Continuando nossa seleção dos poemas que Eugénio Lisboa define como os “antinatais de Jorge de Sena”, apresentamos os Natais de 1942, 1950 e 1972.
Estupro, ou Natal-42
Da passagem da aurora vem uma noite dizendo
que alguém resiste à coragem da vida.
E a noite supõe que só alguém resiste.
A noite desce, não pode saber que são muitos
que resistem todos por qualquer canto do ser,
mesmo quem finge, mesmo quem não finge
e sofre solitário por saber da força,
a força teima dentro quando se fareja,
ó noite, a resistência invade o coração do mundo,
terra não lavrada, terra que ficou incólume
do sangue dos justos, das lágrimas das mães
e das mulheres que quiseram ser mães
sem que qualquer homem lhes servisse
e das que não serviram para nenhum homem
e dos homens virgens porque o tempo urgia,
terra que ficou incólume
como se houvesse mais que duas mãos
para a esconder do orvalho!
Não, não querem que as palavras tristes
a humedeçam; querem reservá-la
para fins ocultos, para bruxarias,
para bonecos de barro de que fala a Bíblia,
muitas estátuas com rostos de empréstimo,
rostos roubados a quem sofreu pela esperança
e morreu lutando contra uma membrana ténue
entretecida pelo tear do medo.
Querem-te virgem, terra, para violações sangrentas,
e não consentem que sejas amada pela teimosia de estrelas
com que o Universo fecunda triunfante
o véu mísero e obscuro que, até tu sem querer,
estendes, quando planeta, sobre o firmamento.
28/12/42
Natal – 1950
Nenhum Natal será possível: sei
que tudo enfim suspenso aguarda
não já Natais sempre de guerra mas
a morte iluminada como aurora
entre esta gente que se junta rindo
e as luzes interiores, muitas cabeças juntas;
entre as lágrimas de ternura e os murmúrios de esperança,
entre as vozes e os silêncios, as pedras e as árvores,
entre muralhas de janelas sob a chuva,
entre agonias dos que lutam porque são mandados
e a cobarde angústia dos que apenas mandam,
no meio da vida, círculo de fogo,
à luz de que se vê uma calçada suja
de restos de comida e de papéis rasgados
– se sei, embora saiba, quanto soube:
ah canto do meu canto, olhar do meu olhar,
nenhum Natal, bem sei, mas outra gente,
e tanta gente, e mesmo que um só fosse,
já louco, envelhecido, apenas hábito,
que poderei fazer, senão humildemente
cantar?
25/12/50
Natal de 1972
Neste comércio festivo que há dois mil anos quase
perdura mal cobrindo remendadamente
o solstício do Inverno e os deuses sempre vivos
de cuja falsa morte o mundo paga em crimes,
como em vileza humana, o medo que escolheu
quando ao claror da aurora rósea e livre
de viver como os deuses e com eles
preferiu a lei e a ordem projectadas
na sombra em sombras da caverna obscura
e desejou o mal em preço de ser-se homem —
tudo o que em milhares de anos é tribal
congrega-se feliz num doce rebolar-se
da traição de que fomos contra a vida.
Tão vil que levou séculos a inventar
um deus assassinado para desculpá-la,
e fez dele o comércio das famílias
que cortam no peru as raivas de existirem,
beijando-se visguentas, comovidas,
tal como têm babado os pés dos deuses,
ah não eles mesmos mas imagens vãs
que não resplendam da grandeza humana.
Alguma vez teremos o dinheiro
para comprar de novo o Paraíso,
em vez de prendas para o sapatinho?
O Paraíso aqui — aquele que venderam
no começar do mundo. E que nos trocam
por outros no futuro ou nos aléns,
agora, aqui, aberto a todos, claro
– um sol sem fim nos bosques ou nas praias,
uma nudez sem morte nos corpos sem alma.
Talvez que o só vejamos por um instante
naquele espaço-tempo entre morrer
e o ficar morto para os antropófagos
dos deuses e dos homens, hóstia ou ossos.
Entretanto, senhoras e senhores, as Boas Festas.
23/12/1972