Texto ensaístico destinado ao livro Teclado Universal e outros poemas (editado pela Moraes em 1963, na sua famosa coleção “Círculo de Poesia”), trata-se de um dos raros prefácios que Jorge de Sena escreveu para poetas seus contemporâneos. Sublinhando o polifacetado caráter artístico do autor — reconhecido artista plástico em Portugal e no Brasil –, Sena aponta no mundo poético do amigo e do companheiro de empreitadas anti-salazaristas (como no jornal Portugal Democrático) um traço que nitidamente os irmana: “Palpita ele de uma raiva ansiosa de humanidade, de um desesperado amor do próximo, de um amargo querer que os outros mereçam a dignidade das formas e das palavras”.
TECLADO UNIVERSAL
Foi em 1953 que Cadernos de Poesia, em Lisboa, publicaram Teclado Universal, de Fernando Lemos; e com esse caderno suspenderam a sua publicação que, em 1951, havia reatado a iniciativa de 1940-42, quando, nesses anos sombrios da Segunda Guerra Mundial, os Cadernos tinham sido o único centro luminoso de uma comunidade de poesia resistindo à subversão trágica em que a Europa mergulhava, arrastando consigo o jardim da dita à beira-mar plantado. Não houve, entre os organizadores dos Cadernos de Poesia e aqueles cujos poemas ou ensaios publicaram, quaisquer compromissos de grupo, além da consideração e do respeito que, nesse tempo das publicações, mutuamente se tributavam. E, no caso particular de Fernando Lemos, uma das personalidades que se revelou no âmbito da agitação causada pela aparição portuguesa e «oficial» do surrealismo, em 1947, acrescentava-se a isso, além da pessoal estima e amizade que se mantiveram até hoje, o interesse e a simpatia dos organizadores dos Cadernos pelas manifestações surrealistas. Efémeras que estas foram, mas sistemáticas, quando em Portugal, apenas houvera iniciativas individuais ou esporádicas, marcaram todavia profundamente a evolução sobretudo da poesia e da pintura portuguesas. Foi desse movimento, logo repartido em sub-grupos e em pessoas, que surgiram alguns dos poetas e dos pintores que mais validamente se afirmaram na década de 50, e entre eles, simultaneamente poeta e pintor, conta-se Fernando Lemos.
O modernismo português, iniciado em 1915, tem como uma das características iniciais a estreita aproximação de escritores e de artistas plásticos, unidos para revolucionar a expressão estética portuguesa. E, se não pode dizer-se que, ao longo da sua vida, Fernando Pessoa tenha dedicado às artes plásticas especial atenção (ou a qualquer outra coisa que não a poesia e a política), a verdade é que, a seu lado, na fundação do modernismo, estavam grandes artistas plásticos como Amadeu de Souza-Cardoso e José de Almada Negreiros, duas das maiores figuras da pintura europeia da primeira metade do século XX. E, igualmente escritor excepcional e pintor da primeira plana, Almada é quem, para o modernismo, consubstancia a mútua dependência de um grafismo plástico e de uma poesia que, rebelada contra a «literatura», se empenha na plasticidade expressiva da linguagem. Foi António Pedro, personalidade que continua, nos anos 30, o mesmo espírito, ainda que transformado por uma exuberância muito original, quem serviu de elo de ligação entre aquele aspecto do modernismo de 1915 e o surrealismo de que, em 1947, foi um dos fundadores. E é neste contexto que se insere a obra escrita de Fernando Lemos.
Sendo Almada, Pedro ou Lemos escritores por direito próprio, e artistas plásticos, e constituindo, como constituem, uma linhagem na história da estética portuguesa, não há entre os escritos deles, mais afinidades que esta. E tão errado seria supor-lhes esses escritos como o violino de Ingres de outras actividades, como imaginar que tais escritos serão continuidade lógica uns dos outros. Poetas em verso e em prosa, Almada, com Nome de Guerra, e António Pedro, com Apenas uma Narrativa, escreveram dois dos mais importantes livros da literatura portuguesa, senão dos mais importantes da Europa da época, já que só talvez Cocteau conseguiu, ao nível atingido por Almada, captar assim o espírito dos anos 20, e que António Pedro, naquele seu livro, realizou o sonho novelesco do surrealismo, sempre tão fracassadamente repartido entre a memorização individualista e a retórica desenfreada. Mas de Almada a António Pedro, interpôs-se a transformação do modernismo português: enquanto Almada podia ser livremente modernista, como os seus pares Pessoa ou Sá-Carneiro, porque em face deles, não havia nada senão o provincianismo português, António Pedro tinha e teve sempre, pela sua frente, a conversão sub-reptícia do movimento modernista ao «aportuguesamento», isto é, a uma forma muito tipicamente extremo-atlântica de ser-se, ao mesmo tempo, burguês, provinciano, e mais devoto da Europa traduzida em calão, que de Portugal traduzido em Europa. E que se interpõe entre António Pedro e Fernando Lemos? Uma transição decisiva, de que poucos artistas se aperceberam em Portugal, na sua arte, conquanto julgassem realizá-la na sua vida: a profissionalização, ou melhor, a extinção dos ideais românticos do artista como ser excepcional, e cuja excepcionalidade lhe conferia, a par de uma missão superior, alvará de irresponsável. Não é que a geração de 1915, a geração de 1925, ou mesmo o surrealismo nas suas manifestações «escolares», tenham sido irresponsáveis: pelo contrário, pugnavam por uma específica responsabilidade, um comprometimento do artista com a qualidade humana da sua obra. E todos, mesmo quando supunham e ainda supõem o contrário, militavam contra uma arte que, como em grande parte o foi a romântica, dava muito maior importância ao artista do que às obras pelas quais ele se classificava como tal. O fenómeno que tentamos descrever é de outra ordem, e corresponde a mutações concretas da sociedade portuguesa.
