Em mais uma forma de testemunhar o tempo que lhe foi dado viver, Jorge de Sena registrou em muitas páginas as não poucas guerras travadas no século XX, que, de vários modos, o afetaram, como teriam afetado aquele grande pintor “que tinha uma coração muito grande, cheio de fúria e de amor”. Alguns excertos exemplificadores:
Em torno da Guerra Civil Espanhola
A falta de médicos e de remédios é que fazia sentir-se, mas era um efeito da guerra. De resto, a falar verdade, leprosos carne, não estavam lá muitos. Da carne? O padre ergueu os olhos, e as mãos quase postas, ao céu que empalidecia; e abanou a cabeça melancólico. — La lepra del alma es la peor. No es el comunismo la lepra del alma?
(“A Grã-Canária”, Os Grão-Capitães, 1976)
Sabe você que um amigo meu, durante a guerra de Espanha, era oficial miliciano em Chaves? E sabe você que os espanhóis do Franco, quando as nossas autoridades entregavam na fronteira algum foragido que se escapara para o lado de cá, mandavam depois uns cartões de convite para irem assistir ao fuziliamento?
(“Os Salteadores”, Os Grão-Capitães, 1976)
A Espanha estava realmente dividida. Os rebeldes consquistavam pouco a pouco os “altos” do Guadarrama, apertavam o cerco a Madrid. Mas parecia que a capital resistira. Dentro de dois ou três dias a situação ficaria mais definida ainda. O governo, por seu lado, apertava o cerco a Toledo. O desespero falsamente entusiasmado com que o Rádio Clube Português incitava os defensores do Alcázar, mostrava que a situação, aí, não era favorável aos rebeldes. O ministério presidido por Giral armara o povo, sem perder o apoio dos liberais, e controlava a situação do território que se revoltara ou onde as tentativas de revolta tinham sido sufocadas.
(Sinais de Fogo, 1979)
Em torno da 2ª Guerra Mundial
A certa altura tive de impor, autoritariamente, a disciplina. E mesmo me vi obrigado a mandar castrar, em execução pública, para exemplo, um homem (…). Eu nunca preguei a liberdade, mas a ordem; nunca preguei igualdade, mas hierarquia; nunca preguei a fraternidade, mas o livre arbítrio da raça que se purificou para tê-lo.
(“Defesa e justificação de um ex-criminoso de guerra”, Antigas e novas andanças do demônio, 1978)
Em torno da Guerra Colonial na África
— Tás a ver? A gente não sai daqui.
— Mas se agente aqui fica, estamos perdidos!
— Ora! Tanto faz a gente perder-se aqui como lá. Matam-nos de qualquer maneira. Toda esta pretalhada é contra nós.
(“Capangala não responde”, Os Grão-Capitães, 1976)
Poemas de Jorge de Sena sobre guerras:
2a. Guerra: “ Cinco Natais de Guerra, seguidos de um fragmento em louvor de J.S. Bach” (poemas de Pedra Filosofal, 1950).
Guerra do Vietnam: “ Cadastrado” e “ A vida e a morte como investimento segundo áreas geográficas” (poemas de Seqüências, 1980).
Todas as guerras: “ Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya” (poema de Metamorfoses, 1963).
A propósito do tema, e das relações entre História e Literatura em Jorge de Sena, ver:
ROMÃO, Márcio. Jorge de Sena: um escritor em tempo de guerras. In: Metamorfoses 8. Rio de Janeiro/Lisboa, Cátedra Jorge de Sena/ Ed. Caminho, 2008 p. 159-169
ROMÃO, Márcio. Das memórias à ficção: o quase de Jorge de Sena. In: Metamorfoses 9. Rio de Janeiro/Lisboa, Cátedra Jorge de Sena/ Ed. Caminho, 2008 p. 29-36