Bem mais conhecida a predileção de Jorge de Sena pela música erudita — haja vista o excepcional livro Arte de Música, bem como os muitos comentários a audições que faz nos diários ou cartas — a seu ouvido não passa despercebida, no entanto, a música popular, que lhe mereceu os poemas abaixo transcritos “A Piaf”, “Ray Charles” e “Música ligeira”.
Mas impossível de não ser destacada é também a musicalização de vários poemas seus, em várias décadas, com diferentes abordagens, a acentuar musicalidades distintas de seus versos. Desde o internacional Zeca Afonso, que — tal como vários outros cantores e compositores portugueses no auge da repressão salazarista — seguiu o veio do texto literário impresso e circulante para fugir aos inevitáveis cortes da censura; passando por revisitas críticas, a oscilar entre fidelidade e ruptura, como David Mourão-Ferreira aponta no trabalho de Luis Cília, ou ainda a recuperação de ecos da música tradicional portuguesa como prefere o grupo Pedra d’Hera, até jovens universitários brasileiros, Luis Maffei e Marcelo Gargaglione que, ainda há pouco, encontraram no texto de Sena a atualidade de suas inquietações e o estímulo a experiências sonoras — o que é explicitado pelo primeiro no breve “memorial” que segue a transcrição.
Poemas de Jorge de Sena musicados:
* “Epígrafe para a Arte de Furtar” (Fidelidade, Poesia II): poema musicado por Zeca Afonso, no álbum Traz Outro Amigo Também (1970)
* “A Piaf” (Arte de Música, Poesia II): poema musicado por Marcelo Gargaglione e Luis Maffei, no álbum na mesma situação de blake (2005)
* “No casto promontório” (Quarenta Anos de Servidão): poema musicado por Luis Cilia, no álbum “Sinais de Sena“ (1985) com dez faixas dedicadas à obra de Jorge de Sena
* “Nas terras de além do mar” (Quarenta Anos de Servidão): poema musicado pelo grupo Pedra d’Hera, no álbum Ventos (1996).
Outros Poemas de Jorge de Sena dedicados à Música Popular:
* “Ray Charles” (Sequências, 50 Poemas)
* “Música Ligeira” (Exorcismos, Poesia III)
Epígrafe para a Arte de Furtar
Roubam-me Deus,
outros o Diabo
– quem cantarei?
roubam-me a Pátria;
e a Humanidade
outros ma roubam
– quem cantarei?
sempre há quem roube
quem eu deseje;
e de mim mesmo
– todos me roubam
roubam-me a voz
quando me calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
– aqui d’El Rei!
(3/6/1952)
A Piaf
Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca,
ou docemente lírica e sentimental,
ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do “Ça ira”,
ou apenas recitar meditativa, entoada, dos sonhos perdidos,
dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa,
e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado
nas noites desesperadas da carne saudosa que se não conforma
de não ter tido plenamente a carne que a traiu,
esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte,
como exactamente a vida que os outros continuam vivendo
ante os olhos que se fazem garganta e palavras
para dizerem não do que sempre viram mas do que adivinham
nesta sombra que se estende luminosa por dentro
das multidões solitárias que teimam em resistir
como melodias valsando suburbanas
nas vielas do amor
e do mundo.
Quem tinha assim a morte na sua voz
e na vida. Quem como ela perdeu
toda a alegria e toda a esperança
é que pode cantar com esta ciência
do desespero de ser-se um ser humano
entre os humanos que o são tão pouco.
(6/10/1964)
=> A partir de “A Piaf”
(por Luis Maffei)
O primeiro poema de Arte de música, “Bach: Variações Goldberg”, começa por dizer que “A música é só música”, no sentido de sua intraduzibilidade ecfrástica. O livro citado, sabe-se, é dedicado a poemas que partem de alguma peça musical existente, não para traduzi-la em versos, pois “música é só música” – o “só” seniano, aliás, sabendo a um sol restritivo, situa nietzschianamente a música num espaço nobre e amplo. O que faz Arte de música é, a partir de exemplares da chamada “grande música”, ou música de concerto, pôr a linguagem poética para estupefazer-se diante de compositores e temas e fazer-se harmônica e tensamente em concerto com compositores e temas.
