O “Ensaio de uma tipologia literária” foi escrito inicialmente em 1960, como ampliação de um curso que Jorge de Sena havia dado no ano anterior, poucos meses após chegar ao Brasil. Na época, o estudo teve uma circulação bastante restrita e, segundo o autor, provocou certo alvoroço no meio da crítica literária. De modo sucinto, podemos dizer que o “Ensaio…” procura resolver o problema da ambiguidade no vocabulário crítico, ou seja, certos termos são utilizados tanto como adjetivos a determinados autores e obras quanto para delimitar períodos e estilos. Sena então empreende um significativo esforço teórico e propõe 22 planos de análise, distribuídos em pares antitéticos, o que totaliza 44 possíveis atitudes e cerca de 4 milhões de combinações possíveis. Anos depois o autor acrescenta um apêndice ao “Ensaio…”, precisamente o que você lerá a seguir, no qual aplica os planos e as atitudes a um soneto camoniano, ilustrando um modo de se utilizar a sua tipologia. O ensaio mais o apêndice aparecem pela primeira vez em livro nas Dialécticas da literatura (1973), que ganham reedição ampliada em 1977, passando a ser Dialécticas teóricas da literatura.
Consideremos o soneto que começa “Erros meus, má fortuna, amor ardente”, muito conhecido e por certo um dos mais belos do poeta. Foi impresso pela primeira vez na Segunda Parte das Rimas, em 1616, cuja organização se deve a Domingos Fernandes.
Erros meus, má Fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a Fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso dos meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh quem tanto pudesse, que fartasse
este meu duro génio de vinganças![1]
É óbvio que, numa peça lírica e catorze versos, dificilmente serão observáveis os 22 planos de análise, com os seus correlatos pares de atitudes estéticas. Se, em composições mais amplas ou numa larga fracção da obra, Camões é daqueles grandes artistas que os satisfazem e excedem, alguns deles e dessas atitudes estarão, num soneto, por tal forma implícitos e recônditos, que a observação destas, sem recurso a minuciosas análises e a comparações com outras peças, não será possível por forma completa. qualquer escrito de um grande poeta, por mais limitado que seja no seu esquema formal ou na sua temática, reflectirá sem dúvida a ampla, coerente e profunda consciência do mundo, que, precisamente por sua intrínseca afinação rítmica, torna grande o poeta. Mas as destrinça exacta das diversas atitudes, nesse microcosmos do macrocosmos que o poeta é em relação a ele, é o que esse escrito, sendo breve, não poderá comportar sem extrapolações indevidas. E cumpre-nos, em qualquer análise de um texto, antes de mais, atermo-nos estritamente a ele. Comecemos por comentar estruturalmente o soneto, a fim de nos ficar patente como ele se constitui em sentido.
1 – Desenvolvimento
Partindo da trimembração expressa no 1º verso, o soneto compõe-se de três partes e um excurso final (sendo que a terceira parte reflecte a trimembração inicial). Na primeira, vs. 1-4, o poeta declara que os seus erros, a má Fortuna, o amor ardente (estes dois últimos não especificamente dele, mas entidades abstractas que se concretizam nos efeitos que ele sente e observa na sua vida), em sua perdição se conjuraram (ou seja, se combinaram, por coincidência ou voluntariamente, e já veremos como isto é adiante definido, para o destruírem); (porém) os erros e a Fortuna sobejaram (foram de sobejo no grupo congregado contra ele), (uma vez) que, para ele (ser destruído), bastava só o amor. Note-se desde já como a personalização intensa da reflexão que o soneto representa se concentra na insistência dos possessivos caracterizando o que é dele: “erros meus”, “minha perdição”, “meus anos”, “minhas mal fundadas esperanças”, “meu duro génio”, acompanhados de pronomes pessoais da 1ª pessoa – “para mim”, “me ensinaram”. O homem que ele era, erros que cometesse ou azares da Fortuna não seriam necessários para perdê-lo: bastava o amor. Curiosamente, as exigências métricas, obrigando a que, no 3º verso, os erros deixassem de ser declaradamente dele e a Fortuna de ser expressamente má, e, no 4º verso, ardente o amor (o que fica subentendido na repetição dos três termos), eleva-os a uma ordem mais genérica e abstracta, em que o poder dessas forças mais impende ameaçadoramente. Na segunda parte, vs. 5-8, o poeta declara que “tudo passou”, isto é, nada do que, segundo as três esferas da vida em que o soneto começou por conceituar-se, um homem pode sofrer, nada disso lhe foi poupado: sofreu as consequências dos seus erros (esfera da autonomia moral), as consequências da Fortuna (esfera do que escapa à autonomia moral), e os males do amor (esfera da própria essência da vida, para além da dialéctica do livre arbítrio, representada pela confrontação das outras duas). Mas tem tão presente (na consciência e na memória) a grande dor das cousas que passaram (note-se a subtil transferência de “passar” da ordem pessoal para a dos eventos de que a pessoa foi sujeito), que as “magoadas iras” (a violência dolorosa dos acontecimentos sentidos e recordados) lhe ensinaram a não querer (não desejar ou não aceitar) já nunca (acoplamento que coloca a eventualidade no presente contínuo aberto para o futuro) ser contente (isto é, ser um ser de contentamento, desejando o que a tripla regência da sua vida lhe não concede e o amor muito menos). À primeira vista, esta segunda parte parece ser um excurso lateral à trimembração fundamental das esferas definidas na primeira, e até porque, na terceira parte, o poeta vai reportar-se àquela trimembração do início. Dir-se-ia que o poeta deixou de meditar sobre aquelas três entidades, para meditar sobre as dores pessoais que elas lhe causaram, e sobre a experiência que assim adquiriu. Seria como se, desviando-se do fito lógico, ele se detivesse a considerar a sua situação pessoal, o estado de alma a que chegou. Mas nisso se perderia um poeta menor do que este. O “não querer já nunca ser contente”, expressão da experiência adquirida, foi-lhe ensinado pelas “magoadas iras” (note-se o oxímoro discretamente insinuando o carácter contraditório destas lições), e estas puderam ensinar-lho, porque “a grande dor das cousas que passaram” continua “tão presente”. A condição, portanto, de qualquer juízo moral concreto sobre a sua situação, entende o poeta que é decorrente de, pela grande dor que fica, “as cousas que passaram” continuarem “presentes”. Esta presença delas, transferida da sensibilidade moral para a consciência, consubstancia-se na extrema complexidade psico-moral de “não querer já nunca ser contente”, expressão que a dupla negativa torna ambígua a um ponto de tensão tal, que a paráfrase estrutural é quase impossível. