Hispanismos – arquipélago de glórias e vaidades no mar-oceano da ignorância universal

Ao ser lido em Toronto, agosto de 1977, este texto “provocou algum escândalo, sobretudo entre os hispanistas não espanhóis, alguns dos quais saíram mesmo da sala. A reacção dos espanhóis, foi, contudo imensamente positiva e apoiante mesmo em certos casos.” Escrito originalmente em castelhano (assim figura nas Actas do Congresso, editadas em 1980), aqui o transcrevemos em português, supondo ser Mécia de Sena a tradutora.

 

 

Quando recebi da Comissão Directiva e dos organizadores deste Congresso, o convite para falar numa das sessões plenárias desta reunião internacional dos mais importantes Hispanistas, senti-me ao mesmo tempo comovido e eufórico, assustado e desconfiado. O caso é que não sou um dos patriarcas internacionais na política do hispanismo e outros campos afins a triunfos académicos; e também não sou um daqueles escritores a quem os hispanistas – no sentido mais restrito e usual da palavra – se supõe que leiam ainda que seja geralmente parte do seu Credo de Niceia não olhar sequer para uma página escrita em português. E a minha obra crítica, ainda que subentenda um estudo mais ou menos sério de escritores em espanhol, raras vezes foi lida em público ou impressa nesta língua castelhana que tão querida me é; e deste modo muito naturalmente escapou à atenção de gente tão ensimesmada como os espanhóis e os hispano-americanos, para não falar dos hispanistas dos outros países que, como todos os conversos entusiastas, têm de ser mais papistas do que o papa. Por tudo isto, ao aceitar tal honra me pus a meditar: dado que nestes tempos as honras se costumam outorgar a pessoas sem muito mérito, os independentes solitários como eu não podem recusar uma honra, a não ser que recusar seja ainda maior honra. E este não era por certo o caso. Que milagre então se tinha produzido? Tinham-me descoberto como o escritor português que recentemente recebeu o mesmo prémio internacional de Etna-Taormina que receberam também Guillén e Alberti, sem mencionar Anna Akhmatova ou Ungaretti? Não, porque o convite me chegara antes de o prémio me ser concedido. Tinham descoberto, após a revolução portuguesa, que Portugal existe realmente, ao pé da Espanha, tal como ainda se não descobriu que o Brasil existe junto da América Espanhola, e que em superfície e população é metade de toda a América do Sul? Talvez fosse. E tem havido uma transformação recente nas filas do hispanismo, lusitanismo, brasilianismo, depois da revolução portuguesa e da transição espanhola para a democracia, com a sua inacreditável ausência de derramamento de sangue (quando o sangue e o vertê-lo em borbotões faz parte dos mitos hispânicos), e com a sua não menor percentagem de votantes (quando nós, os povos de fala espanhola ou portuguesa se supõe que não merecemos a democracia que diga-se de passagem não é muito melhor noutras partes, e sobretudo em países ilustres onde pelo menos metade dos votantes se não incomodam a fazer ouvir a sua voz no concerto e desconcerto político da sua pátria); esta transformação foi a descoberta do nosso tradicional espírito de liberdade, e o rechaço do passado imediato, ante cujos governos tantos se inclinaram de tão bom grado e por tanto tempo.

Não me esqueço, é claro, que muitos, em muitos países, intervieram para ajudar os peninsulares e os hispano-americanos que se negavam a aceitar as ditaduras que constituem uma parte tão grande do chamado Mundo Livre, e foi isto nos últimos quarenta anos, ainda antes que o sintagma fosse usado para fins de Guerra Fria. E também me não esqueço que alguns de vós e muitos outros que não sabem uma palavra da língua hispânica nem das suas literaturas, trabalharam com afinco para promover gente que, mesmo quando os consideramos grandes escritores, sejam-no ou não, traem o princípio fundamental de qualquer humanismo desde os começos da nossa civilização; resistir, em nome da liberdade humana, ante qualquer intento dos ditadores, de ganhar prestígio explorando as sensibilidades humanas de homens velhos e cegos.

Espero que todos vós me perdoem a crueza com que expresso os meus sentimentos. Mas quando me convidaram a falar aqui, por certo se sabia que sempre falo muito claramente sobre o que considero essencial para a nossa dignidade de escritores e/ou investigadores.