Nesta, na primeira metade do século XX, não há ainda artistas «profissionais», o que não quer dizer que muitos não tenham vivido da arte, e que, como artesãos, não tenham adquirido uma consciência experimental e prática da sua própria expressão. Mas não é o mesmo ser-se um aristocrático diletante que consegue encomendas, ou pode pintar mesmo que as não tenha, e ser-se um profissional que é obrigado, pela profissão que escolheu, a trabalhar nela e por ela. O que terminou, na segunda metade do século XX, é a expressão artística como apanágio do «filho-família», com a chegada, à cultura ou à criação dela, de elementos oriundos de outras camadas populacionais. Se, anteriormente, alguns desses elementos chegavam a um tal nível, imediatamente se integravam, pela pressão social, numa visão da arte como serventuária da sociedade, ou, o que é o mesmo, como oposta a ela, ao «burguês», ao «filisteu». Mas, nem num nem noutro dos casos, esses elementos mantinham, na relação com o grupo, uma visão desmistificada da sua própria condição de artistas, que apenas a profissionalização estética podia definir como tais.
O modernismo europeu da primeira metade do século foi, apesar das biografias trágicas de muitos dos seus «mártires», que preferiram morrer de fome a vender-se, uma recusa desesperada àquele profissionalismo. Muito provavelmente, não poderia ter sido outra coisa, para ganhar a batalha das novas formas e do novo método de criá-las. Todavia, não menos foi, na sua luta pela liberdade do artista, uma opção entre esta liberdade posta no indivíduo criador, e a liberdade que ele teria, se não antepusesse a sua pessoa tragicamente privilegiada à técnica de que essa pessoa era capaz. O modernismo foi, como movimento, uma explosão aristocratizante que, na derrocada das aristocracias tradicionais (já misturadas das burguesias nacionalmente aristocratizadas), e na substituição delas pelas aristocracias do grande capitalismo internacional, tentou libertar a expressão artística de todas as cauções sociais, aceitando como facto social consumado a cisão que, entre arte e público se vinha processando desde os fins do século XIX. Se dessa explosão resultou a decisiva afirmação da autonomia da expressão artística, a uma escala que o próprio romantismo não conhecera (já que o individualismo romântico pressupõe muito menos a criação de formas, que a liberdade de transformá-las ao arbítrio de uma pessoa que pretende exibir-se nelas), resultou também que a arte ficava desobrigada de, diretamente e concretamente, exprimir alguma coisa. A politização que, nos anos 30, invade a arte europeia, e sobretudo a literatura, e a que não escapou o surrealismo, foi, assim, o enchimento de um vazio que a arte criara em si mesma. E é escusado invocar, a esse respeito, o mito da «terra estéril», que havia dominado as décadas anteriores. Mas, precisamente na medida em que ocupava um vácuo estético, que lhe era pré-existente, não podia a politização recriar nada. E o que sucedeu foi ela contribuir, mais do que a esterilidade temática do modernismo, para a academização formal deste, ao nível de uma banalidade atroz, em que todas as receitas serviam para salvar as pátrias e a humanidade, ao mesmo tempo em que as dissolviam num formalismo sem horizontes e sem salvação alguma. A reacção que se desenha nos anos 40 e 50 e que em Portugal, é muito visível, dirigiu-se contra este estado de coisas; e, porque combatia ou desprezava o academicismo conformista e o progressivismo académico (cujas fronteiras eram, e cada vez mais são, indefinidas), não podia deixar de profissionalizar a expressão artística, repudiando ao mesmo tempo o artesanato diletante e os últimos resquícios, aliás teimosos, da complacência romântica.
