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Caim

Segundo conto do jovem Sena, de 17/18 anos, demonstrando tal força e concisão que já traz em si o germe da grande obra que virá…

 

Já as cigarras cantavam a morte da luz do dia quando Caim voltou para casa. Uma extensa calma alojava-se no prado cuja planura era cortada, aqui e ali, por um ou outro cabeço. O Sol poente animava, na sua despedida, o colorido de todas as cousas.

Caim caminhava devagar. O sossego circunjacente penetrava-lhe no coração levando-o a pensar na vida e na família. Em paz viviam uns dos outros: a mãe cuidava da choupana e das peles com que se cobriam, ele Caim lavrava a terra, o irmão Abel pastoreava os rebanhos que Deus ensinara a amansar. Quando o pensamento lhe passou pelo irmão à sombra do dia findo somou-se no seu rosto a sombra da sua tristeza. Divisou ao longe um fumozinho que lentamente e muito calmo subia para o céu; e esse fumo do lar desanuviou um pouco a sua apreensão.

Numa volta do caminho, que os seus pés tinham traçado dia a dia, apareceu a casa paterna. Duas figuras solenes no entardecer estavam sentadas à entrada. Caim aproximou-se e beijou-as – primeiro o pai, depois a mãe.

Muitas, muitas vezes se tinham alternado o Sol e a Lua depois que Adão e Eva tinham saído do Paraíso. A princípio a vida custara, depois nascera Caim e por causa dele habituaram-se a trabalhar; mais tarde apareceu Abel, e Jeová que se conservara afastado foi tomando interesse pelas crianças e delas passou à vida dos pais. Ensinara-lhes a domar o gado, a lavrar e a fazer o fogo. Agora, os filhos crescidos, declinavam felizes e fios brancos começavam a nascer e a multiplicar-se entre os cabelos escuros.

Adão e Caim falaram das colheitas. Não iam mal; os trigais muito louros adoravam já o Senhor com as espigas felizes pendidas para o chão.

Ao longe começaram a ouvir-se exclamações de mistura com balidos; Abel recolhia com o rebanho.

Depois de fechados os animais no redil veio juntar-se aos pais e ao irmão.

Tal como já fizera com as searas, Adão perguntou pelos carneiros.

– Andavam magros, não medravam, não pareciam os mesmos de tempo atrás.

O pai recomendou mudança de pasto e Eva lembrou que se matassem os piores para ela fazer fatos novos – os que traziam já estavam velhos e gastos.

Abel declarou à mãe que faria isso no dia seguinte mas que agora tinha fome.

Quando acabaram de comer foram deitar-se enquanto cá fora corria uma aragem fresca a quem as estrelas no alto faziam companhia.

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Sobre as peles Caim não dormia; pensava. Em tudo o Senhor preferia o irmão. A última vez que tinham feito oferendas à Jeová, este agradara-se mais do anho gordo de Abel que das suas frutas e verduras. Agora tinha porém ocasião de se vingar. Os animais estavam tão magros quanto as suas culturas estavam gordas e Deus, desta vez, gostaria mais do que ele lhe levasse.
Voltou-se para Abel que jazia junto dele.
– Abel!
O irmão mexeu-se: – Que é?
– Ainda não dormes?
– Não.
– Ouve!
– Que é que queres?
– Se fôssemos amanhã levar dos nossos produtos ao Senhor Deus?
Abel pensou – quer vexar-me porque sabe que nada tenho de bom, por outro lado se não vou é ele que ganha com certeza – e respondeu: Vamos! e esperou mais algum dito do irmão mas Caim calara-se e adormecia agora no descanso da sua vitória.

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No dia seguinte eles a saírem de casa e o Sol a sair da terra.

Caim colhera da seara as melhores espigas e das árvores os melhores frutos; Abel procurara o animal mais gordo mas mesmo assim de pele tão caída…

Andaram muito sem dizer palavra até chegarem ao sítio onde o Senhor lhes vinha falar.

A planície era aí interrompida por uma torrente que gemia em baixo entre as pedras. Nas margens escarpadas pedregulhos debruçavam-se curiosos sobre a água. O ar cinzento e retraído era embaciado pela ausência de ervas alegres; só plantas daninhas, daquelas que a sorte fez secar mesmo em vida, apareciam nos interstícios das pedras. A terra era árida, a aridez estava em Deus, o sítio divino era árido. O dia ali estava enevoado. Grossos cúmulos encobriam o Sol que através deles imprimia a tudo uma luz algodoada e sem energia. Um vento fresco depois de acariciar os campos e cair aos baldões pela encosta ia arranhar a torrente. Sobranceiro à ravina e à planície erguia-se um penhasco abrupto, selvaticamente ornamentado pelas sarças.