Voltando ao meu discorrer quanto a aceitar que falaria aqui: talvez o milagre estivesse em que a A. I. H. desejava que todos os povos da velha Hispania Romana se reunissem e falassem as nossas próprias línguas para alegria de todos. Era por certo o caso; mas logo me lembrei, no entanto, que há uns anos, em um dos nossos congressos premeditadamente tinha eu lido uma comunicação em português, e houve protestos dos meus ouvintes amáveis e atentos que me pediram a explicação em espanhol do que tinha dito, pedido que satisfiz de bom grado. Sem dúvida que é já tempo de os hispanistas começarem a aprender as outras línguas nacionais que correspondem ao seu próprio campo de estudo, ou pelo menos que lutem contra o bloqueio psicológico de inveterado orgulho de outros tempos, que os ensurdece sempre que essas línguas se falam diante deles. Além do mais, o português, o catalão, ou o galego, não são tão difíceis para gente que costuma conhecer já o francês ou o italiano, e até o romeno. E, com o devido respeito para o País Basco, não estou pedindo aos hispanistas, confinados às suas línguas latinas, que estudem o basco. Permitam-me apontar alguns exemplos para o que estou dizendo. Todos leram e estudaram e explicaram as obras espanholas de Gil Vicente aos estudantes, e muitos hispanistas escreveram coisas excelentes sobre ele: mas geralmente não se diz nem se preocupam por assinalar que a maior parte das suas obras-primas foram escritas em português, e que deveriam ser também lidas se se quer realmente entendê-lo. Outros exemplos da própria Espanha: em todo o mundo se estuda Rosalía de Castro, e a maioria de vós estará de acordo que com ela e Bécquer a poesia espanhola sai da mediocridade romântica e entra nos refinamentos da poesia moderna. Contudo, os mais belos poemas de Rosalía, os mais íntimos e encantadores são os que se não dão para os estudantes lerem uma vez que foram escritos em galego; quando muito oferece-se uma tradução castelhana. Muito recentemente, em Madrid, me comovi até às lágrimas com uma magnífica execução de La Atlántida de Falia, obra que é em si uma lição de hispanismo autêntico por um compositor que, sendo de Cadiz, foi o mais prístino tipo de castelhano, com uma figura que EI Greco teria incluído na galeria de apóstolos, ou que poderia estar presente ao enterro do conde de Orgaz, ou – se vamos a uma criação artística mais literária – servir de modelo para o Maître de Santiago, de Montherlant. Sim, ouvia eu em Madrid essa gloriosa música (cuja absoluta autenticidade é tão duvidosa como a do Requiem de Mozart, uma vez que Falia teve no seu devotado Süssemayer em Ernest Hallfter), ouvia eu os nobres versos de grande épica de Verdaguer, no catalão original. O teatro estava cheio, profundamente comovido, e houve no fim os mais entusiastas aplausos. E contudo, quantos fora da Catalunha leram Verdaguer ou qualquer outro escritor dos muitos que a Catalunha produziu durante séculos? Se requer apenas um pequeno esforço que se não pode exigir do público em geral das outras línguas irmãs, os hispanistas com um mínimo conhecimentos de latim e de alguma outra língua românica poderiam ser perfeitamente capazes de o fazer, se apenas o quisessem. Afinal, supõe-se que qualquer um tenha essa mínima preparação, não é verdade? Pensando em todas estas coisas, cheguei à conclusão que, para já, e enquanto os mais diligentes de entre vós se disponham a comprar as gramáticas dessas línguas esquecidas, a minha melhor decisão seria falar em espanhol. E é o que estou fazendo.

Permitam-me recordar-lhes que, ao fazê-lo, ao mesmo tempo que mergulho nas delícias da língua e da cultura espanhola, nem por isso renuncio ao meu orgulho português. Dão-lhe força razões históricas muito fortes e antigas. Desde meados do séc. XV, começando com aquele príncipe português, tão fascinante e romanesco, D. Pedro, condestável de Portugal, que mal chegou a reinar em Barcelona onde, todavia, deixou tantos sinais da sua personalidade como governante e protector das artes, e até metade do séc. XVII, muitos escritores portugueses eram bilingues: durante os sessenta anos (entre 1580 e 1640) do Reino Unido conseguido por Felipe II, muitos deles foram parte integral da literatura e da cultura de Espanha, para não falar dos políticos e cortesãos que, antes disso, sendo portugueses, governavam a Espanha por detrás do rei, como é o caso de Rui Gomes da Silva, duque da Pastrana e príncipe de Eboli, ou de Cristóvão de Moura, marquês de Castelo Rodrigo, para não falar das Isabeis Freires de Andrade que governaram os corações dos Garcilasos. Há no entanto algo que desde meados do séc. XV até ao fim do séc. XVI vai de par com o bilinguismo: o uso simultâneo da língua nacional e da língua dos vizinhos não significava de maneira alguma uma falta de consciência nem um enfraquecimento da identidade portuguesa. Pelo contrário: coincidia exactamente, na história e na literatura de Portugal, com o mais agudo sentido de uma missão imperial portuguesa, e com um ingente orgulho pelos descobrimentos e conquistas iniciadas majestosamente com a conquista de Ceuta, em 1415. Por este tempo os reis portugueses tinham recomeçado pouco a pouco a tradicional política dos seus predecessores: reunir Flandres, Borgonha, os Habsburgos e os reinos da Península Ibérica numa ambiciosa maquinação para transformar a Europa numa propriedade familiar de que a Inglaterra e a França ficariam excluídas, se não acediam a ser governadas também por essa vasta família. E recordem, por favor: o retrato de Felipe II está devidamente dependurado nas Houses of Parliament, em Londres, alinhado entre os outros reis de Inglaterra, e a sua filha Isabel Clara Eugénia, aquela a quem mais queria, foi eleita rainha de França em Paris. Mais de uma vez a família esteve quase a conseguir os seus fins. E os portugueses têm que o reconhecer: quando esse mesmo Felipe foi para Portugal para dali reinar durante uns anos e logo voltar a Espanha, deixando estabelecido uma espécie de governo autónomo, não tinha entre os príncipes da época ninguém que fosse tão português como ele, e dos quatro costados (convergiam nele pelo menos oito ramos que vinham directamente daquele conquistador de Ceuta, João I: a política dos reis portugueses ao tentar conquistar para si mesmos as coroas peninsulares e outras tinha criado este epígono de puro sangue, em Espanha). Porque, na realidade, os reis portugueses, os seus cortesãos e os seus conselheiros, se era verdade que cuidavam de manter a sua distância com Leão e depois com Castela, se não opunham, contudo, à «unidad», sempre que as coroas coroassem as suas próprias testas. E pensemos por um momento o que se teria passado com o mundo se Felipe II não tivesse cedido às pressões da facção espanhola e tivesse sucumbido às da chamada facção portuguesa tanto em Espanha como em Portugal, e tivesse ficado em Lisboa, fazendo-a capital do Império Hispano-Português. Talvez a maior parte de todo o mundo falasse hoje espanhol e o Império Britânico nunca tivesse chegado a existir. Mais ainda: a «lenda negra» que persegue sem tréguas a Espanha e Portugal nunca teria chegado a desenvolver-se e a propagar a maior parte das suas mentiras. Ou, pelo menos, nunca teria conseguido a última hipocrisia de alguns países que acusam os ibéricos de ter feito que os outros, então e depois e depois fizeram em medida igualou maior. Que me desculpem, mas, na parte norte das Américas não falemos mais, como era costume, dos horrores que os portugueses e os espanhóis fizeram aos índios, uma vez que ainda há por aqui alguns sobreviventes desses povos e há historiadores honestos que contam o que se passou e o como se passou.

