Do motivo pictórico ao musical, do epicédio pelo amigo ao pressentimento do próprio fim, o tema da morte avulta em grandes poemas de Jorge de Sena, alguns dos quais aqui relembrados.
- “A Morta” de Rembrandt (de Metamorfoses, Poesia II)
- “Requiem” de Mozart (de Arte de Música, Poesia II) – Em áudio
- À Memória de Adolfo Casais Monteiro (de Conheço o Sal… e Outros Poemas, Poesia III)
Morta. Apenas morta. Nada mais que morta.
Não parece dormir. Nem se dirá
que sonha ou que repousa ou que da vida
levou consigo o mais que não viveu.
Parece que está morta e nada mais parece.
E tudo se compõe, dispõe e harmoniza
para que a morte seja apenas sua.
É muito velha. Velha, ou consumida
na serena angústia de aguardar que a vida
vá golpe a golpe desbastando os laços
de carne e de memória, de prazer, piedade,
ou do simples ouvir que os outros riem,
e choram e ciciam ou silentes
se escutam tal como ela se escutava
na calma distracção de respirar
o tempo que circula pelas veias.
Em tudo a vida se extinguiu. Primeiro,
a que era sua e como que de todos
quantos amara ou conhecera um pouco
ou, vagamente vultos recordados, eram
sombras dos dias pensativos em
que os olhos pousam no que passa ou pára.
Depois a vida nela — o só viver,
o só estar viva sem saber seu nome —
e que não era sua mas lhe fora entregue
de posse em posse, no correr dos séculos,
desde a primeva noite pantanosa
àquele quarto em que vagiu nascendo.
Formas da vida não subsiste alguma
na luz difusa que a seu rosto aclara
tão marfinado no sudário branco
a destacar-se da coberta escura.
Morreu por certo há pouco, e já na boca
de lábios finos, comissuras longas,
como nas pálpebras pesadas ou
no afilamento do nariz adunco,
nada palpita, nem a morte, nada.
A luz deixa na sombra o crucifixo
que pende da parede ao pé do leito,
porém no rosto pousa aguda e leve
iluminando a teia de milhares de rugas
tecida pela aranha que se agita
entre nós e os outros, entre nós e as coisas,
entre nós e nós próprios, mesmo que
não fosse a vida esse crispar-se a pele
a um beijo que desliza, um vento que perpassa,
uma ansiedade alheada, um medo súbito,
uma demora de confiança triste.
Está morta. Apenas morta. Mas, no entanto,
na solidão a que nem cores resistem
não morre o mundo, não figura a Morte,
nada figura senão ela que
deixou de ser a solidão da vida,
para ficar ali, antes de apodrecer,
no breve instante em que a agonia acaba,
a solidão que vemos exterior enfim
no rosto amarelecido, no sudário branco,
no escuro cobertor, na luz difusa,
no jeito da cabeça repousada,
e nas pesadas pálpebras espessas,
fechadas sobre os olhos para sempre.
Lisboa, 12/5/1959
«Requiem» de Mozart
I
Ouço-te, ó música, subir aguda
à convergente solidão gelada.
Ouço-te, ó música, chegar desnuda
ao vácuo centro, aonde, sustentada
e da esférica treva rodeada,
tu resplandeces e cintilas muda
como o silente gesto, a mão espalmada
por sobre a solidão que amante exsuda
e lacrimosa escorre pelo espaço
além de que só luz grita o pavor.
Ouço-te lá pousada, equidistante
desse clarão cuja doçura é de aço
como do frágil mas potente amor
que em teu ouvir-te queda esvoaçante.
16/4/1962
lI
Ó música da morte, ó vozes tantas
e tão agudas, que o estertor se cala.
Ó música da carne amargurada
de tanto ter perdido que ora esquece.
Ó música de morte, ah quantas, quantas
mortes gritaram no que em ti não fala.
Ó música da mente espedaçada
de tanto ter sonhado o que entretece,
sem cor e sem sentido, no fervor
de sublimar-se nesse além que és tu.
Ó vida feita uma detida morte.
Ó morte feita um inocente amor.
Amor que as asas sobre o corpo nu
fecha tranquilas no possuir da sorte.
16/4/1962
III
Além do falso ou verdadeiro, além
do abstracto e do concreto, além da forma
e do conceito, além do que transforma
contrários pares noutros par’s também,
além do que recorre ou nunca vem
ao que se pensa ou sente, além da norma
em que o não-ser se humilha e se conforma,
além do possuir-se, e para além
dessa certeza que outro ritmo dá
àquele de que as palavras têm sentido:
lá onde ouvir e não-ouvir se igualam
na mesma imagem virtual do na-
da — é que tu vais, ó música, partido
o nó dos tempos que por ti se calam.
