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Arte romana e florentina em Metamorfoses

  • Categoria do post:Poesia

A arte da Península Itálica “inspira” três dos poemas de Metamorfoses: a delicada escultura da antiguidade romana, do séc. II, encontrada nas escavações arqueológicas de Milreu, Portugal, e duas peças magistrais do Renascimento florentino, de Piero de Cosimo (1461(?)-1521) e de Bronzino (1503-1572), ambas atualmente em Londres. Esta última — o paradigmático retrato de Eleonora di Toledo, Granduchessa di Toscana — motiva o poema dedicado ao amigo Murilo Mendes, fino cultor de muitas artes, que, depois de longamente lecionar Cultura Brasileira na Universidade de Roma, veio a falecer em Portugal. Datado de 1959, somente na carta que aqui transcrevemos, de 1963, Jorge de Sena o envia ao amigo, com estas palavras: “Porque pode ter interesse italiano […], junto lhe mando o poema da Eleonora de Toledo, em que procuro retratar o ‘maneirismo’ como época histórica, sem me afastar da figura da mulher de Cosme de Médicis, como a viu o Bronzino”.

 

 

 

Cabecinha Romana de Milreu

Esta cabeça evanescente e aguda,
tão doce no seu ar decapitado,
do Império portentoso nada tem:
nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
na sua boca as legiões não marcham,
na curva do nariz não há os povos
que foram massacrados e traídos.
É uma doçura que contempla a vida,
sabendo como, se possível, deve
ao pensamento dar certa loucura,
perdendo um pouco, e por instantes só,
a firme frieza da razão tranquila.
É uma virtude sonhadora: o escravo
que a possuía às horas da tristeza
de haver um corpo, a penetrou jamais
além de onde atingia; e quanto ao esposo,
se acaso a fecundou, não pensou nunca
em desviar sobre el’ tão longo olhar.
Viveu, morreu, entre colunas, homens,
prados e rios, sombras e colheitas,
e teatros e vindimas, como deusa.
Apenas o não era: o vasto império
que os deuses todos tornou seus, não tinha
um rosto para os deuses. E os humanos,
para que os deuses fossem, emprestavam
o próprio rosto que perdiam. Esta
cabeça evanescente resistiu:
nem deusa, nem mulher, apenas ciência
de que nada nos livra de nós mesmos.

12/1/1963

 

Céfalo e Prócris

Do deus da lira e dos ladrões, do psicopompos,
senhor do caduceu; e da do orvalho deusa,
és, Céfalo, o filho. E neto de
Zeus e de Cécrops; e Cronos é com Rea,
a mãe dos Deuses, teu avô também.
De Erecteus de Atenas, Prócris, és
uma das filhas, neta pois de Gea
que mãe de Cronos fez Urano, o céu,
o sobranceiro Céu ao Caos originário,
de que emergiu o Amor, esse Eros que talvez
fosse do psicopompos e da deusa
(das águas ascendida fecundadas
pelo castrado sexo que a seu pai
Cronos cortou) um filho, e meio-irmão
do Céfalo que amaste e que te desposou
e que, por teu ciúme, te matou.

Ciúme apenas? Não. Se transformado
pela alvorada que o raptara ele volta,
e Prócris lhe é infiel consigo mesmo;
se, ao revelar-se o esposo, ela lhe foge
para ganhar de Artémis a infalível lança
e o cão veloz qual vento, que dará
ambos a Céfalo que a não conhece,
quando de novo se encontrarem e
for ela a que não é reconhecida;
se ela se esconde suspeitosa da
brisa que o envolve e à flor da pele o beija;
se um breve ruído a denuncia e faz
que a lança em mão de Céfalo a trespasse,
enquanto o cão contempla os semi-deuses
que, como os deuses, morrem uns dos outros;
se a praia imensa é de animais pisada
que estranhos sob o céu vivem seguros;
se o esposo é quase um sátiro que chora
a ninfa morta que não fora Prócris;
se a nitidez dos traços se prolonga
na sombra luminosa em que persiste infausta
a geração dos deuses: se de enganos,
de mutações, de incestos, e de crimes,
é feita a liberdade de nascer-se humano,
«nem do céu, nem da terra, nem mortal
nem imortal, mas livre e altivo artista
que o próprio ser esculpe e que o modela
na forma preferida» — o canto e a morte,
o roubo e a dádiva, e o doce orvalho
nas folhas matutinas, como a espuma
que às praias vem qual sémen de Cronos,
cinzel e a pedra são, gesto e modelo,
esse modelo ignoto, entre o devir e as coisas
e que se perde, livre, quando Prócris morre,
e se demora, altivo, quando a mata Céfalo.

9/3/1961

 

Eleonora di Toledo, Granduchessa di Toscana

(ao Murilo Mendes)

Pomposa e digna, oficialmente séria,
ê geometria ideal de príncipes banqueiros,
sobrinhos, primos, tios de toda a Europa,
de reis, senhores de terras e armadores,
severamente equilibrados entre
o sexo, a devoção e as hipotecas.
O mundo é um imenso cais de intolerância austera,
a que aportam escravos, pimenta, a caridade
à sombra de colunas sem barbárie gótica.
Na boca firme, como no olhar duro,
ou no cabelo ferozmente preso,
ou nas imensas pérolas que se multiplicam,
ou nos bordados do vestido em que nem seios
se alteiam muito, há uma virtude fria,
uma ciência de não pecar na confissão e na alcova,
uma reserva de distante encanto
em que a Razão de Estado era um passeio altivo
por entre as árvores de um jardim areado,
com áleas racionais e relva em secção áurea.
Sem dúvida que os astros presidiram,
numa ciência de terra já redonda,
às próprias proporções que o quadro regem.
Palácios, festas, complicadas odes,
e procissões e cadafalsos e a
de um céu toscano limpidez que pousa no
pó e nas ruínas da imperial Toledo,
tudo isto se condensa em penetrante
tom de ocre vago, onde as cores se opõem
como teses tridentinas muito práticas
elaboradas com paciência para o descanso eterno
dos príncipes cristãos que se devoram sob
a paternal vigilância de uma Roma etérea,
guardada pelos suíços, por cardeais e frades.
A grã-duquesa — se o foi, não foi, de quem é filha,
de quem foi mãe, ante um retrato assim
tão pouco importa! — fez-se pintar.
Mas a pintura era outra coisa, um escudo,
um escudo de armas e um broquel tauxiado,
para morrer tranquilo, quando a angústia brota,
como um vómito de sangue, do singelo facto
de ter-se ou não ter alma, os mundos serem múltiplos,
e o Sol rodar ou não em torno à terra inteira,
iluminando as multidões, as raças, tudo,
e os príncipes e os súbditos, nessa harmonia do mundo,
cujo estridor silente ao madrugar se ouvia
ranger discretamente, às portas dos castelos.

6/6/1959