Durante séculos, para nos desacreditarem, se nos atirou à cara com a «lenda negra» e no que se refere a Portugal neste mesmo instante ela pesa sobre as terríveis tragédias de Angola e Moçambique. Se me permitem dizê-lo, desde a independência das colónias espanholas e portuguesas da América, cujas culturas estimo e admiro (devo dizer que me tornei cidadão brasileiro quando vivia no Brasil), as classes governantes desses novos países aliaram-se com os interesses estrangeiros na manutenção dessa lenda, para dissimular que eles, aparentando libertar o seu próprio povo, o entregaram a esses interesses a fim de preservar as estruturas coloniais.

É lamentável ouvir ainda hoje gente culta e até universitários supostamente liberais e bastante de esquerda aderirem ingenuamente (para dizer o menos) a essas histórias. Lembremos o que ocorreu uma vez no México: o povo levantou-se em armas, um dia, em busca da liberdade e independência, as classes dirigentes locais chamaram as tropas espanholas para sufocar em sangue a rebelião e mais tarde fizeram elas mesmas a revolução, e deram independência ao povo, mas guardaram a liberdade para si mesmas. No Brasil, há trinta e sete anos o governador de um dos Estados da federação, e uma raposa velha em política, às vésperas da revolução que levou Getúlio Vargas ao poder (todos sabemos agora que Getúlio Vargas era o que podemos chamar, em muitos aspectos, um déspota esclarecido que fez o Brasil entrar nos tempos modernos), chamou ao palácio os poderosos locais, fechou cuidadosamente a porta do seu escritório e propôs-lhes muito simplesmente: Meus senhores, a revolução é um facto, vai vir infalivelmente. Façamos a revolução antes que o povo a faça. Estes dois factos – um do mundo de fala espanhola, quando tantas nações novas apareciam neste continente (se isto é um continente e não dois ou três, como alguns prefeririam, com um grande oceano em lugar do «Rio Grande River» e o canal de Panamá como fosse um Mar Mediterrâneo) e o outro do mundo de fala portuguesa no mesmo continente – ilustram a realidade de outra versão da lenda negra, muito menos lendária. Não vou insistir na lenda. Mas tive de mencioná-la como uma das causas principais do que acontece com as culturas que a partir de Espanha e de Portugal se difundiram por todo o mundo, não apenas em novos países como também em milhões de grupos de imigrantes, ou em colónias que mudaram de domínio, ou também descendentes dos judeus expulsos da Península Ibérica num infeliz momento de cegueira nacional cujo preço estamos ainda a pagar, uma vez que se converteu numa parte da lenda negra. Com efeito, os outros países puseram Portugal e Espanha de quarentena como se fossem um perigo de epidemia. Claro está que muitas obras de autores ibéricos saíram da península para serem saqueadas, imitadas, adaptadas e transformadas, embora nem sempre em obras-primas de outros países, mantendo um agradável sabor espanhol. Entretanto, Espanha e Portugal cerraram as suas portas para evitar as epidemias que assolavam toda a Europa (e por toda a parte ardiam fogueiras semelhantes às ibéricas). Mais tarde, sob a influência dos seus esclarecidos, dos seus «estrangeirados» e dos patriotas liberais cheios de boas intenções embora igualmente feridos pelo que o resto do mundo dizia sobre os seus países, começaram a sentir uma espécie de orgulho defensivo, um complexo de inferioridade que em lugar de os levar a revelar ou indicar as raízes dos nossos males para dar combate ao inimigo no seu próprio campo, chegaria à conclusão lógica na famosa e ridícula frase do ditador português Salazar, quando, confrontado com a opinião mundial sobre a sua obstinação em não conceder a tempo a independência às colónias africanas, declarou que Portugal resistiria «orgulhosamente só». Claro que ele sabia que isto era em parte um enfeite retórico, uma vez que, se o estivesse, jamais teria conseguido manter-se no poder durante tanto tempo. Sejamos imparciais e honestos em reconhecer que, pelo menos em parte, a sua solidão era real, uma vez que o que estava em jogo não era a dominação portuguesa que de qualquer maneira devia ser eliminada a qualquer preço (tal como o domínio ibérico foi eliminado na América Latina com o apoio inglês dando uma ajuda generosa em troca de uma libra de carne) uma vez que o que estava em jogo era o futuro de África, ou da sua metade meridional, cujo domínio era