Capangala não responde

 

Escrito no Brasil, em Assis, e datado de 25 de junho de 1961, este conto de Os Grão Capitães é um dos primeiros textos ficcionais da Literatura Portuguesa a tomar como cenário a guerra em África. Decerto, Sena valeu-se das informações sobre ela que abundantemente chegavam ao jornal paulista Portugal Democrático, no qual atuava desde 1959.

A excisa virilidade de Urano caiu no mar inquieto, aonde, da terra firme, Cronos a lançara. E por muito tempo vagou desencontrada. (apud Teogonia de Hesíodo)

“África, 1961”

– Capangala?
– Patrulha 20 chama Capangala.
– Capangala?
– Patrulha 20 chama Capangala.
– Um momento, trrrr… Capangala?
– Patrulha 20 chama Capangala.
– Já ouvi. Espere. Capangala?
– Patrulha 20 chama Capangala.
– Capangala não responde. Zzzzzzzz. Tique.

Pousou o telefone na caixa, levantou-se (estava de cócoras ao lado da caixa). De mãos nos bolsos, ficou a olhar o telefone de campanha, adiante das biqueiras das botas. O 37, esparramado nas ervas baixas e empoeiradas, roncava num sibilo como o do telefone. Voltou-se. O 401, sentado no chão, com os braços cruzados nos joelhos, levantava para ele um rosto parado e mudo, onde os olhos pareciam muito negros na lividez quadrada de rosto de menino imberbe. Ao lado do 401, estavam pousadas as pistolas-metralhadoras, os cunhetes de munição, os sacos de granadas, as mochilas. Percorreu com os olhos o campo que, para além da aberta em que estavam, era um mar de capim ralo que lhe chegava ao peito. Uma, duas árvores negras sem folhas. Os cocurutos dispersos como sentinelas, e amarelados, dos formigueiros.

– Patrulha 20 chama Capangala.
– Zzzzzz…
– Patrulha 20 chama 18. Patrulha 20 chama 18. Patrulha 20 chama 18.
– Zzzzzz… – novamente se levantou, mas não se voltou para o 401. A voz deste é que veio despertá-lo.
– Também não respondem? Já não respondem. Foram mortos. A esta hora, nesta hora, estão a capá-los, a…
– Cala-te! – berrou sem se voltar.
– Vamos morrer aqui. Se a gente se separa, matam-nos. Se nos agarram juntos, matam-nos. Essa negralhada toda a esfaquear-nos. Mas eu antes queria que ninguém me visse morrer.

Voltou-se: — Porquê?

O 401 desviou para o chão os olhos negros, pousou nos braços a cabeça: — Tenho vergonha.

– Vergonha?
– Sim… Não é de que ma vejam, mas de que tu ou aquele ainda estejam vivos e vejam eles caparem-me.
– Não te rales; só te fazem isso depois de morto.
– É a mesma coisa.
– A mesma coisa… — e levantou os olhos para a planura onde o ar tremia sobre as ervas. — Para que precisas tu dela, se estás morto?

Quando fixou o 401, os olhos negros estavam fitos nele, muito arregalados, numa ânsia.

Repetiu: — Para quê? Se estás morto…

O 401 estirou as pernas, deixou cair o tronco, ficou deitado, com os olhos vagueando nas nuvens baixas e brancas, e pôs as mãos cruzadas sob a nuca. Depois, voltou a cabeça, cuspiu para o lado, e o cuspo ficou escorrendo do canto dos lábios. Com os olhos envesgados, fitou o cuspo que escorria. A voz veio molhada por entre os dentes: — Capangala… Que raio de nome!… Meteram-nos numa boa alhada.

O outro não respondeu, e sentou-se no chão ao lado dele, do lado do cuspo, e estirou-se apoiado no cotovelo. A mão brincou com a poeira fina, fazendo riscos, ora com um dedo, ora com outro. — Vamos ficar aqui?

– Não me perguntes a mim, pergunta a esses filhos da puta dos teus amigos que nos mandaram para cá.
– Ninguém me mandou.
– Porque era dos trouxas, dos que vieram para salvar esta merda. És dos que sabem tudo e mais alguma coisa, dos que mandam… Eras “legionário”, não?
– Não era. Eu alistei-me.
– Ah foi? Pois cá a mim convocaram-me. E é porque naquela terra maldita não há onde um homem se esconda. Ou não me pilhavam aqui.
– Eles pagavam um prémio… Eu alistei-me.
– E que fizeste com o prémio? Foste às putas da alta cinco vezes ao dia até embarcares?