Treparam-no com dificuldade e pararam ofegantes quase no cimo. Ajoelharam-se e fitando o céu invocaram: Jeová! Jeová!

As duas ribanceiras repetiram vale abaixo: Jeová… Jeová…

Começou a invadir o ar estranha sonoridade. Uma nuvem resplandecente destacou-se dentre as irmãs. Trovejou lá no alto. O ar assobiou, contornou-se em torno do penhasco. Uma pequena pedra desprendeu-se e rebolou até à água. Outro trovão estoirou mais baixo. O carneiro balou aflito. Abel e Caim, de cabeça baixa, não olhavam o Senhor que se aproximava recostado na nuvem.

Quando Jeová pôs os pés no alto do penedo as nuvens desapareceram descobrindo o Sol, o vento caiu, o ar tornou-se perfumado, uma música tocou nas almas e uma auréola veio respeitosa iluminar os cabelos brancos de Jeová. Amaciando a voz habituada a dirigir os movimentos astrais o Senhor perguntou:

– Que me quereis?

Eles levantaram as faces e Caim falou por ambos.
– Senhor! Trazemos hoje para vós do melhor que possuímos. Perdoai-nos o incomodar-vos por tão pouco…

– Muito me apraz isso, Caim. Tanto mais que ainda há pouco me visitaram com idêntico fim… E o que têm então para me dar?

Ele bem via as cousas mas queria que eles falassem.

– Trago-vos trigo da minha seara e fruta das minhas árvores. O trigo plantei-o para vós, os frutos para vós os colho…

E Caim era sincero quando dizia isto.

O Senhor agradeceu e voltou-se para Abel. – E tu?

– Eu, meu Senhor, trago-vos o meu carneiro mais gordo; sinto que está muito magro para vós.

Jeová sentia muita amizade por aquele que fôra o traço da sua reconciliação com os homens: Não… É um belo animal! e sentando-se puxou o carneiro para si. Enquanto falava ia-o afagando e o bicho mais se sentia no céu que na terra.

– Vejo, Abel, que és deveras meu amigo… e começou a ele a discernir sobre os rebanhos.

Decepcionado Caim deixou cair o que trouxera. As frutas maduras feriram-se nas pedras. Jeová olhou, parou de falar e, conservando uma das mãos na cabeça do cordeiro que lhe afocinhava os dedos, perguntou: – Que tens?

Tudo o que em Caim fervia no peito e zunia nas orelhas convergiu para a boca mas de tudo isso só saiu:
– Senhor! Nem contemplais o que vos trago! Hoje, como sempre, é a meu irmão que preferis! E o que vos trago é melhor que o dele… As mãos descaíram pesadas de amargura – Nem uma palavra, nem um louvor, nada… Vós sois Deus, vós sois o Senhor… Mas não tendes razão… Desprezais-me sem motivo…

Duas lágrimas apareceram, hesitaram e baixaram depois ao longo das faces deixando dois sulcos de tristeza.

Abel olhava o irmão e talvez estivesse contente vendo-o definir a sua superioridade.

Jeová, mal o desabafo de Caim fraquejou, atirou-lhe com seu amor-próprio ferido e a sua superioridade:

– Invejoso imundo! Não posso preferir quem eu quiser? Tenho de lho pedir? Eu sou quem sou! Tu nem és o que és! O teu coração pesa-te porque está cheio de falsidade e veneno! Os teus olhos choram porque ardem no fogo da tua maldade! Vergas o corpo para o chão porque mãos de demónios estão já apoderando dele! A tua inveja levou-te ao desrespeito do teu Senhor e da amizade de teu irmão…

Abel intercedeu: – Não vos zangueis com Caim, meu Senhor! Comigo é que ele se feriu e eu não me zanguei! Deixai-o…

– Perdoo-te o interromperes o Senhor teu Deus. E a ti perdoo-te por teu irmao; afunda-te, se quiseres, em ti mesmo e na tua maldade… Quanto ao que me trouxeste não aceito coisas de quem não me quer e não me acata! O carneiro vais levá-lo, Abel, porque te faz falta…

E lançando um último olhar àquele que esmagara desapareceu sem ruído.

Caim enovelado no seu desgosto murmurava distraído:

– Deus não é justo! não é justo…

O irmão chamou-o: – Vamos embora…

Levantou a cabeça: – Anh!?!

– Vamos! O Senhor já partiu…

Caim pôs-se de pé, pisou as suas espigas espalhadas pelo chão e repetiu maquinalmente: – Vamos…

Começaram a andar.

– Deus perdoou-te, afinal… – disse Abel – Não penses mais nisso. Deus ainda é bom…

– Perdoou-me por ti! E não é bom! gritou Caim e as mãos vigorosamente impelidas bateram na cara do irmão.