essencial ou considerado tal pelas grandes potências mundiais. Seja quais forem as nossas simpatias políticas, isto não deixa de ser a verdade. Muitos daqueles liberais dos séc. XVIII e XIX, e começos de XX são na realidade figuras comovedoramente trágicas: ainda que tenham chamado a atenção para muitos males e mais de uma vez tivessem tentado suprimi-los, na verdade não deixavam de resignar-se ante as marcas que as outras culturas se compraziam em fazer nas nossas caras. Se as obras continuavam a sair da península, a Cortina de Ferro continuava, no entanto, a cercar a península e as nações irmãs das Américas. Uma consequência que não vamos aqui analisar e que continua a ser uma obsessão ibérica e latino-americana, é a chamada meditação sobre o ser espanhol, ou brasileiro, ou mexicano ou qualquer outro, quando o problema concreto não é a meditação sobre o ser, mas o nascer para ser. No entretanto, enquanto contemplamos o umbigo e os labirintos da saudade, aqueles que sabem que dentro da Cortina há uma mina de ouro e não a registaram publicamente, não andam por toda a parte anunciando que a têm. E isto foi e é o nosso caso. Em segundo lugar, todos estes países são Latinos, e, como todo o mundo sabe, Latinos, Mediterrâneos, meridionais, se supõe que são povos inferiores, pior ainda que mesclados com índios e negros – excepção, é claro, para gregos e, romanos clássicos, sobretudo se foram estudados por algum famoso sábio alemão. A Itália pode ser uma excepção, uma vez que o Renascimento lá aconteceu e assim se considera. Ortega y Gasset, que não era mau pensador, pensou uma vez, e escreveu-o, que o Renascimento não existira nunca em lugar algum, Mas isto é, é claro, como se diz, um exagero espanhol, embora a maioria dos especialistas contemporâneos, se não dão razão a Ortega, já não sabem muito bem onde colocar o Renascimento. De qualquer modo, a Itália não está mal, tem uma parte bastante nórdica. E a França também não está mal. Se esquecermos a parte meridional, que não temos necessidade de recordar, a não ser que sejamos medievalistas dos que ainda lêem os pensamentos, a França não é um país mediterrâneo. E, apesar de ter lançado um tal desatino como a chamada Revolução Francesa – ocorrência de modo algum dignamente nórdica – a França é a França, como Paris é Paris, A França, ou pelo menos a parte norte, é na verdade um país germânico disfarçado como fica testemunhado por Carlos Magno e família, todos eles cem por cento frankish. E sabe- se que mais de uma vez a Alemanha e a Áustria sucumbiram ao encanto espanhol. E diz-se que os Habsburgos austríacos conservaram até à sua queda, em 1918, o antigo protocolo espanhol, coisa que os primos, Bourbons de Espanha, não faziam com tanta rigidez. Mas, como os factos comprovam, estes pecados pagam-se tarde ou cedo com a deposição.

Pode parecer abrupto tudo o que digo a tão distinta reunião de hispanistas de todo o mundo, muitos deles necessariamente cidadãos dos países que directa ou indirectamente mortifiquei com algumas ironias. Mas penso que todos me compreenderam. Se sois, no sentido amplo ou estrito, fervorosos hispanistas – e é meu dever de colega supor que todos somos – todos vós sabeis, tanto ou melhor que nós, os iberos e ibero-americanos, quão verdade é o que eu disse.

Além disso, a Cortina de que falei também existe para quem se dedique a estudar-nos e essa parte da história vos toca. Todos, ensinando e publicando, sabem muito bem que, com excepção de alguns de nós, hispanistas que saltaram a Cortina de Ferro para nossa maior glória e prestígio, ou dos que associações internacionais colocam em posições importantes, muitas vezes para dissimular que, na verdade, o hispanismo lhes não interessa, o facto é que, fora do nosso mundo, não temos audiência quase nenhuma. Consideremos os exemplos complementares de um dos patriarcas da bibliografia crítica internacional, o eminente René Wellek, ou sejam os seus ensaios sobre The Main Trends of Twentieth Century Criticism (incluído na sua colectânea de Concepts, do mesmo) e A Map of Contemporary Criticism in Europe (que pertence à sua colectânea posterior, Discriminatians): os dois trabalhos juntos dão-nos, de passagem, um par de nomes hispânicos. Tenhamos esperança que no último tomo da sua História da Crítica Moderna, e não apenas em tradução espanhola, Wellek seja mais generoso com estes pobres ocidentais que somos.

