Tempo de carnaval: tempo do mundo às avessas, tempo de brincar com o sério, tempo de satirizar o instituído, tempo de dessacralizar mitos, tempo de desfazer limites e misturar opostos… Atrás de máscaras e fantasias, os cortejos liberam o interdito impondo a ordem da desordem… E o discurso poético, camaleônico em essência, poderia abdicar de sua potencialidade carnavalizante? Alguns exemplos na poesia de Jorge de Sena…
* Ode ao Surrealismo por conta alheia (de Pedra Filosofal, Poesia I)
* “Pot-Pourri” Final (de Arte de Música, Poesia II)
* “Dona Urraca tem um físico” (de O Físico Prodigioso)
* Hino dos Cocos (de Sequências)
Ode ao Surrealismo por conta alheia
Que levas ao colo, embrulhado em sarrafaçais transcritos mau olhado
abomináveis trutas e outros preconceitos?
Um sacerdote? Um gato? A timidez?
Que transportas silencioso, imóvel, como dormindo, no xaile
pespontado a verde com que limpas o suor, o sêmen, as fezes,
tudo o que abandonas, ofereces, vendes, expulsas, injetas,
convocas, reprovas, descreves, etc.?
Embalas e não respondes.
Temes a polícia, os tapetes, o capacho, o telefone, as campainhas
de porta, as pessoas paradas pelas esquinas reparando
em por de baixo das roupas das outras que passam?
Temes as palavras?
Temes que saiam versos, lágrimas, casamentos,
satisfações apressadas em campos de arrabalde?
Temes os partidos, os artigos de fundo, os banqueiros, os capelistas,
a inflação, as úlceras do estômago ou sociais?
Que transportas ao colo
em silêncio e num xaile?
É a vida? Anúncios luminosos? Casas económicas? O mar? Irmãos?
Reivindicações? Um livro?
Embalas e não respondes.
É a vida? A noite que cai? As luzes distantes? Um gesto? Um olhar?
Um quadro? Uma poesia lírica?
(Oportunamente interrompida pela chegada de uma pessoa conhecida)
24/09/1948
Chegou e disse: – Caríssimo! –
Carissimus, carissimi, compositor de opereta
para violoncelo de igreja. Ergui
– oh – os olhos da persiana, e respondi:
– Cameta adinomata apropicterón –,
Sorriu e, lentamente, começou a despir-se.
Não direi que falámos. Nem que me despisse
eu. Para quê? Porquê? Adinomata.
Quando tudo acabou, para ganharmos tempo
era mister que falássemos. De quê?
Trifles, trifles. Bagatelles. Como
se conta assim a infância que não tivemos,
as estreias amorosas – tantas desde o bico do peito –
que não foram assim, os sonhos e amarguras
mais condizentes com o físico – não o nosso –
ao nosso lado. Nosso?… Meu, talvez.
De resto, a posse, ó cara, a posse,
não sei que seja: um gorgolejo interno?
Quem de nós dois se possuiu? Tolice.
Adinomata – e sussurrei, atento
aos dedos que avançavam, música.
Trifles, trifles, estou velho, meu amor,
para recomeçar. Amanhã. Ou antes,
dentro de uma hora ou duas. Conversar?
De quê? Porquê? Carissimus, carissimi.
Para quê Mozart? E Palestrina?
Missa do Papa Marcelo. Apropicterón.
Quão bagatelle! Avia-te. Cameta.
Sempre caro mi fu quest’ermo colle…
Ah, ritrovata, adonimata, adinimata!
Pff… Piazza d’Espagna.
Ave Caesar, morituri te salutant. Que bonito.
Andrócles, então, escuta, escuta,
converteu o leão ao catolicismo.
Romano? Pois se foi em Roma.
Tal como numa aurora que se estraça,
os homens mijam no recanto da praça,
avec l’assentiment des grands héliotropes.
Abre a boca e fecha os olhos. Isso.
Se o heliotrópio é cucurbitácea? Bissexuado?
Francamente, não sei. Engole. Esqueci a botânica,
pela mesma época em que – la plaza tiene una torre –
descri por completo das noções de posse.
Nil humani (ou vice-versa) a me alienum puto.
Não, não é palavra feia, é só latim.
Acredita. Compreendo. É melhor que tu saias
primeiro. Ou que eu saia,
primeiro. Não, combinar, para quê?
Não há como este acaso que jamais
repetirásse. Ass? Que jamais, repito,
se repetirá. Pensemos gloriosamente:
como éramos bem um para o outro,
como éramos bem um para o outro,
como éramos, não éramos, e bem,
a surpresa agradável de não sermos.
Undo this button. Thank you, adinomata.
Amanhã… se eu morresse amanhã…
O botão. São mais cómodos aqueles fechos
de correr. Mas arrepelam. Guarda esse botão,
contigo.
Addio! O “Mayflower” apita.
Ouvem-se as fanfarras do Novo Mundo (a sinfonia,
feita com temas do Velho). Vai, não percas
a passagem, as estribeiras, a cabeça:
as pradarias esperam-te.
Pasta nelas.
E, para mim mesmo, murmurei: Carissimi!…
29/2/1962
Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.
Dona Urraca é boa dama
para as donzelas que tem.
Quando elas adoecem
logo o físico ali vem.
Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.
Põe o gorro na cabeça,
não se vê como está nu.
Mas ao dar a medicina
é como tutano cru.
Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.
Físico prodigioso,
que tudo cura por bem.
Mas doenças de donzela
el’cura como ninguém.
Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.
E dor’s de mal maridada,
Dona Urraca que o diga.
Pois antes que el’apareça
aqui se acaba a cantiga.
Dona Urraca tem um físico…
Nós os Cocos
estreptococos
gonococos
pneumococos
estafilo –
cocos somos
não queremos
outra terra
Viva a América!
penicilinas
estreptomicinas
cloromicetinas
tetraciclinas
só nos são dadas
em doses pequenas
que vamos comendo
dançando e bebendo
felizes contentes.
Enquanto duramos
doentes pioram
drogas se gastam
doentes se operam
drogas se injectam
e nós prosperando
e os hospitais
e os médicos idem.
Somos amigos,
somos consócios,
somos con-cocos,
viva a América!
12/08/1969