui a aplicação minuciosa desses métodos à análise de várias obras (em especial a Castro de António Ferreira) e de várias questões (como as de autoria do teatro do dramaturgo Juan Ruiz de Alarcón). Essa colectânea vai já, à presente data, em mais de 800 páginas impressas e publicadas, e os dois volumes que dará só devem estar conclusos em meados de 1969. A série de estudos sobre a cultura portuguesa dos séculos XIV a XVII e a literatura espanhola dos século XVI e XVII, agrupados em torno da história cultural da formação do mito literário de Inês de Castro, é indispensável, em grande parte, para compreensão – em extensão e profundidade – das minhas investigações e ideias sobre a história cultural e literária de séculos acima dos quais Camões se ergue (e, nesses estudos, ele é referido ou analisado, nas mais diversas conexões, numerosas vezes). Do mesmo modo, como exemplo de metodologia literário-cultural, tal como a entendo, convém prestar alguma atenção ao livro A Literatura Inglesa, S. Paulo, 1963, que grande parte da crítica portuguesa tentou suprimir pelo silêncio ou pela falsíssima modéstia de ser incompetente para julgá-la (como se a incompetência de muitos dos críticos em exercício, ou já nos páramos silentes do Nirvana glorioso, alguma vez lhes tivesse sido óbice para ocuparem-se do que os excede).
O presente volume é uma Primeira Parte do estudo dos sonetos atribuídos a Camões de 1595 a 1663, e trata deles exclusivamente do ponto de vista da análise da forma externa, e do da revisão necessária dos conhecimentos eruditos acerca deles, e também, quanto à forma externa, de enquadrá-los numa evolução da forma do soneto peninsular através dos poetas portugueses e espanhóis mais significativos. Deixem-se, pois, ó doutos e pseudodoutos, da falácia de lamentarem, como aconteceu com Uma Canção de Camões, que a análise não seja levada também ao plano dos sintagmas… [2]. Largamente, nos capítulos doutrinários, ou expositivos, ou programáticos, desse livro se explicava à saciedade que a obra era uma 1ª fase da investigação das questões de autoria das canções e das odes de Camões (e também, como não foi relevado por ninguém, das características das canções de Garcilaso de la Vega), preliminar, como base indispensável, à passagem a outros níveis de pesquisa, para estabelecimento de um cânone camoniano. Além de haver muita análise de estilo nesse livro, os doutos e pseudodoutos deveriam lembrar-se de que, antes de fixar-se minimamente a autoria, não sabemos o que será aceitavelmente de Camões; e de que, depois dessa fixação estar feita, qualquer análise exaustiva dos sintagmas, ou, mais elementarmente, do vocabulário, pressupõe a fixação dos textos… É tal a tradição negativa de crítica textual em Portugal e nos estudos portugueses, que até gente séria cai nesse alçapão de querer análises do que não começou por ser honestamente estabelecido, pelo menos com o largo cotejo de versões que se exige para tal trabalho. E, francamente, se o livro já tinha assustadoramente, para os fôlegos lusitanos, quase 600 páginas, e foi preciso arrancá-lo a ferros das mãos receosas dos editores (que, no entanto, tiveram a admirável coragem de editá-lo, como não sucedeu a outras instituições) [3], quantas páginas mais queriam que ele tivesse, para então não ser publicado nunca?