15/10/1967
IV
Tudo se cala em ti como na vida.
Tudo palpita e flui como no leito
em que se morre ou se ama, já desfeito
o abraço do momento em que, sustida
a sensação da posse conseguida,
a carne pára a ejacular-se atenta.
Tudo é prazer em ti. Quanto alimenta
esta glória de existir, trazida
a cada instante só do instante ser-se,
reflui em ti, puro, atlante,
certeza e segurança de conter-se
na criação virtual o renascer-se
agora e sempre pelo tempo adiante,
mesmo esquecido. Em ti, o conhecer-se
deste possível é a paz do amante.
15/10/1962 – revisto em 15/10/1967 e acrescentados os dois últimos poemas
À memória de Adolfo Casais Monteiro
Como se morre, Adolfo? Tu morreste
(toca o telefone às duas da manhã em Lourenço Marques era a Joaninha em lágrimas a dizer que o padrinho dela tinha morrido eu não queria crer e mesmo perguntei — tendo tantos compadres — quem era o padrinho dela cuja morte chegava em notícia de Lisboa a Mécia e eu ficámos silenciosos com os olhos marejados das lágrimas que só vieram no dia seguinte esperávamos mais dia menos dia tão doente estavas aquela notícia agora mais incrível por chegada inopinadamente do outro lado do mundo que não era sequer aquele em que morrias)
— e diz-me o Pimentel numa carta tão triste:
enquanto dormias a tua solidão
e estavas morto e sereno pela manhã alta.
Morreste na mesma solidão altiva e tímida
com que foras discreção e delicado ser
escondido em máscaras de sorriso amargo
e de palavras ásperas e rudes. Igual aos versos
que escreveste como raros no molhar de alma
em sangue e sentimento já essência
e só profunda vida oculta em música
puríssima de câmara em cordas tensas
a que o ranger dos arcos se somava ambíguo.
Ninguém mais nobremente ergueu em si
o monumento da morte esse viver contínuo
num só de se indicarem por oblíquos
sinais os gestos limpos da amizade
e os limpos mais ainda de um amor constante
que o teu corpo buscou em tantas mulheres
amando só algumas fielmente na tortura
de não se amar tão bem quanto o desejo.
Adolescente, amadureceste para uma velhice
a que te deste como monge laico
incréu de tudo menos desse amor perdido
que à tua volta, em livros como em música,
era um sussurro de memórias silentes
a rodear-te de vácuo a tua sala vazia.
Como se morre, Adolfo? Trinta e três
anos — uma idade perfeita — conheci-te,
soube de ti o dito e o não-dito, o que escreveste
e o que não escreveste. Por instantes,
os teus olhos cruzavam-se num viés de vesgo
que era um saber terrível de estar só no mundo
e não haver que valha a pena que se diga
sem destruir-se quanto em nossa vida é o pouco
indestrutível se guardado à força
num silêncio de exílio e de distância.
E todavia como estiveste no mundo, como
duramente bebeste toda a dor do mundo,
ou a fumaste em nuvens de cigarros que matavam
os teus pulmões possessos de asfixia.
Foste o estrangeiro e o exilado perfeito
e por todos nós que recusámos de um salto
por outras terras esta terra há séculos de outrem,
morreste em dignidade, sem queixas nem saudades
a queixa e a saudade mais pesadas
pesadas para o fundo, sem palavras
que as não há entendíveis aonde não se entende
a perfeição tranquila em desespero agudo
a que te deste num morrer sem voz.
Morreste só, como viveste. Sem conversa,
como escolheste viver. Longe de tudo,
como a vida te deu que tu viveras.
E tão presente, mesmo se esquecido,
és como o fogo ardente a requelmar quem pensa
que em Portugal de Portugal se é.
Como se morre? Nesse instante extremo,
sentiste um respirar que te alargava
e te expandia o peito mais os olhos
até os confins deste universo inteiro?
Abriste os olhos? Só em sonhos viste?
Morreste — como se morre? — E no teu rosto
qual nos teus versos poderá ser lido
até que nem pensaste nem disseste.
Mas isso tu sabias, e creio que foi pouco
oh muito pouco o que a morte foi capaz de te ensinar.
Porto, 26/8/1972