“A Piaf”, poema composto por duas estrofes, a primeira longa e a segunda curta, cada uma ateúda em sua internalidade, é notável exceção. Edith Piaf é cantora popular, não apenas porque não faça música erudita, mas porque angaria boa parte de seus ouvintes entre pessoas sem especial educação musical. Melômano, Sena ouviu Piaf pela clave do humanismo, e também pela especialíssima voz “canalha e rouca”, ou “docemente lírica e sentimental” da francófona cantora nascida pobre e morta consagrada.
Marcelo Gargaglione e eu cometemos a audácia de, em nosso disco na mesma situação de blake, transformar “A Piaf” em música – uma valsa de certa evocação parisiense. “A Piaf” também funciona como exceção em nosso CD, pois as demais faixas possuem um mais acentuado caráter de experimentação (na falta de termo melhor) que a dedicada ao poema de Sena. A faixa conclui-se com uma gravação do próprio Sena lendo seu poema “Madrugada”.
Termos musicado “A Piaf”, desobediência, espero, criativa, foi como tornar à música um poema que sempre teve da música a vocação.
No casto promontório
No casto promontório dos teus seios
que sonhos nunca sonho de dormir
teus membros alongados que se curvam
abraço que já foi vai-vém de amor
e apenas é repouso respirado
e brandamente arfado
como um perlado
suor.
Tudo o que foste ainda serás por sempre
que auroras perpassarem rente a nós.
Tudo quanto és já foste e mais serás
no calor brando em que estaremos sós
agora e logo
neste silêncio –
voz.
Teu seio que repousa
no cristal que ousa
respirar por nós,
tão brandamente escuto
que, devoluto,
apenas sonho a transparência casta
em que mais vasta
se repete a vida.
Como um suor que fala,
como voz suada,
como repetição que se não cala
senão numa alvorada
consentida.
Nas Terras de Além do Mar
Nas terras de além do mar,
está meu Amor assentado.
Seus olhos fitam a noite,
seu seio sobressaltado
respira em brandos soluços
nas cartas que está escrevendo
o meu silêncio de ausente,
de distante e de presente
no corpo que se torcendo
está de saudades por mim.
Ó meu amor, minha amada,
meus ouvidos, minha fala,
minha dama de amargura!
(22/8/1959)
Ray Charles
Cego e negro, quem mais americano?
Com drogas, mulheres e pederastas,
a esposa e os filhos, rouco e gutural
canta em grasnidos suaves pelo mundo
a doce escravidão do dólar e da vida.
Na voz, há o sangue de presidentes assassinados,
as bofetadas e o chicote, os desembarques
de «marines» na China ou no Caribe, a Aliança
para o Progresso da Coreia e do Viet-Nam,
e o plasma sanguíneo com etiquetas de black e white
por causa das confusões.
E há as Filhas da Liberdade, todas virgens e córneas,
de lunetas. E o assalto ao México e às Filipinas,
e a música do povo eleito por Jeová e por Calvino
para instituir o Fundo Monetário dos bancos e dos louros,
a cadeira eléctrica, e a câmara de gás. Será que ele sabe?
Os corais melosos e castrados titirilam contracantos
ao canto que ele canta em sábias agonias
aprendidas pelos avós ao peso do algodão.
É cego como todos os que cegaram nas notícias da United Press,
nos programas de televisão, nos filmes de Holywood,
nos discursos dos políticos cheirando a Aqua Velva e a petróleo,
nos relatórios das comissões parlamentares de inquérito,
e da CIA, do FBI, ou da polícia de Dallas.
E é negro por fora como isso por dentro.
Cego negro, uivando ricamente
(enquanto as cidades ardem e os «snipers» crepitam)
sob a chuva de dólares e drogas
as dores da vida ao som da bateria,
quem mais americano?
(15/Mar/1964)
Música Ligeira
Vulgar, ligeira, música sem nome,
adocicada num rascante falso
de orquestração pedante e requebrada,
tão apelante para o sentimento
e a fácil lágrima pi-rí pi-rí –
mas em momentos de abandono é como
lubrificante cuspo que, secreto,
faz deslizante n’alma até ao fundo
o membro imenso de aturar-se a vida.
Depois, mesmo sem música, já está,
e a fêmea humana de aceitar-se a dor
até que as pernas juntas de prazer,
lembrando a melodia oleante e fluida,
vulgar, ligeira, música sem nome.
(25/11/1971)