Depois de breve introdução, transcreve-se abaixo a primeira carta que Jorge de Sena endereçou a Eugénio Lisboa. Por acaso, apreendida pela PIDE…
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Do relevante contributo de Eugénio Lisboa à leitura crítica e divulgação da obra seniana, melhor do que as palavras elogiosas que eu aqui possa arrolar, há o testemunho material dos títulos que publicou: a incontornável coletânea Estudos sobre Jorge de Sena [1], duas antologias [2] e vários ensaios – a maioria hoje reunidos em As Vinte e Cinco Notas do Texto [3] . Com aquela assumida independência que o caracteriza, lança luzes originais, por vezes polêmicas – ou “ácidas”, como diria o próprio Sena –, mas sempre argutas, sobre a obra e o autor em foco. E, sobretudo, envoltas num savoir lire invejável, num amplíssimo background erudito, numa costura argumentativa clara e cerrada, algo escassa nos tempos que correm. Ou seja, também quando trata de Jorge de Sena, Eugénio Lisboa não foge à “agilidade hermenêutica incólume” e ao “perfil imune a lobbies” com que Eduardo Pitta [4] bem o definiu.
Dentre seus artigos, respigo a recensão [5] publicada na Colóquio-Letras, pouco depois de editado o primeiro volume da correspondência de Jorge de Sena – aquela trocada com Guilherme de Castilho. E se tendenciosamente o faço, é porque muito do que aí nos diz Eugénio Lisboa poderia aplicar-se igualmente à posterior correspondência publicada e a muita da inédita, inclusive àquela que faz de Eugénio Lisboa e de Jorge de Sena especiais interlocutores. Interlocução que, segundo penso, rapidamente deveria abandonar o ineditismo e vir a público, revelando não só um diálogo vivaz entre dois mestres da heterodoxia, como ainda muito de uma contextualização cultural portuguesa (e não só) dos efervescentes anos 70 do século findo, comentada com o à vontade da mútua confiança entre amigos.
Compreendendo apenas 35 missivas [6] – 11 de Jorge de Sena e 24 de Eugénio Lisboa – e concentrando-se entre 1972 e 1978, não resultaria em alentado volume. Mas seria substantiva o suficiente para caracterizar um excepcional diálogo entre duas personalidades fortes, dois engenheiros que, por conta própria, pavimentaram suas rotas pelas letras e nelas edificaram obras inquestionavelmente respeitáveis.
São de Santa Barbara, e apenas daí, as cartas de Jorge de Sena, que sumarizam sua vida de scholar numa universidade americana, sua produção literária, suas andanças um pouco partout sob vários propósitos, com destaque para os acadêmicos. Da parte de Eugénio Lisboa, as cartas datadas de Lourenço Marques, Pretória, Joanesburgo, Paris, Londres, Santo Amaro de Oeiras e S. Pedro do Estoril atestam, já por tais registros, a vasta e variada experiência internacional que o signatário então acumulava, conciliando a docência e as letras com a carreira ligada ao ramo petrolífero, que só no fim de 1976 por completo abandonará.
À guisa de exemplo e ratificando o que afirmo, transcrevo abaixo [7] a primeira carta endereçada a Eugénio Lisboa por Jorge de Sena, de 7 de Junho de 1972, e que, por artes escusas dos tempos então vigentes, foi logo apreendida pela PIDE. Que sua leitura sirva de estímulo a quem tenha poder decisório sobre a edição que ora advogo – a qual viria a prolongar por páginas impressas as comemorações dos bem vindos 80 anos do meu, do nosso, muito estimado amigo Eugénio Lisboa.