A arte e a poesia de Fernando Lemos surgem exactamente sob este signo. À pesquisa aventurosa de formas plásticas, ou à exploração infinita daquelas que para um artista podem tornar-se-lhe pessoais, Lemos preferiu o desenvolvimento, o aperfeiçoamento, o despojamento de análogas células formais, seguindo um caminho paralelo ao da produção industrial, mas humanizando-o pela gratuitidade funcional: é o profissionalismo levado àquele ponto em que se desaliena da escravatura produtora de objectos serial mente semelhantes e «úteis». E, ao gosto pela expressão ingénua, retomada à própria espontaneidade sintática, que fora o de Almada; ou ao gosto da palavra saborosa, ressumante a um prazer da vida, que não vai sem certa complacência, que fora o de António Pedro; ou ao exibicionismo malabarista em que muito surrealismo se perdeu – a isso opôs ou trouxe de novo uma severidade sarcástica, uma ferocidade anti-sentimental, em que as palavras se geram umas às outras, não como associações disponíveis na memória literária (ou como o calculado contrário disso), mas como concreções violentas, retiradas ao fluxo do pensamento pela indignação ante o espectáculo da vida, do mesmo modo que, à figuração desta, havia o pintor retirado as famílias autónomas das formas.
O mundo de Fernando Lemos é um mundo ferozmente despojado de qualquer lógica externa. Demasiado as palavras, na escrita, e as figuras, nas artes plásticas, serviram para trair, em favor da sentimentalidade, o esforço de existir-se mais plenamente e mais profundamente do que nos rostos ou nos significados. A palavra gesto, ou ideias e alusões afins, eis o que perpassa muito nos poemas aqui reunidos neste livro. Seria um simplismo ver, nessa recorrência, a denúncia de quanto são escritos por um homem que, pintor e desenhista, não pode deixar de ter o «gesto» como essencial função. Pintar ou desenhar não pressupõe mais gestos do que escrever. Mas que aquela recorrência corresponde a uma denúncia, disso não haja dúvida. Denúncia, porém, do fictício que é implicado por qualquer representação estética que prefira, à lógica interna da sua criação, a lógica externa de figurar ou significar, quando esta lógica externa não passa de uma cumplicidade entre o criador e o espectador, e de uma lisonja a este último, pela qual quem não cria tem licença de pendurar, no cabide da obra de arte, as suas inibições, as suas frustrações, as suas ilusões de que é gente à custa alheia. A insistência no gesto denuncia, ao mesmo tempo, o servilismo das formas académicas que estaticamente se oferecem como equivalentes das paisagens ordinárias de cada um, e o falso dinamismo das ideologias românticas que emprestam, à bisonhice do espectador, uma gesticulação tão imóvel como a do academismo, porque é a das atitudes grandiloquentes.
Despojado, o mundo de Fernando Lemos é desabitado também. E não porque não haja onde se habite, ou porque não haja pessoas. Os vultos, as sombras, os espectros que perpassam nele, as presenças que justificam o diálogo que muitos poemas são, eis que até, pelo contrário, não conseguem habitar o vasto espaço que é o destes poemas. Se não são pessoas, é porque, sendo este espaço o despojado reflexo de uma vida, como a de hoje, a que se opõe a dignidade profissional, não merecem a referência de quem, profissionalizando-se, se despiu de todas as complacências amáveis – e a menor de todas as amabilidades não será a de reconhecermos a existência de quem finge que existe.
E, por isso, tal como a sua pintura é sem figuras, a poesia de Fernando Lemos é destituída de música. Não de ritmo: de música. É um silêncio ritmado por percussões repetitivas que se desenvolvem, ampliam, retornam, associam e dissociam, sem nunca se permitirem construções melódicas. Como as figuras e os significados, a melodia perdeu, no nosso mundo, o respeito que lhe seria devido. E dela subsiste apenas o esquema rítmico, marcado pelas percussões cujos timbres não cantam.
Despojado, desabitado, sem melodia, o mundo destes poemas não é, todavia, desumano. Pelo contrário. Palpita ele de uma raiva ansiosa de humanidade, de um desesperado amor do próximo, de um amargo querer que os outros mereçam a dignidade das formas e das palavras. Simplesmente o poeta (e o artista plástico que ele é) não abdica da exigência prévia em que a sua consciência profissional assenta: a de não ceder aos outros, para que continuem fingindo, nenhuma parcela dessa humanidade que lhes destina. Porque, ao contrário do que habitualmente se pensa, a dignidade da arte não está em emprestar aos outros a humanidade que lhes falta, mas em exigir deles a humanidade que lhes cabe serem e viverem. É assim que Fernando Lemos, transcendendo as fronteiras pela sua arte plástica, se liberta do pequeno círculo verbal em que a maioria dos poetas portugueses, em Portugal, se empresta mutuamente, e a quem os acotovela na rua, uma ilusão de humanidade. E é assim que, em Teclado Universal e outros poemas, continua a ser tão português, da única maneira autêntica que tem havido de sê-lo: a raiva de pertencer-se a uma língua que tem servido para tudo, menos para libertar quem se serve dela.
Araraquara, São Paulo, Brasil, Agosto de 1962.
In: Estudos de Literatura Portuguesa I, Lisboa, Ed. 70, 2001 p. 269-274