O outro riu silenciosamente, e respondeu: — Mais ou menos… — e, pigarreando, corrigiu: — Não. Eu precisava de me escapar de lá.

O 401 tornou a cuspir, e os dedos dele vieram rodear a saliva em que o pó se colava. Sem levantar os olhos, perguntou: — Qué que tinha sido?

– Oh, muita coisa.
– Mas o quê? Mataste, roubaste, fodeste alguma gaja? E não era melhor ficares na cadeia vivo do que morto aqui?

De súbito, ambos estavam de joelhos, segurando as armas, fitando as ervas pardacentas, quase sem cor, que pareciam mexer suspeitamente no ar que tremia.

– Não foi nada – disse o 401, mas a pele mais lívida era-lhe percorrida por tremuras como a de um cavalo ao sol. – Conta. Qué que tinha sido? – e não desfitava a planície, com os olhos saltando rápidos de um ponto para outro.
– Nunca matei ninguém. Fodi muita gaja que nunca se queixou.
– E eram todas virgens. Desvirgaste muitas?
– Algumas.
– Como é?

O outro olhou-o de esguelha, num relance: – Como é?

– Sim… Foram todas à primeira? Rebentaste logo com aquilo?

O outro, sem desviar os olhos da planície, tirou do cano da arma a mão esquerda que se crispara, espalmou-a recurva na massa do sexo, que apalpou. – Ahn? Que é que tu julgas que isto é?

O 401 calou-se, suspirou. Depois, rindo, sentou-se nos calcanhares, com a metralhadora no regaço, e perguntou:
– Mas então qué que tu fizeste? Roubaste? Eras ladrão fugido?

O outro sentou-se também nos calcanhares, baixou os olhos, abriu a boca, tornou a fechá-la, depois curvou-se para a poeira amarelada, e foi para ela que falou: – Nunca roubei nada. Mas eu queria viver bem. Não trabalhar. Trabalhar, para quê? Eu não tinha ninguém. Lancei mão de tudo. Fui informante.

– Informante? Eras “bufo”?
– Bufo, não. Eu andava com este e com aquele, falava com este e com aquele, e depois pagavam-me as informações.
– E foi por isso que te alistaste?
– Quando eu tinha estado na tropa, não precisava de pensar no que havia de fazer no dia seguinte. A gente, com arte, safa-se, e a cama e mesa não prestam, mas não faltam. E eu não aguentava mais. Todos desconfiavam de mim.

O 401 sentou-se de lado, voltado para ele: – Deixa lá, não penses nisso. Agora, já não adianta. Eu tinha um bom emprego numa oficina. Quando algum vinha à surrelfa conversar comigo, assim como tu havias de fazer, eu não dizia nada. Também não tinha nada que dizer. Essas coisas não eram para mim. Havia polícias, havia bufos, e o meu emprego também. Eu nem sabia que a África existia, nunca lia jornais. Ia casar-me – e repetiu, erguendo o olhar vago: – Ia casar-me.

Os olhos pousaram na cabeça do outro, ainda cabisbaixa. O outro sentiu o olhar, levantou os seus, sorriu. O 401 sorriu também, e disse: – Deixa lá, ao menos gozaste a vida.

O outro continuou a sorrir, jogou no ar um grãozinho maior da terra ressequida: – Não gozei… Era sempre outra coisa o que eu queria.

– Mas às vezes foi bem bom, não foi?
– Foi.
– Vês? Foi bem bom. Gozaste a vida. E não gostas de lembrar-te dos bons bocados que tiveste? Agora, tás a lembra-te, não estás? E só dos bons bocados, não é?

O outro ficou calado. E, de repente, deitou-se de bruços, sacudido por soluços fundos, dando socos no chão, batendo no chão com as biqueiras das botas.