Uma segunda parte do presente estudo sobre os sonetos atribuídos a Camões será, igualmente, a avaliação das questões de autoria dos atribuídos ao poeta na Terceira Parte de 1668 e depois dela, através da revisão da documentação acessível e pelo cotejo com o cânone da forma externa, estabelecido nesta primeira parte. Uma outra segunda parte será então o estabelecimento do cânone vocabular e sintagmático (após uma preliminar fixação de texto) que os sonetos aceitáveis como autênticos permitirão estabelecer – e, por esse cânone, serão reaferidos os supostamente espúrios. Da mesa forma, a primeira fase de análise das canções e odes de Camões, que, em Uma Canção de Camões, precede a análise de “Manda-me amor que cante docemente” [4], será seguida por outras; e o mesmo sucessivo trabalho será aplicado ao restante da obra lírica de Camões. Paralelamente, os artigos sobre A estrutura de “Os Lusíadas” (que, como os sobre o maneirismo de Camões, aguardam há anos a publicação em volume) serão seguidos pelo cotejo de todos os exemplares conhecidos da 1ª edição do poema, na máquina que Charlton Hinman desenvolveu para o seu estudo do First Folio de Shakespeare. E também as obras de diversos poetas portugueses dos fins do século XVI e princípios do XVII, envolvidos no processo camoniano, merecerão as atenções desta pesquisa sistemática.
Têm dito todos aqueles a quem reconhecidamente devo estímulo e consolação, na solidão terrível de ser contra tudo e todos que representem amesquinhamento da dignidade intelectual ou da categoria científica dos estudos portugueses, que o meu labor é, e tem sido, gigantesco. Tem-no sido, de facto (e o que eu não teria feito, se tivesse longamente tido os meios de que dispuseram aqueles que nunca fizeram nada que se visse em proporção com tais meios…), e bem mais do que eles mesmos sabem, já que é patente que não acompanharam muitos dos aspectos dele. Mas enganam-se, exatamente como os mesquinhos e amesquinhadores pretendem enganar o público que ainda acredite neles, se tomam como arrogância a consciência humilde de trabalhador incansável, que é a minha e a das minhas obras. Estas honestamente nunca quiseram ser mais do que prometem, nem menos do que se propuseram. E, por isso, eu serei por certo a última das pessoas a quem alguém tenha o direito de exigir que faça o que ainda não fez, quando acaso pretenda julgar o que eu faço. O de que me quero modesto mas inabalável exemplo é da exigência, do rigor, e da escolaridade, que, em anos de exercício de cátedra, ou de edições precipitadas, ou de livros escritos em cima do joelho (sempre o mesmo), etc., não souberam nunca criar alguns dos responsáveis pela perpetuação em Portugal dos mais baixos padrões de investigação literária. Supor que há, nas minhas obras, o intuito polémico de atacar alguma dessas múmias sobrevivas é realmente pretender disfarçar que, nas notas eruditas dos meus livros, há material de sobra para enfaixá-las, se a crítica portuguesa efectivamente se ocupasse de verdade e de justiça. E pouco adianta escrever, num senil argumento que só mostra a que ponto pode chegar a ignorância do que seja a crítica literária nos últimos 50 anos, que os meus métodos não são originais e já provaram há muitos anos a sua inanidade, em face das excelências do método olfactivo tão perigosamente sujeito às sinusites da incompetência [5]. Porque, meus leitores, eu não vivo nesse submundo que é a indústria camoniana, nem Camões comigo e com a grandeza da literatura portuguesa a que ambos pertencemos.
Madison, Wisconsin, U.S.A., Agosto de 1968.
NOTAS
1 Não é aqui, nem nesta obra, o lugar para discutir-se o problema, mas importa acentuar que esse estudo, aliás muito penetrante, se ressente da confusão estética e cronológica de tomar-se o chamado estilo “manuelino” como maneirista, quando, em arte portuguesa, o Maneirismo corresponde ao neoclassicismo que, a partir da subida de D. João III ao trono, em 1521 (quando Camões ainda nem sequer nascera), eliminara quase totalmente o “manuelino” que vinha das últimas décadas do século XV e é variante portuguesa de um movimento geral da arte europeia (com excepção da Itália contemporânea, e não toda), correspondente ao que fora o Renascimento fora da Itália. Nesse movimento geral, de que o “plateresco” espanhol ou o estilo Tudor da Inglaterra (este nas suas fases primeiras) são aspectos, o “manuelino” é o que melhor se libertou das estruturas góticas e absorveu estruturas que eram já, em grande parte, as do Renascimento italiano seu contemporâneo e que durou de c. 1420 a c. 1530, quer na cultura, quer na arte, em que pese a periodologias ainda presas a esquemas já superados pela crítica moderna.