Meu caro Eugénio Lisboa
Só umas rápidas linhas para muito lhe agradecer a carta que teve a boa lembrança de escrever-me em 26 de Maio, há dias recebida, e também a remessa da revista com a sua palestra sobre a Literatura Moçambicana (se assim pode dizer-se – eu, nos meus cursos de literatura Brasileira [um “caso” de cissiparidade em relação à mãe portuguesa, que julgo que Vocês deveriam estudar, culturalmente, com a maior atenção, sobretudo na época colonial e no século XIX] sempre chamo os alunos a considerarem três ou quatro critérios que longamente, e ainda, os brasileiros confundiram: literatura sobre o Brasil; literatura no Brasil [repartida entre “estrangeiros” que incluem os fieis a Portugal, os “naturalizados” como politicamente o Gonzaga foi, os “brasileiros” radicados em Portugal, em que se contam alguns dos que tentaram, no século XVIII, a mais “brasileira” literatura, e os “naturais”] e literatura brasileira propriamente dita – e assim comecei por tratar a questão em lugar de grande responsabilidade, que é o artigo geral, muito vasto, sobre a Lit. Bras., para a futura nova edição da Enciclopédia Britânica [8], que escrevi, além de paralelo trabalho para a Lit. Port. aonde incluí necessariamente referência às lit. “africanas”) [9], que achei excelente e só o não parecerá a quem se deixe apenas irritar pelo tom “ácido” que, vamos e venhamos, V. desembaraçadamente usa. Acabo de receber um ensaio do Moser (“How African is Afro-Portuguese Literature?”), publicado agora em Review of National Literatures, II, 2, e em que ele trata o caso de maneira que a si sobremaneira importa – e está a responder aos delírios de base estritamente política e de “negritude”, com que muita gente se dá a fazer carreira por estas partes, excluindo (dessa gente) quase todos Vocês por insuficientemente ou nada pretos. Tais coisas já chegaram ao ponto de organizações negras, para protestarem contra Portugal, terem tentado (não levaram por diante) “disrupt” o simpósio de Connecticut, e as celebrações camonianas da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, só porque o Camões era português… Como a eles disse, uma vez, no Wisconsin, em situação paralela, têm os portugueses da metrópole maior representatividade ou mais liberdade política, a grande massa da população portuguesa chega à educação em melhores condições e mais protegidamente?… São Cabo Verde, ou mesmo Angola e Moçambique, assimiláveis ao Congo ex-belga, ou à Nigéria, Quénia, Senegal, etc., que nunca foram, nem em pequena escala, colónias de fixação? Em que língua escrevem os internacionalmente antologiados Senghor, Césaire (que vem deste lado), Camara Laye, Diop? Com o que ficaram grandemente embatucados. O que nada altera à minha velha posição, bem conhecida – mas demagogias baratas são outra coisa.
Tenho a minha próxima visita a Moçambique [10] como altamente importante para mim, com um conhecimento tão ocasional do que se publica e publicou (o que sempre me fez recuar de celebrar coisas que admiro, para não cair nas atitudes falsamente confundíveis dos Césares Amândios [11], o qual até a mim incluiu na incrível antologia por dois ou três “sketches” mais ou menos africanos, e, saiba Você, para poder dizer – o que, naquele tempo, não significava nada – que dois dos ditos haviam aparecido na revista da então Agencia Geral das Colónias, por obra e graça do José Osório de Oliveira que a dirigia…, ou nos humanismos do José Régio, para quem tanto fazia que um sujeito fosse da Cochinchina como da Patagónia, não apenas por respeito aos valores estéticos, mas porque não tinha a mínima noção de circunstancialidade histórica ou cultural, para além do nacionalismo literário lusitano, de fraca cepa, a que se entregara nos seus últimos anos), e para os estudos de Português aqui nos Estados Unidos (de que algum vislumbre V. cita muito a propósito). Com efeito, quanta informação directa e quanto material (livros, artigos, depoimentos, etc.) eu possa colher permitir-me-á, melhor que americanos bem intencionados, entender e apreciar o que se passa, para oferecer algo de mais equilibrado do que a palhaçada por aqui dominante. Embora, é claro, o ser eu português-nato, e branco, me corte muito da autoridade que me reconhecem para outros efeitos gerais. Partirei daqui, com minha Mulher, pelo dia 20, se o bilhete vier a tempo, a Roma, Atenas, se possível Cairo, Lourenço Marques. Depois, Luanda e Lisboa. A seguir, aproveitarei a oportunidade para algumas pesquisas na Europa, e voltarei nos meados de Setembro. Assim, mais ou menos Julho será dedicado a Moçambique.