O 401 acocorou-se, pousou-lhe as mãos nas costas, segurou-lhe depois a cabeça por um punhado de cabelos louros: – Não chores… Tás a lembrar-te? Tás a lembrar-te de que uma vez nem dormiste, toda a noite em cima dela? Tás a lembrar-te de que uma vez foi na praia, ao domingo, entre as pedras, e que se ouviam os putos a jogar à bola? Tás a lembrar-te de uma sardinha assada? Tás a lembrar-te de que ela te mordia? Tás a lembrar-te de que uma vez foi numa escada escura? Tás a lembrar-te de que passavas por diante da janela e ela mexia as cortinas para tu subires? Tás a lembrar-te de que ias à janela do comboio, e os montes iam andando à volta? Tás a lembrar-te delas todas? E do que comeste? E do cheiro que vinha dos restaurantes? E duma gravata às riscas que havia na montra? E de fazeres músculo diante do espelho? Tás a lembrar-te de tudo?

O outro voltou-se, com os olhos cheios de lágrimas, e a boca suja da poeira amarela: — Como é que tu sabes? Quem foi que te contou?

O 401 ficou a olhá-lo, abanou a cabeça: – Ninguém… São tudo coisas que eu pensei.

O outro sentou-se, esfregou os olhos com as costas da mão: – É que a gente pensamos todos o mesmo?

O 401, ainda de cócoras, disse: – Se calhar, é.

Ficaram ambos quietos. E o outro perguntou muito baixo: – Mas tu perdoas-me o mal que eu fiz?

O 401 não disse nada.

Ambos fitaram o 37 que continuava deitado de costas, sibilando pela boca entreaberta.

– Ó 54… — começou o 401. – Será que ele é com’a gente?
– Há-de ser. Não vês como ele dorme?
– Eu durmo assim? Com a boca aberta? Já viste?

Entreolharam-se, riram.

O sol rompeu por entre as nuvens, dardejou, o 37 sentou-se espavorido, esfregando os olhos, e logo procurou com as mãos a arma que estava do outro lado da clareira.

Os outros entreolharam-se e tornaram a rir.

O 37 fitou-os com os olhos piscos.

O 401 falou-lhe: – Estamos isolados. Ninguém responde. Acabou-se.

O 37 levantou-se num ímpeto e imediatamente se agachou: – Ninguém responde?

– Não, se queres, experimenta.
– Há quanto tempo não respondem?
– Sei lá – e voltou-se para o 54: – Há quanto tempo?

O 54 encolheu os ombros.

– Então vamos recuar, voltar à base – disse o 37.
– Qual base? – perguntou o 54, e deu uma cotovelada no 401.
– Capangala. Voltamos a Capangala. Não vamos ficar aqui.
– Vai tu sozinho – disse o 401.

O 37 olhou demoradamente para um e para outro. Depois, repetiu: – Sozinho?

– Sim – respondeu o 54. – A gente não sai daqui. Ó 401, a gente sai daqui?
– Não – disse o 401.
– Tás a ver? A gente não sai daqui.
– Mas, se a gente aqui fica, estamos perdidos!
– Ora! Tanto faz a gente perder-se aqui como lá. Matam-nos de qualquer maneira. Toda esta pretalhada é contra nós.
– Não é verdade! São fiéis – disse o 37. – Só esses bandidos que vieram do Congo é que querem matar-nos. São pagos para isso.

O 54 deu uma cotovelada no 401. Este olhou-o de relance. Riram ambos; e o 54 disse: — Ah são? Também os teus amigos me pagaram muitas vezes.

– Os meus amigos? Que é isso dos meus amigos? Quem são os meus amigos que te pagaram? Pagaram para quê?
– Ora… Para saberem quem estava farto de os aturar. E sempre te digo uma coisa. É muita gente. Ó 401, não é muita gente?

O 401 baixou os olhos. O 54 tornou a dar-lhe uma cotovelada: – Anda, diz-lhe que são muitos. Não tenhas medo. Agora, já se pode dizer.

O 401, sem levantar os olhos, repetiu: – São muitos… – e acrescentou: – Mas eu não sei se são muitos… Tu é que sabes. Mas se fossem muitos, os outros não atiravam com a gente para aqui. Se fossem muitos, era diferente. Se calhar, não são muitos.

O 54, então, disse de olhos pregados no 37: – São muitos, garanto que são muitos, o que todos ou quase todos têm é medo de gajos como esse.

– Como quem? – perguntou o 37.
– Como tu – respondeu o 54.
– Como eu? O que vocês são é uns merdas, uns maricas, uns comunistas.