Abel recuou desequilibrado no corpo e espantado na alma. Caim inclinou-se para lhe bater de novo mas Abel então segurou-o pelo peito e caíram os dois.

Rebolaram sobre as pedras ferindo-se, mordendo-se, arranhando-se e batendo-se furiosamente.

Num dado momento Abel ficou de cima, dominou Caim e apertou-lhe o pescoço. Caim retesou-se para lhe escapar mas bem depressa a cabeça descaiu para o lado.

Abel levantou-se ofegante e ficou um momento parado, húmido de suor, empastado de sangue próprio e do irmão, braços pendidos, joelhos curvados, a pele que o cobria toda rasgada, a orelha esquerda rasgada também. Estava na beira do abismo. Seguindo-o com a vista passou a mão pela testa e deixou-a cair de novo. O corpo doía-lhe todo. Lembrou-se que podia sentar-se a descansar e que podia voltar para casa; mas tudo levou tempo a coordenar, a aparecer e a suceder-se.

Absorto no próprio cansaço não viu Caim voltar a si, mexer-se, levantar-se cautelosamente. Não o sentiu aproximar-se de braços estendidos.

Caim concentrou a última vontade, firmou-se e empurrou o irmão.
Abel levantou os braços e com o tórax avançado, o corpo arqueado, a cabeça descaída para trás, os cabelos eriçados, tombou para diante. Da garganta saiu-lhe um grito estridente, despedida angustiosa da alma que sente ir ser obrigada a abandonar o corpo.

O fratricida ficou, com os braços meio estendidos, petrificado no espanto de si próprio. Aos seus olhos desvairados parecia que Abel rolava no mesmo sítio e era a penedia que deslizava vertiginosamente para ele. Uma pedra pontiaguda aproximou-se. O crânio de Abel chocou com ela e fustigou-a de sangue; o corpo hesitou um momento e depois continuou o caminho para a torrente onde caiu. As águas fizeram-no voltear e esbracejar, lamberam-lhe o sangue e levaram-no consigo.

Caim quando a cabeça do irmão se estilhaçou deu um grito violento que o arranhou e encheu de pavor. Caiu de joelhos e agachado, mãos enclavinhadas no chão, olhou o irmão que a água transportava por entre as pedras. Um recorte alcantilado que encobria a torrente escondeu-lhe Abel. Ficou com a vista pregada nesse ponto; depois do íntimo estendeu-se por todo ele uma mágoa imensa e abateu-se sobre as pedras, amarfanhado a chorar. Não saberia dizer o tempo que assim esteve. Em seguida, a pouco e pouco, acabaram-se as lágrimas e adormeceu. O carneiro que durante a luta se afastara, aproximou-se lentamente, parou a decidir-se e deitou-se ao pé.

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– Caim!… Caim!… Uma voz chamava-o simultaneamente perto e longe, não sabia se dentro, se fora dele.

Deitou-se de costas e abriu os olhos. Era Jeová. Levantou-se e encarou-o. O Senhor olhava-o fixamente. Então Caim perguntou enquanto uma desconfiança atemorizada o apresava:

– Que me quereis, Senhor?

– Caim! pausou Jeová. Onde está o teu irmão?

Inúmeras ideias e sentimentos se atropelaram em Caim mas duas superaram: ódio à hipocrisia que respondia à sua hipocrisia e desejo de a atacar:

– Tenho alguma coisa com ele? Alguém me encarregou de o guardar?

O semblante divino escureceu e com ele tornou-se agreste a tarde que nascia.

Caim! gritou o Senhor. Que fizeste ao teu irmão? O seu sangue escorre dos teus dedos! O seu sangue perseguir-te-á! Assassino! Serás sempre maldito e todas as gerações te chamarão de maldito! O céu e o inferno não te abrirão as suas portas E a terra inteira te será hostil porquanto com o sangue que derramaste cairá sobre a tua cabeça a minha maldição!

Ele ouviu indiferente, a cabeça descaída sobre o peito onde os braços cruzados sustinham o apressado coração; ouvia assim porque tudo lhe era indiferente, porque tudo o que o Senhor lhe dizia já as suas lágrimas lhe tinham gritado.

– Eu sei que tu mataste o teu irmão! Eu já sabia que o ias matar! acrescentou num assomo de vaidade divina.

Uma revolta enorme endireitou Caim.

– Se sabia porque deixou? Porque não se entrepôs? Não era tão amigo dele? Porque me deixou matá-lo?