2 Essa palavra mágica, já um tanto gasta de ser tão referida e tão pouco aplicada efectivamente, e que parece ser, na crítica portuguesa, quase a única que ela conhece, para lá da terminologia vaga do impressionismo crítico! Recomenda-se, em língua acessível, a leitura do Dicionário de Términos Filológicos, do catedrático espanhol Lázaro Carreter, para enriquecimento, senão da prática crítica, pelo menos do vocabulário técnico.
3 Ainda é cedo para contar, mas sê-lo-á a seu tempo, se tivermos vida e saúde, o que tem sido a conspiração para impossibilitar ou retardar as pesquisas camonianas do autor, desde um golpe de vasta organização, mas sustado a tempo, para suprimir-se-lhe uma bolsa brasileira, até aos meses infinitos que Uma Canção de Camões passou nas mãos de instituições portuguesas que, por influências conhecidas, não puderam interessar-se pela edição da obra. Isto não é imaginação subjectiva: os documentos existem.
4 Note-se que o livro está dialècticamente ambivalente. Por um lado, no plano da crítica formal, era a 1ª fase de uma avaliação do cânone das canções e das odes (repararam que estas também lá são estudadas?…) de Camões. Mas, por outro, era a demonstração concreta e objectiva, pela análise rítmico-semântica e pela correlação histórico-cultural (de que aquela avaliação era, para esse efeito, ancilar), da exactidão da nossa descoberta de 1948, da dialéctica camoniana, e desta como chave para compreender-se a personalidade poética de Camões. Este, registemos aqui, exige três métodos filosóficos de pensar vivendo e viver pensando, diversamente aplicáveis em conjunto, em vária proporção, ou em exclusivo um deles, conforme o poema a estudar. Porque a dialéctica camoniana se compõe de uma dialéctica abstraccionante (propriamente dita), de uma vivência existencial e de uma síntese de ambas na criação de uma estruturalidade estética da visão do mundo e do homem nele, assim são necessários um método dialéctico, um método existencial e um método fenomenológico. Sem esta tripla aproximação, a profundidade, a magnitude e a originalidade da meditação estética de Camões não poderão ser devidamente apreciadas, independentemente da sua espantosa arte que realiza, como o sonho dos surrealistas, a elisão de sujeito e de objecto na criação do poema. Foi o que procurámos fazer através da análise daquela canção célebre e fundamental e do cotejo das versões que dela se possuem, ao mesmo tempo levando a extrema minúcia, por intenção didáctica e exemplar, o rigoroso mecanismo da discussão textual. Repita-se uma vez mais que aquela canção é tão fundamental para Camões, que dela chegaram a nós várias versões (o que não é o mesmo que variantes no texto de um mesmo poema).