Quanto a que a universidade aí seja dirigida por um Barbais Morosa ou vice-versa é-me totalmente indiferente. Se ele me convidar a falar lá, aceitarei. Mas não convida, e não apenas por ser o que será – mas porque a “universidade portuguesa” faz absoluta questão de me ignorar ou atacar, com algumas honrosas excepções (e muitas dedicatórias em obras recebidas – qualquer dia, eu publico um volume de dedicatórias dessa tropa e mais outras da praça literária lusitana e vai haver grandes surpresas). Que quer, meu caro, eu sou duas vezes “estrangeiro”: não estudei letras com eles ou com ninguém, vim da tarimba ao doutoramento em Letras, adquiri a nacionalidade brasileira (passaporte que possuo), e ensino nas universidades norte-americanas. Reconhecerem-me enquanto catedrático seria reconhecer que, no mundo, a tal se chega sem passar pelas partes baixas deles. Eu quáse já faço questão, por vingança biográfica, de que me não convidem – para que conste que tenho falado ou falarei em tudo quanto é universidade ilustre deste mundo (está a organizar-se em Inglaterra um convite coletivo de 12 universidades [12], para eu ir ensinar lá, a uma semana em cada uma, no 2º trimestre lectivo de 1972-3, e dois convites formais, o de Londres e o de Cardiff, já chegaram, e serei o “guest-speaker” para a conferência de escritores e críticos, em Março de 1973, no País de Gales), sem jamais ter falado em tais lugares mais ou menos impróprios. Como acabo de ser nomeado chefe do departamento de Literatura Comparada da Un. da Califórnia, poderia mesmo até, com alguma autoridade, explicar-lhes o que isso seja (a Lit. Comparada) – mas de que adiantaria em cabeças tão impérvias ao que não seja a supremacia universal (infelizmente não reconhecida urbi et orbi) da lusitanidade?
Não tem nada que desculpar-se de me citar – os textos publicados são propriedade pública, a menos que cobertos por específico “copyright” mesmo para citações (e não o fiz), ou que sejam desvirtuados fora do contexto (caso de polícia), o que não é seu caso na conferência e não o será no livro sobre o Régio. Cumpre-me a mim agradecer o relevo que me é dado. Apenas gostaria de observar que se tem insistido muito no meu lado ácido, sem se insistir igualmente no meu lado brando: nunca ataquei ou insultei ninguém especificamente (e tenho sido das pessoas mais relesmente insultadas, como me informa regularmente, há muitos anos, a agencia de recortes), mas sim situações e estados de espírito condenáveis que algumas pessoas poderiam representar (o que é apontado por um dos fragmentos que V. cita), tenho escrito altamente bem de muita gente a quem não devo amizade, e poucos têm, tanto como eu, posto a crítica acima de antagonismos pessoais ou ideológicos. A lenda da minha violencia (não no seu caso) tem sido uma das armas forjadas contra uma imparcialidade que fere vários interesses estabelecidos ou a estabelecerem-se. O que eu uso é de uma coisa rara em Portugal – a ironia, coisa escandalosa na pátria do varapau e do arroto.
Quanto a que não tenham dado aí pelo Guerra da Cal, aliás meu amigo, não deixa de ser irónico resultado da justiça imanente – porque pouca gente destas bandas têm fruído tanto, e em tão alto nível, dos favores super-oficiais e universitários do Jardim da Europa, com safaris e tudo. O que não é o meu caso, nem nunca aceitei que fosse (e ainda no Verão passado recusei delicadamente um convite mais ou menos oficial para ir a Angola, que me foi feito em Lisboa). Aceitei, sim, recentemente, o convite oficial para tomar parte no Colóquio de Camonistas em Lisboa, porque sei o que foi a luta – e o triunfo que isso representa – de gente limpa e leal dentro da “universidade”, para que fosse convidado. E, provavelmente, não irei a Lisboa em Novembro, porque a reunião quase coincide com a do juri internacional do Grande Prémio Internacional de Literatura de Books Abroad, a que pertenço, que desejo arrancar para a língua portuguesa [13], e que é, por certo, evento mais importante (acerca do outro, falam os meus livros sobre Camões, e o mais que conto fazer por ele).
