Autor de diversas críticas e comentários sobre filmes, reunidos no volume Sobre Cinema (1988), Jorge de Sena também transformou sua leitura de alguns filmes em poema, em exercício semelhante ao que já havia feito com as outras artes em Metamorfoses e Arte de Música. Apresentamos aqui os “poemas cinematográficos” de Sena:
* “Couraçado Potemkin”, de Peregrinatio ad loca infecta, Poesia III
* “À memória de Kazantzakis e a quantos fizeram o filme Zorba the greek“, de Peregrinatio ad loca infecta, Poesia III
* “Filmes Pornográficos”, de Conheço o Sal… e Outros Poemas, Poesia III
Couraçado Potemkin
Entre a esquadra que aclama
o couraçado passa.
Depois da fila interminável que se alonga
sobre o molhe recurvo na água parda,
depois do carro de criança
descendo a escadaria,
e da mulher de lunetas que abre a boca em gritos mudos,
o couraçado passa.
A caminho da eternidade. Mas
foi isso há muito tempo, no Mar Negro.
Nos cais do mundo, olhando o horizonte,
as multidões dispersas
esperam ver surgir as chaminés antigas,
aquele bojo de aço e ferro velho.
Como os vermes na carne podre que
os marinheiros não quiseram comer,
acotovelam-se sórdidas na sua miséria,
esperando o couraçado.
Uns morrem, outros vendem-se,
outros conformam-se e esquecem e outros são
assassinados, torturados, presos.
Às vezes a polícia passa entre as multidões,
e leva alguns nos carros celulares.
Mas há sempre outra gente olhando os longes,
a ver se o fumo sobe na distância e vem
trazendo até ao cais o couraçado.
Como ele tarda. Como se demora.
A multidão nem mesmo sonha já
que o couraçado passe
entre a esquadra que aclama.
Apenas, com firmeza, com paciência, aguarda
que o couraçado volte do cruzeiro,
venha atracar no cais.
Mas mesmo que ninguém o aguarde já,
o couraçado há-de chegar. Não há
remédio, fugas, rezas, esconjuros
que possam impedi-lo de atracar.
Há-de vir e virá. Tenho a certeza
como de nada mais. O couraçado
virá e passará
entre a esquadra que o aclama.
Partiu há muito tempo. Era em Odessa,
no Mar Negro. Deu a volta ao mundo.
O mundo é vasto e vário e dividido, e os mares
são largos.
Fechem os olhos,
cerrem fileiras,
o couraçado vem.
São Paulo, 23/12/1961
=> Nota do autor sobre o poema, em Poesia III, p.249: Este poema deveria ter feito parte desta colectânea Peregrinatio ad loca infecta, a que por todas as razões e mais uma pertencia. Mas houve que retirá-lo do original, por de impossível publicação naquela época. O poema foi escrito logo após a tremenda impressão que me causou ver pela primeira vez o filme de Eisenstein. Tendo em várias oportunidades visto antes alguns dos “clássicos” russos, nunca tivera ocasião de ver este. Foi em São Paulo, numa matinée, naquele mesmo dia, com Casais Monteiro que também, se me não engano, o não vira nunca. Se me permitem acrescentar, eu em 1961 tinha já dois anos de exílio no Brasil, e os tempos iam feitos para as nossas esperanças democráticas em Portugal. O poema reflecte, pois, não só aquela impressão que o filme causa como obra de arte, que é panfleto, e vice-versa (coincidência tão rara), mas também o estado de espírito naquela época.
À memória de Kazantzakis, e a quantos fizeram o filme Zorba the greek
Deixa os gregos em paz, recomendou
uma vez um poeta a outro que falava
de gregos. Mas este poeta, o que falava
de gregos, não pensava neles ou na Grécia. O outro
também não. Porque um pensava em estátuas brancas
e na beleza delas e na liberdade
de adorá-las sem folha de parra, que
nem mesmo os próprios deuses são isentos hoje
de ter de usar. E o outro apenas detestava,
nesse falar de gregos, não a troca falsa
dos deuses pelos corpos, mas o que lhe parecia
traição à nossa vida amarga, em nome de evasões
(que talvez não houvesse) para um passado
revoluto, extinto, e depilado.
Apenas Grécia nunca houve como
essa inventada nos compêndios pela nostalgia
de uma harmonia branca. Nem a Grécia
deixou de ser – como nós não – essa barbárie cínica,
essa violência racional e argua, uma áspera doçura
do mar e da montanha, das pedras e das nuvens,
e das caiadas casas com harpias negras
que sob o azul do céu persistem dentro em nós,
tão sórdidas, tão puras – as casas e as harpias
e a paisagem idem – como agrestes ilhas
sugando secas todo o vento em volta.