5 O que possa ser a fecundidade da aplicação de observações estatísticas à crítica (linguística ou estilística) não precisa de defesa senão em Portugal… Cite-se o caso da monumental obra de Morley e Bruerton, Chronology of the Lope de Vega’s “Comedias”, New York, 1940. Em 1945, um artigo sobre uma colecção manuscrita de “comedias”, datadas, confirmava clamorosamente as deduções daqueles dois autores, cuja obra foi revista em 1963 por S. G. Morley para a tradução espanhola de Madrid, 1968. Já em 1937, Morley expusera os seus critérios em Objectiva criteria. Algumas correcções à sua metodologia podem ver-se nos nossos Estudos de História e de Cultura. Mas já em 1917, como apontámos em Uma Canção de Camões, o insigne Menéndez Pidal aplicara com êxito observações desse tipo ao estudo de Roncesvalles, como em 1943 o fez à História Troiana Polimétrica. Os métodos que desenvolvi naquele livro nada têm de comum com tudo isto, senão o serem também modestamente matemáticos, ao alcance de qualquer doméstico prestamista a juros. E não me consta que Pidal, Morley ou Bruerton, como os formalistas russos ou os homens da escola de Praga, sejam, como eu, licenciados em engenharia…
INTRODUÇÃO
Mais talvez que qualquer outra parte da vasta obra lírica de Camões, são os sonetos que, em face dos dados e dos métodos de pesquisa ao alcance do estudioso, constituem o conjunto específico que mais flutuante tem sido quanto a um cânone de autoria. Por outro lado, não se fez nunca um estudo sistemático desse conjunto no que respeita, elementarmente, às características do esquema formal, e muito menos se procurou, por um levantamento do soneto petrarquiano e petrarquista, situar tais características no âmbito das recorrências que, acaso, possam ajudar a definir um cânone, uma personalidade, uma época. Em princípio, não nos ocuparemos com a questão de um cânone textual de cada uma das composições, que é problema à parte, só resolúvel após a revisão dos dados eruditos, em coordenação com o inquérito à forma externa dos sonetos. Sem dúvida que, num ou noutro caso, o texto pode ser chamado a participar da solução de um problema autoral; mas sem dúvida que a boa doutrina manda que a fixação do texto só entre na discussão após a resolução das questões prévias. Entre estas figura, sem dúvida, a da forma externa [1].
Com efeito, se um inquérito completo aos metros ou aos esquemas de rimas nos mostrar que determinado esquema é, para o conjunto indubitavelmente canónico, anormal em Camões, não será isto uma achega para a exclusão de uma composição duvidosa? Se nos mostrar, por outro lado, que determinado esquema não é comum na época de Camões, e o é em época posterior, não será isto uma indicação da apocrifia do texto? Além disto, o inquérito à forma externa dos sonetos (ou de qualquer outro tipo de composição) tem um interesse concreto, ainda que possa ser considerado secundário. Por ele poderemos observar se os esquemas são preferencialmente típicos, que coincidência haverá entre essa tipicidade e as estabelecidas para outros poetas cujo exemplo é julgado – com pouco objectivas causas – influente, e como terá evoluído no tempo essa preferência pelos vários esquemas possíveis. Para isto, neste nosso estudo, fizemos o levantamento geral dos sonetos de Petrarca, Ariosto, Boscán, Bembo, Garcilaso de la Vega, Diego Hurtado de Mendoza, Cetina, Sá de Miranda, Andrade Caminha, António Ferreira, Diogo Bernardes, Camões (nas edições a que nos ativemos para o cânone principal), Aldana, Herrera, e outros, e as comparações convenientes entre os resultados encontrados.
Petrarca é, como se sabe, a fonte principal dos esquemas do soneto, no petrarquismo do século XVI. Este petrarquismo, porém, afastou-se muito, por vezes, dos modelos do mestre, variando-os; e uma avaliação correcta da sua evolução exigiria levantamentos análogos para alguns dos poetas italianos do século XVI, cuja difusão e prestígio foram maiores. Seria um trabalho gigantesco, para que nos faltam os meios de pesquisa; e, de certo modo, compensada será esta lacuna pela investigação de Boscán e de Garcilaso, que foram os triunfais introdutores (logo seguidos por outros) do soneto na língua castelhana [2], e que têm sido considerados como grandemente influentes em toda a cultura literária peninsular da época. A observação de Aldana e de Herrera, contemporâneos de Camões, permitir-nos-á aferir a evolução castelhana. Quanto aos portugueses estudados, serão evidentes as razões da escolha feita. Sá de Miranda representou, em Portugal, um papel análogo e contemporâneo do de Boscán. Diogo Bernardes é o poeta quinhentista cujas obras mais confundidas foram com as de Camões. E estes dois, com Ferreira e Caminha, são, dos poetas portugueses da segunda metade do século XVI, aqueles de que há edições algo libertas das tremendas confusões autorais dos cancioneiros de mão, que tornam a obra de muitos outros poetas um caos aflitivo, ante o qual a erudição tem recuado com prudente reticência. Se muitos deles tiveram a honra de ser confundidos com Camões, e são, pelo que se conhece (editados em velhos volumes nunca reeditados mais modernamente, ou semieditados e discutidos só a propósito das questões camonianas), poetas de muito mérito, parece que vai chegando a hora de iniciar-se, nesse oceano de poemas, um trabalho de pesquisa e coordenação que ponha ante os olhos do leitor interessado (e quantos desinteressados não haverá, apenas por crerem que tudo aquilo é uma trapalhada de versejadores copiando Camões, que é a imagem que a erudição difundiu deles, sem dilucidação sistemática, na medida do possível, da obra dos mais dignos de interesse) os elementos concretos por onde julgar-se de uma época tão rica de poesia e de gosto por ela, que foi possível gerar-se a confusão que a submergiu na sombra de Camões. Não é esta a questão que nos ocupa aqui. Mas aludir a ela é indispensável, já que pesa, como um ónus sério, sobre os próprios estudos camonianos. Não pesa, todavia, muito substancialmente sobre a parte da obra camoniana que vamos investigar.