Como vê, meu caro, escrever-me pode às vezes ser pior do que tocar a campainha para matar o mandarim. E, sobretudo escrever-me informalmente – ninguém é menos palaciano do que eu, ou mais detesta os engravatamentos e brilhantinas que até os “hippies” religiosamente conservam em Portugal (ou não fossem filhos das boas famílias deles) – verá no meu próximo livro de poemas, a sair, um terrível contra tudo isso e mais alguma coisa – o que não quer dizer que, por sistema, aprecie a má criação que hoje impera naquele mesmo lugar do orbe (ó tu, Sena, eh pá, etc.), e com que a falsa juventude julga que acerta o passo pelo resto do mundo.
Até breve, pois. E creia na melhor estima e simpatia do sempre seu
(ass.) Jorge de Sena
NOTAS:
[1] LISBOA, Eugénio (Compilação, organização e introdução). Estudos sobre Jorge de Sena. Lisboa, IN-CM, 1984
[2] LISBOA, Eugénio. (Prefácio e seleção). Versos e alguma prosa de Jorge de Sena. Lisboa, Arcádia/Moraes, 1979 e LISBOA, Eugénio. Jorge de Sena. Lisboa, Presença, 1984.
[3] LISBOA, Eugénio. As Vinte e Cinco Notas do Texto. Lisboa, IN-CM, 1987
[4] PITTA, Eduardo. “Perfil de um amigo”. Blogue “Da Literatura”, 8 de maio de 2010, ver (http://daliteratura.blogspot.com/2010/05/perfil-de-um-amigo.html)
[5] LISBOA, Eugénio. “Sena: o primeiro volume da Correspondência”. In: —. As Vinte e Cinco Notas do Texto. Lisboa, IN-CM, 1987, p. 51-57.(rep. de Colóquio/Letras nº 71, janeiro de 1983)
[6] A listagem é de Mécia de Sena.
[7] Com autorização de Mécia de Sena, e a partir de fotocópia do original datilografado que gentilmente me forneceu, acompanhada da seguinte observação: “A carta que aqui lhe envio é precisamente a que estava na PIDE”
[8] Os dois textos mencionados encontram-se em SENA, Jorge. Amor e outros verbetes. Lisboa, Ed. 70, 1992, p. 233 -272
[9] Neste longo trecho parentético, são de minha responsabilidade os colchetes aqui inseridos. GS
[10] Visita efetivada entre 7 de julho e 01 de agosto.
[11] Amândio César, autor ligado ao regime, publicou em 1972 uma Antologia do Conto Ultramarino, depois de publicar Parágrafos de Literatura Ultramarina (1960), Algumas Vozes Líricas da África (1962), Elementos para uma Bibliografia da Literatura e Cultura Portuguesa Ultramarina e Contemporânea (1968) e Novos Parágrafos de Literatura Ultramarina (1972)
[12] Este “tour” de conferências efetivamente assim ocorreu.
[13] Sena tinha em mente o nome de Carlos Drummond de Andrade. A propósito deste prêmio e dos esforços que Sena empreendeu junto a Drummond, ver o elucidativo artigo de Frederick Williams “Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Sena and International Prizes: a Personal Correspondence”, In: PICCHIO, Luciana S., org. Quaderni portoghesi 13-14 (Jorge de Sena), Pisa, Giardini, 1985, p. 331-358
In: Martins, Otília & Almeida, Onésimo, orgs. Eugénio Lisboa: vário, intrépido e fecundo – uma homenagem. Guimarães: Opera Omnia, 2011 p. 143-149