Deus defendeu-se: – Quis ver até onde ia a tua sede de maldade! Até onde se estende todo esse amontoado infame que teus pais aprenderam e te transmitiram no sangue! Quis julgar o vosso bem e o vosso mal! Porque…

– Sacrificaste-nos a mim e a ele à tua curiosidade horrorosa! Eu nunca teria matado o meu irmão se não me tivesses provocado… Para julgar o bem e o mal! O bem e o mal!! Que sabes tu deles?! Nem sequer lambeste a árvore!! Qualquer animal sabe mais do que tu!! E o pouco que sabes aprendeste connosco! É por isso que nos espias e nos provocas! Mesmo sem saber tu foste mau! Não tens alma à força de a espalhares em todas as coisas! És ridículo! Nem sequer sabes o que fazes! Eu rio-me! Vês?! – gargalhadas acres arderam-lhe nos lábios – eu rio-me de ti!… Se somos maus a culpa é tua! Para que envenenaste um fruto proibido?… Tu nada sabes de nós! Por isso nos espias! És a suma sabedoria! Então para que nos espreitas? Devias ter vergonha de ti mesmo! Eu nem a tenho de ti! Para quê? Olha, o mal é também isto! – Arrancou a pele que o cobria e atirou-lha – Mas é também o bem! E por mais que espies a este bem ou mal nunca chegarás! O amor é só p’ra nós! P’ra ti é só o amor-piedade, o amor-protecção… És mau! Odeio-te! Odeio-te!! Hás-de vingar-te de mim, que eu sei!… Não o faças em meus pais… Peço-te… que não saibam nada… De resto para nos substituir terão em breve outro filho… Não sentirão a nossa ausência… Repara que se lhes disseres alguma coisa feres também a memória do teu preferido! É só o que te peço… Porque te odeio! Escusas de me fulminar com o teu olhar que não tenho medo! Não tenho medo de ti!! Perdi tudo… nada me podes tirar! Só me resta a vida… e essa… para que a quererias tu?!! Irei por esse mundo fora gritar o meu crime que é a tua baixeza até cair exausto seja onde for, aqui ou além, agora ou daqui a tempo… E morrerei então… Mas morrerei contente! Saciado! Porque todos os que passarem pelos meus ossos dirão – Este é Caim, a vítima de Deus…

Calou-se cansado enquanto as lágrimas lhe vinham molhar o sorriso amargo que se obstinava nos lábios…

Deus ouviu tudo, sofreu tudo em silêncio, absorto em beber e meditar as palavras de Caim. Quando ele terminou, disse suspirando:

– Não quero ver se tens razão… Não me quero julgar… Se vós por vezes não compreendeis a alma que vos dei, eu também por vezes sou vítima da incompreensão da minha… Mas quero castigar-te. Não cairás em qualquer canto. Viverás. Porque sentirás o remorso do que fazes e do que dizes! Remorso tão subtil que te atormentará mesmo quando tiveres razão… Não gritarás nada porque ele te há-de abafar os gritos. Verás que acima de tudo me hás-de respeitar e hás-de chamar por mim. A revolta, que lançarás no teu peito, dele não sairá e ainda que passe aos filhos dos teus filhos, aos netos dos teus netos, do peito deles não sairá também… Vou dar-te um mundo novo para viveres. Nele terás filhos e serás feliz. – uma ponte, obra de anjos, apareceu sobre o abismo – Vai! Atravessa o teu cúmplice. Perdoar-me-ás como eu te perdoo…

Caim respondeu então:

– Hipócrita! Não me compras com as tuas escorregadias palavras de perdão… Vou-me embora, sim! Pode ser que tenha filhos! Pode ser que seja feliz! Que te perdoe, que chame por ti! Mas não há-de ser onde tu quiseres! Vou-me embora, mas não pela tua ponte! Não quero nada do que te pertence, não aceito nada do que me ofereces! Vou para onde a minha vontade me levar! Ofereces-me um mundo novo! Tudo quanto quiser conquistarei! Vou com a minha vontade! Ela é mais forte do que tu!

E virando as costas encaminhou-se para jusante. Lembrou-se do irmão que as águas transportavam no mesmo sentido. Voltou para trás. Ao passar diante do Senhor, silencioso e quieto, arredou com o pé a pele que o cobrira e, passando adiante, começou a sumir-se na noite que se aproximava.

O cordeirinho de Abel assistira a tudo sem compreender. E agora via-se entre Deus imóvel e Caim que se afastava.

Escolheu um momento e por fim, balando e às corridinhas, seguiu Caim.

Deus ficou olhando a noite e a sua ponte que nela branquejava. Pensativo, fê-la desaparecer com um gesto. Risos subiram-lhe aos ouvidos. Olhou. Das frestas das pedras caras escarninhas de diabos mofavam dele. Mal disposto, lançou-lhes um olhar que os fez esconderem-se; depois chamou uma nuvem, sentou-se nela e voltou para o céu.
 

acab. de comp. 28/4/38
acab. de rever 4/5/38

 

* In: Génesis (2a.ed. Lisboa: Edições 70, 1986).