Além disso, por todo o lado onde as nossas línguas são estrangeiras, corre a voz de que se uma pessoa é medíocre vai estudar espanhol e que, se não passa em espanhol, se vai para o português. Todos sabemos que os factos não correspondem a estes rumores que talvez deveriam aplicar-se um pouco mais às outras áreas de estudo porque, ao acusarem-nos não reconhecem a sua mesma ignorância e estreiteza de pensamento. Ainda há pouco, ao informar uma universidade sobre um candidato que estavam a considerar, me pediram que explicasse quem eram esses criaturos chamados Dámaso Alonso, Anderson Imbert, Raimundo Lida que o recomendavam, e que autoridade tinham para o fazer. Limitei-me na minha indignação a remeter os perguntadores às enciclopédias e dicionários onde esses nomes poderiam ser encontrados com a honra e dignidade que lhes era devida. Também não há muito tempo, numa outra ocasião, estava eu como membro de um comité para a revisão de um programa de Estudos Renascentistas. O grupo de sábios ali reunidos gozavam na sua maioria de verdadeiro prestígio e representavam várias áreas relacionadas de uma ou de outra maneira com tais estudos. Se discutia quais deveriam ser os requisitos básicos exigidos aos estudantes do programa. Assinalei os pontos fundamentais: primeiro, um curso que estudasse a aparição da ideia de Renascimento e as alterações que esta ideia sofreu; segundo, outro curso sobre o impacto dos descobrimentos, a colonização do Novo Mundo e a evolução das ciências e da filosofia, assim como das condições sociais, durante os séc. XIV e XV – cursos que considero essenciais para compreender qualquer Renascimento no caso de que tenha existido, e além disso num ambiente onde quase ninguém conhece a história da Europa. Encontrei-me confrontado com uma oposição inflexível: não, absolutamente não; o único requisito tinha de ser o estudo de Florença no séc. XV. Não tenho nada contra Florença, uma das cidades que mais amo no mundo; e menos ainda tenho contra os seus renascentistas, uma vez que considero como os meus mais queridos amigos pessoais Lourenço de Medieis, II Poliziano, Marsilio Ficino, Pico della Mirandola et alia, para não mencionar os artistas. Foi lamentável ver precisamente na América pessoas ignorantes do que não é na Europa mas na América descoberta e colonizada onde vivem e deveriam viver intelectualmente; e, o que ainda é pior, ver que tão distintos investigadores não tinham ainda superado a concepção, há muito caduca, de Burckhardt. Quanto aos descobrimentos e conquistas, era evidente que a oposição se dirigia contra a venenosa tradição ibérica que em mim viam. Mesmo estando provado que é falso, o Vinland Man continua a evitar a Norte-América à vergonha de ter sido descoberta por um italiano ao serviço de Espanha. Repare-se que um recente historiador muito respeitado e informado se preocupou em ressalvar que Colombo não descobriu a América do Norte, mas só a América Central, o que, é claro, é muito diferente. E este historiador, nos seus escritos, não é anti-espanhol ou anti-português de profissão, como muitos outros são para bem ganharem a vida.

Tudo isto passa por duas razões: uma larga ignorância em muitos casos voluntária e premeditada, sobre tudo o que seja hispânico (com excepção de modas passageiras como os êxitos de circulação limitada dos novos romancistas hispano-americanos, embora alguns avançados na idade, que dificilmente chegam ao público em geral) e a outra causa é que a maioria dos hispanistas, talvez por orgulho hispânico, ou por uma espécie de humildade provinciana, fazem por passar desapercebidos no mundo de verdade que os rodeia. E esta última causa vai um pouco mais fundo: muitos dos hispanistas, ensimesmados no seu próprio campo, ignoram os escândalos e mentiras que circulam nesse mundo que nos é alheio. Alguns exemplos de pecado de omissão, cometidos por eruditos e especialistas aos quais deveríamos zurzir pela sua negligente ou voluntária ignorância. Note-se: a ignorância ou a falta de curiosidade intelectual são sempre voluntárias, e o maior pecado da vida de um investigador – é quase como pecar contra o Espírito Santo, pecado que nos leva sem remissão ao inferno.

Comecemos com o mais público e publicitado dos escândalos. Todos sabemos que existe na Grã-Bretanha um monumento nacional chamado Kenneth Clark, que deve dizer-se é realmente um ilustre crítico de arte. Este velhinho simpático apareceu na televisão de todo o mundo, e depois em forma de livro, explicando aos leigos o desenvolvimento universal da civilização. Se bem me recordo não faltava nada, nem sequer os esquimós. No entanto, os ibéricos e os ibero-americanos não apareciam, como se jamais tivessem contribuído nem sequer com um livrito, já que não com as suas armadas, para o progresso da civilização. E, que diabo, EI Greco nem sequer era espanhol, como o seu apelido o indica. É verdade que, já passadas as nossas glórias mundanais, fomos – os hispanos – bastante ineptos em começar e desenvolver a Revolução Industrial. Mas ninguém se pergunta se as potências desse tempo nos permitiram que o fizéssemos, uma vez que nos queriam como consumidores e nada mais. Pelo menos poderíamos responder que, ao permanecer, digamos, feudais, não estávamos a sujar as nossas mãos com o sangue e as vidas de milhares de trabalhadores, ultraje para todas as almas sensíveis na Inglaterra, França e Alemanha. E assim perdemos a nossa oportunidade de ter um Marx e um Dickens. Não se pode ter tudo. E além disso Marx e Dickens converteram-se em propriedade pública tal como se passa com todos os clássicos (se não são tão idiotas que se deixem nascer de fala espanhola ou portuguesa – como disse um grande escritor, Spinosa salvou-se a tempo, quando os pais foram expulsos de Portugal antes de o conceberem).