Na verdade, e quanto aos sonetos de Camões, é com as edições de Álvares da Cunha, que em 1668 publicou uma Terceira Parte das Rimas, e de Faria e Sousa, que, póstuma, começou a ser publicada em 1685 (ficando incompleta, mas não quanto à parte dos sonetos), que a maior complicação autoral começou a desenvolver-se, tendo atingido um auge de complexidade ou de negligência crítica nas edições de Juromenha (1860-69) e de Teófilo Braga (a da Actualidade, em 1873-74, e a do Parnaso, em 1880), independentemente do interesse que, por outras razões, é de justiça reconhecer a estas edições todas. A utilização indiscriminada de sonetos atribuíveis a Camões, ou nem sequer atribuíveis a ele por um mínimo de critério crítico, faz com que a questão das autorias, para estas edições oitocentistas, deva ser revista, não apenas à luz de uma rigorosa investigação de dados externos, mas também à luz de todo um cânone autoral e textual, fixado a partir do que, nas edições primeiras, pode formar um conjunto tão camonianamente válido quanto possível. E o mesmo se dirá das composições que, não utilizadas por esses organizadores oitocentistas, nem pelos editores modernos, ainda aguardam, nos cancioneiros manuscritos de que há notícia ou utilização parcial, um exame crítico que as afira por um cânone básico. É o caso, por exemplo, de algumas composições do Cancioneiro Fernandes Tomás, julgadas camonianas por Carolina Michaëlis, mas que ainda não foram integradas à obra lírica de Camões, se se der o caso de poderem sê-lo [3]. E o Cancioneiro Luís Franco, peça básica do processo das autorias e dos textos camonianos (e de outros poetas importantes do século XVI), ainda espera a edição e o estudo sistemático que o seu valor documental impõe.
Por outro lado, a questão das coincidências ou não-coincidências textuais entre as edições de Álvares da Cunha e de Faria e Sousa, se constitui em si mesma um sério problema que julgamos pendente de verificação mais exaustiva do que a feita até hoje [4], aponta para que, a partir delas, os critérios de juízo se modifiquem, dada a grande massa de apócrifos que essas edições terão acrescentado a Camões.
Nestas condições, um cânone básico, pelo qual aferir-se da mais ou menos provável autoria camoniana de composições duvidosas, parece-nos que deve principiar por constituir-se das composições indiscutíveis ou aceitáveis da edição de 1595, com a ampliação da sua reedição de 1598. A este primeiro cânone, e após conferência por ele, poderão ser integradas as composições da Segunda Parte das Rimas, publicada em 1616, e, se a tal fizer jus, o soneto que, na edição de 1663, apareceu como inédito de Camões. Este conjunto de composições dadas a público, desde 1595 a 1663, constituirá, assim, um corpo canónico pelo qual será possível objectivamente avaliar-se da autenticidade das atribuições ulteriores. O nosso presente estudo visa a contribuir para o estabelecimento concreto desse cânone, para a fixação das suas características, para situar Camões, segundo um conjunto tão autêntico quanto os nossos conhecimentos permitem definir, no quadro da poesia do século XVI, de que ele foi o mais alto e significativo expoente.