E que não só persistem. Porque as somos:
ou tendo-as circunstantes, ou em faces, gestos,
que vão do Atlântico ao Mar Negro, ou vendo-as
não só em sonhos, mas nesta odisseia
de quem, como de Ulisses, uma vida inteira
é qual regresso à pátria demorado
para que apenas de velhice ainda a aceitemos.
Na Grécia todavia, e mais que em Grécia Creta,
isso que somos regrediu. Distância
muito maior existe em ter ficado igual
num mundo que mudou, e em ter ficado o mesmo,
vivendo como de hoje, entre as antigas pedras
guardando em si o mugir do Minotauro
(e os gritos virginais das suas vítimas),
que, em como nós, não ter nascido ali
mas onde apenas derradeiros gregos
vieram.
Por isso, este vibrar de cordas que é uma dança de homens
saltando delicados em furioso êxtase
perante a própria essência de estar vivo
(ó Diónisos, ó Moiras, ó sinistras sombras)
nos fascina tanto. O que é profundo volta,
o que está longe volta, o que está perto é longe,
e o que nos paira n’alma é uma distância elísia.
No lapidar-se a viúva que resiste aos homens
para entregar-se àquele que hesita em possuí-la
e a quem, Centauro, Zorba dá conselhos de
viver-se implume bípede montado
na trípode do sexo que transforma em porcos
os amantes de Circe, mas em homens
aqueles que a violam; nesta prostituta que,
sentimental, ainda vaidosa, uma miséria d’Art Nouveau
trazida por impérios disputando Creta,
será na morte o puro nada feminino que as harpias despem;
e neste Zorba irresponsável, cru, que se agonia
no mar revolto da odisseia, mas
perpassa incólume entre a dor e a morte,
entre a miséria e o vício, entre a guerra e a paz,
para pousar a mão nesse ombro juvenil
de quem não é Telêmaco – há nisto,
e na rudeza com que a terra é terra,
e o mar é mar, e a praia praia, o tom
exacto de uma música divina. Os deuses,
se os houve alguma vez, eram assim.
E, quando se esqueciam contemplando
o escasso formigar da humanidade que
tinha cidades como aldeias destas, neles
(como num sexo que palpita e engrossa)
vibrava este som claro de arranhadas cordas
que o turvo som das percussões pontua.
Deixemos, sim, em paz os gregos. Mas,
nus ou vestidos, menos do que humanos, eles
divinamente são a guerra em nós. Ah não
as guerras sanguinárias, o sofrer que seja
o bem e o mal, e a dor de não ser livre.
Mas sim o viver com fúria, este gastar da vida,
este saber que a vida é coisa que se ensina,
mas não se aprende. Apenas
pode ser dançada.
Madison, Janeiro /1966
Estes que não actores se alugam para filmes
da mais brutal pornografia crua
em que não representam mas só fazem
tudo o que possa imaginar-se e a sério
com a máquina espreitando bem de perto
por ângulos recônditos os gestos,
os orifícios penetrados e
quanto os penetra até que o esperma venha,
por certo são dos que prazer mais sentem
sabendo que afinal se exibem para tantos olhos.
São máquinas de sexo. Às vezes belas,
sem dúvida atraentes muitas delas,
imagens escolhidas como sonhos de
que possa ser a máquina perfeita.
Mas na verdade sentirão prazer?
E na verdade o dão no que se mostram?
Tão máquinas apenas – sem de humano
não digo só que o toque da carícia abrupta
mas mesmo uma atenção de sábio acerto
profissional de orgasmos a filmar –
que nada resta destes actos vistos
sequer desse animal mais que espontâneo
em corpos se afirmando que não falam
mas se penetram ao acaso dados.
Nada de humano ou de animal humano
flutua nestes ou na imagem deles:
até porque são vistos como nunca vistos
os actos cometidos ou espreitados,
e mesmo o esperma do ininterrupto coito
(para quem paga estar seguro de
não ser fingido nada o que foi feito)
ejaculado ou vendo-se escorrer
do corpo mais passivo numa cena
é como imitação que nada inunda
senão o olhar tornado a mesma máquina
que tão perto o foi filmar ampliado.
Horrível é tudo isto. Mas no entanto,
mecânico e brutal, sem graça nem beleza,
roubando ao imaginar quanto é sentido
porque se amor se faz mal pode ver-se,
isto possui uma nobreza estranha
e uma franqueza nua que nenhum amor
a si mesmo confessa: e contradiz
quanto mistério exista, que outro mais profundo
assim nos revela: actos de amor
são tantos actos de amor quanto são actos
de actores ocasionais para ele feitos
que todos somos desde que ele se faça.
13/10/1972
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