Passemos a outro nome respeitável: seguramente que descobriram os excelentes e importantes livros de uma grande erudita inglesa: refiro-me a Frances A. Yates. Alguns dos seus livros são indispensáveis para o estudo de certos aspectos-chave da cultura ocidental. Viram por acaso o seu Astrae: The Imperial Theme in the Sixteenth Century, que saiu há alguns anos? É incrível: depois de umas vinte páginas dedicadas a «Carlos V e a ideia do Império», as outras densas duzentas páginas são dedicadas ao estudo, minucioso, da Tudor Imperia l Reform e da French Monarchy no século XVI.

Parece piada, mas é tremendamente sério: nem uma menção, apesar do subtítulo mesmo quando o título já seria suspeitoso, nem uma menção a Espanha ou Portugal os países que nessa época tinham repartido o mundo entre si e que estavam aca loradamente ocupados em discutir como ter ou não ter um império. Nem sequer, e nem mesmo em pé de página, se menciona Camões, quando ele escreveu para a Península o poema épico imperial (incluindo nele as suas mais sérias dúvidas sobre tal ideia).

De um famoso crítico de arte e uma justamente respeitada historiadora da cultura passemos a outro exemplo apanhado ao acaso, um historiador que é ao mesmo tempo filólogo no bom e velho sentido da palavra. O Dr. Bernard S. Bachrach publicou há uns quatro anos A History of the Alans in the West, from Their First Appearance in the Sources of Classical Antiquity through the Early Middle Ages: livro muito erudito, com copiosa informação, embora não muito grande, pois que os dados existentes não são muitos. É apesar disso um livro muito enganador para o estudioso de história: ficará sem saber totalmente que os Alanos andaram pela velha Hispânia. E quando no livro se chega aos nomes de lugares de possível origem alana em Espanha e Portugal só temos três casos tirados de uma vulgar enciclopédia espanhola. Esses lugares cheios de sorte que nos representam nas aventuras dos Alanos ao longo de tão longo título são um cerca de Badajoz, outro cerca de Sevilha e o outro por Huesca. Mas podia ser pior se o historiador mencionado, que não se preocupou em procurar bibliografia ibérica sobre o tema não tivesse deitado uma vista de olhos a esse dicionário na secção de obras de referência na biblioteca da universidade. Bem podia ter feito umas perguntas, ao voltar da esquina, no Departamento de Espanhol e Português. Mas, claro está que tal ideia jamais lhe passaria pela cabeça, e deverá ter sido assim que as coisas se passaram, pois não posso acreditar que algum hispanista vizinho não soubesse nada de Alanos na velha Hispânia.

Não é necessário continuar com esta patética lista que seria interminável, acrescentando montanhas de livros sobre qualquer período ou aspecto da actividade humana, para confirmar que todos ignoram completamente, seja qual for o ponto de vista, as nossas línguas e culturas, como se todas elas juntas não fossem uma das maiores partes do mundo actual, mesmo quando queiram ignorar o papel histórico no grande teatro do mundo. Aqueles que se interessam pela literatura comparada como eu, não podem deixar de mencionar os ditos desdenhosos de outros que vivem metidos, como todos sabemos, no que seja capela menor mas mais internacional do que a nostra, e muito rendoso para alguns que em geral nos excluem e nos confinam ao nártex dos catecúmenos. Na América, a Literatura Comparada é uma coisa em que se comparam obras inglesas, francesas e alemãs, com grande profusão, se possível, de bibliografia russa e checa, que ninguém pode ler. Agora como costuma dizer um crítico brasileiro meu amigo, convém acrescentar uns pós do que se chama bulgarités todorovianas. Também se pode pôr um pouco de holandês ou finlandês na pintura. Mas Espanhol e Português, para quê e por quê? E isto, há que dizê-lo, é uma vez mais culpa nossa. Porque os hispanistas se fecham nas suas conchas, ou, se a sua língua materna é uma das nossas, declaram que não podem ensinar em outra. E se o não fazeis, quem o fará? Por certo que, alguns que são especialistas em ensinar cursos em tradução, usando livros cujas origens culturais e literárias lhes são totalmente alheias, embora tal lhes não importe nada. E mesmo assim, quantos dos nossos autores recebem a distinção de ser presa de tais corvos universitários? Sabemos bem que apenas um punhado de nomes mereceram alguma vez tão suspeitosa honraria. E o mais curioso é que, no fim de contas, devemos ficar muito agradecidos. Se o pobre Cervantes e o rico Borges passaram a porta estreita já é melhor que nada.

Pois bem, enfrentemos o facto que, afinal, nenhum de nós ignora: como povo e como investigadores de um complexo peculiar de culturas ou de um dos seus aspectos linguísticos e literários, rodeia-nos um oceano de malevolência ou de cândida ignorância. Muito simplesmente estamos excluídos. Esta é uma situação contra a qual devemos lutar, a menos que – como demasiado frequentemente acontece – considereis, da maneira o mais a-hispânica, que ser hispanista significa apenas ensinar espanhol e escrever sobre obras escritas em espanhol (ou em sentido mais amplo, em português, catalão, etc.) e depois regressar a casa e regar o jardim.