NOTAS
1 A nossa concepção de forma externa não é complemente antinómico de uma forma interna que seja a innere Form (ou forma interior) de Ermatinger e outros. Esta última noção, sem dúvida mais feliz que a correspondente noção de um conteúdo opondo-se à forma (porque acentua melhor a interdependência de “sentido” e “expressão”), implica igualmente (como a dualidade “matéria-forma”, segundo a definição de Amado Alonso) uma concepção idealística da obra literária, pela qual o que importa é o núcleo central de um pensamento poético exprimindo-se através de um estilo, cujos sinais característicos nos revelariam aquela “forma interior”. A tal concepção idealística não aderimos, pois que ela subverte a consideração concreta do objecto estético, que uma obra de arte literária antes de tudo é, e substituindo-a por uma abstracção que culminará, necessariamente, em comentários psicologísticos de uma personalidade “ideal”. E a dialéctica da criação poética não se estabelece, para efeitos de entendimento objetivo, entre uma personalidade ideal e o que ela consegue pôr de si mesma numa forma, mas sim entre o significado último de uma construção de sentido, que uma obra é, e a intencionalidade estética que, através de inúmeros elementos (um dos quais é a personalidade criadora, com a sua experiência de vida), procurou criá-la. E esta intencionalidade é a análise dos textos (e das suas contradições dialécticas) o que no-la revela. Do mesmo modo, não aderimos também – a não ser em termos relativos – ao conceito de inward form do filósofo inglês do século XVIII Anthony Cooper, 3º conde de Shaftesbury, e que é bem mais uma harmonia, necessariamente bela, do senso ético exercendo a sua independência metafísica. Este conceito ético-empirista do discípulo de Locke repercute, aliás, com enorme relevância, através do Sturm und Drang e do ulterior classicismo pré-romântico (Herder, Goethe, Schiller), nas ideias da crítica alemã neo-kantiana. Para nós, forma externa são as características formais, observadas em si mesmas, enquanto independentes do sentido (meaning, tal como definido por Ogden e Richards). Forma interna, por sua vez, não sendo “conteúdo” ou “innere Form”, é a “estrutura de sentido” ou “construção de sentido” que uma obra literária é, segundo as correlações semânticas determinadas pela forma externa. Esta e a forma interna não são, portanto, dois grupos de elementos idealisticamente antinómicos, suporte de sentidos, uns, e o sentido, os outros; mas sim os próprios elementos constituintes do objecto estético, observados em si mesmos, ou na totalidade que eles mesmos constituem, no que discordamos da contradição em que se coloca Dámaso Alonso, em Poesia Española, ao identificar-se com os critérios positivistas da linguística de Saussure, por influência de Charles Bally. Todavia, a consideração crítica da forma externa e da forma interna – fases sucessivas de uma mesma análise – não pode ser feita, e não deve, dissociadamente de uma perspectiva histórica e social que permita limitar as áreas de sentido, ao que era possível pensar-se, e que, reciprocamente, permita corrigir as generalizações apressadas e culturalistas da crítica “sociológica”. Por isso, discordamos de que se façam estudos meramente formalísticos, por um lado, ou que, por outro, se pratiquem “explicações de texto”, análises de conteúdo (que podem chegar ao absurdo do conteúdo ideal, definido por Petsch, e seriam uma abstracção idealística daquilo que, em intuicionismo bergsoniano aplicado à crítica literária, tem sido costume chamar-se o “pensamento” de um escritor, desvinculando-se esse pensamento do modo como ele se exprimiria), ou mesmo, se não tomados como apenas técnicas de atenção ao texto, close readings. E por isso defendemos que se pratique uma análise rítmico-semântica, pela qual se analisam primeiro e sintetizam depois, em sucessivos níveis de compreensão, os elementos que arquitectonicamente compõem uma estrutura de sentido, visto que uma obra de arte literária é muito mais uma estrutura de sentido que propriamente um sentido “último”. A respeito de uma mais ampla exposição destas nossas ideias, consultem-se os nosso volumes de ensaios, e em especial a introdução metodológica do nosso livro Uma Canção de Camões, e artigos citados no prefácio. Acerca do interesse e do lugar que atribuímos a Shaftsbury, ver a nossa Literatura Inglesa, em que o seu pensamento é genealogicamente situado na cultura britânica (e na europeia do século XVIII).