O 54 deu outra cotovelada no 401: – Tás a ouvir o que ele diz?

– Estou – disse o 401.
– E a gente vai deixar esse gajo chamar-nos aquilo tudo? Eu conheço esse gajo de ginjeira. É dos que passam a vida a bater no peito, a dar vivas ao Salazar, a pensar que a gente somos todos uns merdas. Ó 401, nós somos merdas?
– Não – respondeu o 401.
– Vês? – disse o 54 ao 37. – Nós não somos merdas. Olha, e maricas também não, que isso de dar vivas ao Salazar é que é uma maneira de levar no cu como outra qualquer.

O 37 atirou-se a ele, rebolaram ambos engalfinhados, derrubaram o 401 que se enovelou no grupo. A poeira levantava-se em torvelinhos lentos que ficavam pairando sobre eles. Por fim, o 54 tinha o 37 a torcer-se debaixo dele que o montava e lhe socava a cara, enquanto o 401 lhe segurava os braços. A resistência do 37 afrouxava, as pernas já não se agitavam. O 54 ia perguntando: – Tens a tua conta? Queres mais? Tens a tua conta? – até o outro, com os lábios ensanguentados e o nariz a escorrer sangue, ficou quase inerte sobre ele.

O 54 desmontou, ficou acocorado ao lado. Largando os braços do 37, o 401 acocorou-se do outro lado. O 37 gemia. Por cima do corpo estirado, o 54 perguntou: – Ó 401, a gente somos maricas?

– Não.
– E ele? É?
– Tanto me faz que seja como que não seja.
– Isso mesmo. E comunistas, a gente é?
– Lá na oficina, uma vez, quiseram pedir aumento de salário, o patrão chamou a polícia, e os gajos vieram e chamaram comunistas a toda a gente. Mesmo aos que não tinham pedido nada, como eu. Achas que a gente é?

O 37 não respondeu. A custo, ergueu-se num cotovelo, depois sentou-se curvado para a frente, e disse: – Não podemos ficar aqui, à espera que nos matem. Temos de vender cara a vida, para que se não diga que não morremos com honra.

– Com quê? – perguntou o 54.

O 37 murmurou: – Com honra.

– Qual honra? A tua? A minha? Aqui a do 401? A dos teus patrões? Quem é que se rala com isso? E quem vai saber como é que tu morreste? Queres que venha o teu nome no jornal? É para ganhares uma medalha? Dão-ta de qualquer maneira. E, depois de morto, podes pendurá-la no lugar dos colhões que os pretos te cortarem. Até pode ser que te dêem duas, uma por cada um, se é que tens os dois.

E o 401 disse: – Vamos tentar outra vez o telefone?

Os três olharam para a caixa, e o 37 gatinhou para ela, sentou-se ao pé, limpou com a mão os lábios e o nariz ensanguentados, pegou no aparelho, tentou demoradamente comunicações sucessivas. Os outros dois, olhando-o, continuaram de cócoras. O 37 pousou o aparelho, ficou com os olhos nele, depois ergueu-os para ambos: – Ninguém responde:

– Claro que ninguém responde – disse o 401. – Ou estão mortos todos ou cavaram para longe.
– Foram buscar reforços para atravessarem até aqui.
– Espera por essa – disse o 54, e penteou com a mão o cabelo louro. – Quem julgas que tu és?
– O meu pai foi ministro.
– O teu pai foi ministro e tu és soldado como a gente? – gargalhou o 54. – Pois o meu pai era o papa.
– Eu não estudei, e não quis livrar-me da tropa.
– Ah não? Então aguenta.
– E podia ter-me livrado de vir para aqui, porque bastava que o meu emprego dissesse que precisava de mim para o esforço de guerra, e o meu pai falasse no Estado-Maior.
– Falar onde? Esforço de quê? – perguntou o 54. – Olha lá o esforço que fazes. Já não precisas de fazer esforço nenhum. Ó 401, não é que até para cagar não vai precisar de esforço? Quando os pretos aparecerem, borra-se logo pelas pernas abaixo.

O 37 passou a mão pela boca, não reagiu, e apenas disse secamente: – Mesmo que isso me acontecesse, é uma reacção automática, não prova nada contra a minha decisão de lutar pela pátria.