Ninguém é realmente da nossa comunidade se pelo menos uma vez na vida não é D. Quixote, saindo a dar batalhas perdidas para desfazer os erros deste mundo, entre os mais irritantes dos quais se conta a arrogância de eruditos míopes que fingem ignorar-nos ou realmente nos ignoram, porque séculos de preconceitos malévolos os impediram de nos ver ou de entender que a história do mundo, para bem ou para mal, não se pode escrever sem a nossa presença nela, gostem ou não ou mesmo a nós nos goste ou não. E não pensem que podem buscar refúgio na ideia de ser Sancho Pança. Este pobre campónio, cheio de sabedoria de séculos, é ainda mais perigoso do que o amo. Porque, à maneira dialéctica tão peculiar da segunda metade do séc. XVI e das duas primeiras décadas do séc. XVII (e estou a evitar mencionar o Maneirismo, para não cair numa discussão ociosa), Sancho existe juntamente com D. Quixote, e mais de uma vez, sem estar louco mostra uma doentia (ou saudável) atracção pelas ideias e pela conduta do seu amo. Exactamente como Cervantes, com o pé no estribo, já escritas todas as suas obras, podia enviar a sua despedida do mundo a um patrono, despedida que era um romance tão estranho como é Persiles, perfeita contradição de como, na aparência, ele tinha lutado por uma compreensão realista do mundo. E de facto tinha lutado: mas Cervantes se transfigurava em D. Quixote para morrer, recusando o Alonso Quijano que D. Quixote, ao morrer, volta a ser. Nós, os hispânicos, sempre temos querido possuir este mundo e o outro; e esta é uma das mais simples explicações para a descoberta do Novo Mundo, em busca do Paraíso terrestre. Quem não entende estas contradições com as quais somos o mais acabado exemplo de surrealismo na natureza humana, não entende nadinha das nossas culturas.

Por esta altura tereis já notado o plural que quase constantemente tenho usado; e assim tinha que ser: sou um escritor português e um cidadão brasileiro e sempre muito contra a corrente dos meus tempos e lugares me interessei por Espanha e pela Hispano-América. Sei, como muitos de vós, que não se pode entender a Hispano-América ignorando a presença do Brasil, e que, do mesmo modo, é absolutamente impossível compreender a história de Espanha e de Portugal com a ignorância mútua com que têm sido escritas. É igualmente óbvio que não se pode entender o Brasil sem Portugal, nem a Hispano-América sem a Espanha que a modelou; e há que acrescentar que o contrário é igualmente verdade. Um dos exemplos mais dramáticos dos espelhismos a que se renderam muitos espíritos superiores é a ideia de que por baixo da pele da Latino-América, se encontra o bon sauvage de recordação esclarecida, e não nu como o viram Colombo e Cabral, mas vestido com o ouro magnífico dos Incas e dos Astecas, que o tinham como escravo. Não. O que se encontra é algum «conquistador» voraz ou algum frade com cheiro de santidade, que, à maneira ibérica, se tinha esquecido dos votos de castidade. Por outro lado, em Espanha e Portugal, até muito recentemente, era costume rirem-se daqueles povos do ultramar, mesmo quando ocorria e ocorre hoje que alguns escritores brasileiros são mais lidos em Portugal do que os portugueses, assim como muitos escritores hispano-americanos se lêem em Espanha mais do que os próprios espanhóis.

Temos que aprender a respeitarmo-nos uns aos outros, e a permanecer unidos. E os hispanistas estrangeiros têm que compreender que, se seguem o chamamento da sua vocação, devem manter-se afastados das nossas brigas de família. Um americano ou um italiano quando intentam menosprezar a Espanha ou Portugal, só porque os hispano-americanos ou os brasileiros os menosprezam (com grande fúria amorosa), são um tanto irrisórios. E são-no também os estrangeiros que subscrevem a reticência das antigas metrópoles para reconhecer as grandezas que se podem encontrar, desde há muito, no ultramar. E que dizer dos hispanistas que, imitando o complexo de inferioridade da Castela imperialista (a Castela «comunera» não o tem) […] causado pela recusa de Portugal em fazer parte de Espanha? (de facto, nos 850 anos de existência de Portugal, estivemos juntos apenas 60 anos, ou 7% e não mais). Esqueçamos as palavras cruéis de D. Marcelino Menéndez Pelayo ao dizer que os portugueses tinham escolhido a sua mediocridade em lugar de participar das glórias de Espanha. Porque os portugueses sempre participaram dessas glórias de uma maneira ou de outra, como os espanhóis participaram das nossas. Permitam-me que diga que, depois da separação de 1640, dos dois lados da fronteira é difícil discernir que glórias históricas, aparte as que já pertenciam ao ultramar, os espanhóis e os portugueses podiam gozar. Na Guerra Peninsular lutámos juntos, se foi uma glória expulsar Napoleão e os seus exércitos para proveito de países ou gentes tão esclarecidas como Fernando VII, a Inglaterra de Wellington, o rei da Prússia, e os imperadores da Áustria e Rússia, todos eles tão amantes da liberdade dos povos.