2 Houvera já, antes deles, e a começar no marquês de Santilhana, tentativas por parte de poetas castelhanos [cf. um resumo da questão feito por Menéndez y Pelayo, em Antologia de Poetas Líricos Castelhanos, tomo X (“Juan Boscán – estudio crítico”), ed. Espasa Calpe, Buenos Aires, 1952]. Não conhecemos exemplos de análogas tentativas portuguesas. Os celebrados sonetos em galaico-português, incluídos no Poemas Lusitanos, de António Ferreira, são declaradamente imitações linguísticas, aliás saborosíssimas, feitas por este poeta.
3 No seu estudo O Cancioneiro Fernandes Tomás, Coimbra, 1922, Carolina Michaëlis não repudia a autoria camoniana de, por exemplo, a “canção” que começa “Não de cores fingidas”. Esta tradução livre de Horácio “Non ebur neque aureum”, nº 18 do livro II das odes), ao que verificamos, não é tecnicamente uma canção, mas uma ode, e, como tal, integra-se perfeitamente no cânone camoniano das odes. A discussão, a partir de um inquérito estrutural à forma externa das canções e das odes de Camões, desta e de outras composições apócrifas, fizemo-la no nosso vasto estudo Uma Canção de Camões – interpretação estrutural de uma tripla canção camoniana, precedida de um estudo geral sobre a canção petrarquista peninsular e sobre as canções e odes de Camões, envolvendo a questão das apócrifas, de que um breve resumo foi publicado no “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo, em sete artigos (6/4, 20/4, 27/4, 4/5, 11/5, 18/5 e 25/5/63). Nessa obra, a interpretação estrutural da canção que começa “Manda-me amor…” (nas suas várias versões e variantes: edição de 1595, edição de 1598, edição de 1616, Cancioneiro Luís Franco, Cancioneiro Juromenha), peça lírica que consideramos fundamental para a compreensão do pensamento de Camões (desde a nossa conferência de 1948, “A poesia de Camões: ensaio de revelação da dialéctica camoniana”, primeiro publicada em 1951, e mais tarde incluída no nosso volume Da Poesia Portuguesa, Lisboa, 1959), é, como o título daquela nossa obra indica, precedida por um estudo geral das canções e das odes de Camões, à luz de um inquérito estrutural à forma externa delas e da evolução da canção petrarquista em Petrarca e nos poetas castelhanos e italianos que têm sido considerados como fonte formal de Camões. Os textos considerados apócrifos ou suspeitos são, nesse estudo geral, cotejados pelo cânone formal estabelecido a partir das composições “canónicas”, para esclarecimento de sua autenticidade ou apocrifia.
4 A. J. da Costa Pimpão discutiu engenhosamente o problema no seu artigo “A lírica camoniana no século XVII”, em Brotéria, vol. XXXV, fasc. 1, Lisboa, 1942, e aplicou as conclusões a que chegara na sua edição de 1944. Mas cremos que essas conclusões devem ser revistas cuidadosamente, a partir de um levantamento rigoroso das variantes de Faria e Sousa, em toda a sua edição, uma vez que para a maioria das composições já impressas antes de Faria preparar a edição, essas variantes se nos afiguram menos extensas e profundas do que as introduzidas nas composições “inéditas”. Neste nosso presente estudo afloramos os problemas reais ou fictícios que têm sido levantados a propósito de Faria e Sousa, sempre que a edição dele contribui para o esclarecimento do cânone que pretendemos.