– Olha lá – perguntou o 401, lançando ao 54 um olhar rápido, – tu és de Angola? Já cá tinhas vivido?
– Não sou de cá, nem vivi aqui mais do que vocês – e, após um silêncio, acrescentou: – Nunca tinha saído de Portugal senão para ir à Espanha, a França…
– Ah, o teu pai pagava-te as viagens, não era? – perguntou o 401. – E na Espanha qué que tu fazias? Fodias as espanholas? E na França?

O 37 franziu o sobrolho.
– Não lhe fales nessas coisas que ele não gosta – disse o 54. – Não gostas, pois não? Era só às escondidas do padre-confessor, hein?

O 37 empertigou-se: – Não te admito…

– Não admites o quê? Não admites o quê? Olha, sabes o que mais? Mete a tua pátria no cu. Sabes o que é a pátria que a gente tem? Que tu e os outros nos deixaram? Sabes aonde está a nossa pátria? A pátria está onde está isto – e agarrou com a mão no sexo.

O 401 riu-se, e logo o riso se lhe suspendeu, vendo o 37 levantar-se lentamente, com os queixos cerrados, as mãos estendidas, e de pronto debruçar-se cambaleante à saraivada de tiros.

O 54 continuava de cócoras, mas a pistola-metralhadora ainda estava erguida nas mãos dele.

O 401 caiu sentado, com as mãos na boca, olhando ora para ele, ora para o 37 que estava deitado de bruços. As mãos do 37, estendidas, pareciam aranhas prontas a saltar-lhe para as botas, e o 401 encolheu as pernas. Depois, olhou para o 54 que pousara a pistola-metralhadora.

O 54 abriu para ele um sorriso torcido e ajoelhou-se. Baixando os olhos, disse: – Então ninguém havia de pagar-mas? Eu nunca acreditei nessas coisas… mas ele julgava que eram só dele?

O 401 tirou as mãos da boca e murmurou: – Está morto?
– Não sei. Volta-o.
– Eu?
– Sim. Volta-o.

O 401 gatinhou em redor do 37, parou-lhe ao lado, ergueu para o 54 uns olhos suplicantes.

– Volta-o – sibilou o 54, entre os dentes cerrados.

O 401 voltou-o. No lugar em que estivera o corpo, a poeira estava empapada de sangue. Na camisa e nas calças, havia chamuscos vermelhos e orlados de poeira amarela. O 37 tinha os olhos muito abertos, eram claros, e o rosto moreno torcia-se num esgar de que o nariz comprido se afilava mais.

– E se se descobre que ele foi morto com balas nossas? – perguntou o 401, sem despregar os olhos da boca aberta do 37.
– Ora, quando nos matarem a nós, hão-de servir-se depois das nossas armas. E, de resto, ninguém vai ver como é que ele morreu.
– Tu mataste-o.
– Ele ia matar a mim.
– Sabes lá!
– Nem preciso.
– És um assassino.
– E tu? Ainda ontem, eu contei, mataste três pretos, aqueles que iam a correr, e tu mataste-os como se fossem bonecos de pimpampum.

O 401 fitou-o: – Não é a mesma coisa.

– Não é a mesma coisa, porque…

Silvos perpassaram sobre as cabeças de ambos.

O 401 levantou-se e agachou-se logo, tropeçou no cadáver, e caiu com as mãos ao pé de uma pistola-metralhadora que agarrou: – Aí estão eles!

O 54, ajoelhado, com outra pistola-metralhadora nas mãos, disse: – Ainda demoram… Mas não vão querer que a gente gaste as munições. E hão-de querer a gente vivos…

O 401 tremia e, a custo, saiu de cima do cadáver: – Querem a gente vivos – repetiu.
– Bem sabes porquê.
– Não. Não.
– Sim, bem sabes porquê. Senão, não tinha graça.
– Não, não – e tremia.
– Foge – disse muito baixo o 54.
– Ahn?
– Foge…

O 401, com o suor a escorrer-lhe pela testa e pela cara, levantou-se nas pernas bambas.

– Corre…

O 401 vacilou e atirou-se para o meio das ervas, correndo aos arrancos. O 54 levantou-se, foi à borda da clareira, visou com a pistola-metralhadora, e disparou uma rajada longa que fez o 401 levantar os braços, parar, sumir-se.

– Vês que não é a mesma coisa? – disse o 54.

 

Assis, 25 de Junho de 1961.