Assim como na América do Norte se diz south of the Rio Grande River; para indicar os confins do mundo, também na Europa se disse mais de uma vez que a Europa termina nos Pirenéus. Afinal de contas que importa se estamos ao sul do Rio Grande ou em África? Entrar nesse jogo é aceitar uma vez mais o racismo inventado pelas maluquices românticas sobre raças e povos, ideologias que culminaram tão graciosamente na demência de Hitler.

Devemos insistir e lutar pelo nosso mútuo entendimento, nós, as gentes que falamos as línguas desenvolvidas na velha Hispânia Mater. De facto somos nós uma gente especial, que atraiu com as suas obras e as suas excentricidades a vós,  eruditos de outras nacionalidades, a quem, em muitos casos, e através dos anos, devemos mais que a nós mesmos na compreensão e estima das nossas culturas.

Possivelmente vamos todos mudar muito no torvelinho industrial contemporâneo; mas como D. Quixote – e como devem saber – nós somos ao mesmo tempo aristocratas e plebeus de cepa camponesa. Ou como os velhos Alarcones disseram uma vez, há séculos, quando um juiz lhes pediu para apresentarem os seus títulos de nobreza: não tinham nada que apresentar; se os reis enobreciam os seus protegidos para os promover, outros como os Alarcones eram nobres pela graça de Deus. Curiosamente esta era a mesma doutrina defendida pelo Dr. Huarte de San Juan no seu Examen de Ingenias, ele que foi um desses ibéricos que publicavam um livro com dedicatória ao Rei Nosso Senhor num ano de  575, para ver o livro proibido num Index de 1581: com Felipe II e a Inquisição ainda mais omnipotente do que ele, ninguém sabia nunca a que agarrar-se. Não era por sinal Felipe o grande defensor da mais que romana […], ao mesmo tempo que o coleccionador de arte que salvou para nós obras de Hyeronimus Bosch que os bispos flamengos estavam tão ocupados em queimar?

Durante muito tempo todos nós na nossa grande família de tantas raças temos feito o impossível para nos ignorarmos uns aos outros, quando não nos tentámos suprimir, se pensávamos ter força para o fazer.

Portugal e Espanha, ao que parece, percorrem novos e difíceis caminhos para a democracia e a justiça social de que estiveram privados por tanto tempo, caminhos tornados intransitáveis para uma aterradora maioria dos nossos irmãos das Américas. Parece-me apropriado, ao chegar à peroração final deste comprido e nem sempre agradável discurso, dedicar uma profunda e comovida homenagem às suas desventuras. Uma vez que eles, nossos irmãos, são também nobres pela graça de Deus, mesmo que não haja graça nem Deus. Estas contradições nunca foram problemas para os nossos místicos e os nossos ateus, porque descobrimos em nós, mesmo nas nossas vidas, há muito, o que tanto trabalho deu a Hegel para descobrir, ou, para melhor dizer, o que à filosofia europeia levou tantos séculos. To be ar not to be is not the questionon. Não é sequer questão: é muito simplesmente uma compreensão da vida humana,  incompreensível para outros. O príncipe Hamlet – que não era um «príncipe constante» – teve um vislumbre dessa verdade que foi sempre nossa, e esta verdade é a nossa graça salvadora, no meio da nossa própria malícia, ou retorci mentos, ou erros, enquanto à nossa volta se agita o imenso oceano do resto da humanidade ou de académicos demasiado humanos, que nos ignoram como o universo nos ignora a todos.

Somos e não somos ao mesmo tempo, e tendes que aceitar, a menos que, para cúmulo dos nossos males, desencantados, nos decidam mandar para o diabo mais às nossas línguas. Não o façam. Continuem perseverando, e ajudando-nos a estar neste mundo em que «la vida es sueño», mesmo que nunca estejamos a dormir, mesmo quando longas ditaduras façam o possível para comprar o nosso silêncio, o nosso adormecimento, ou a nossa morte. Porque há que saber que, como D. Quixote que está sempre a morrer, cada vez que lemos o final do livro, nós nunca morremos. De maneira alguma. Que o mundo goste ou não, todos nós e os nossos amigos estamos nele para ficar, e com as nossas contas no bolso para exigir o pagamento justo e com juros, quando chegar o Juízo Final. Se permanecermos juntos somos uma força imponente. Sei, porque conheço demasiado bem a natureza humana, sobretudo a nossa, que isto de uma ou de outra maneira nunca ocorrerá, para maior alegria e proveito de quem nos divide para melhor reinar. Mas podemos, pelo menos tentar; e sonhar com o Quinto Império que nos fugiu da mão; mas que não será de ninguém senão nosso. Não para nada nos dispersámos por todo o mundo como nenhum outro povo o fez por sua vontade; e por vezes temos sido tão furiosos revolucionários, quanto fiéis às nossas imortais tradições. Como disse um grande poeta português demos novos mundos ao mundo; e, no dizer de um sábio seu compatriota e contemporâneo, «lo que és más: nuevas estrellas»: as nossas línguas e países deram ao mundo alguns  os seus maiores escritores. E o mundo segue cego e surdo a tudo isto. Somos de certo modo, como o roseau pensant de Pascal: o universo, ao destruí-lo, não sabe o que faz. A nossa vitória é que sabemos, e um dia a vitória final chegará.

 

Santa Barbara, Agosto de 1977

 

In: Sobre teoria e crítica literáriaPorto, Caixotim, 2008 p. 181-200.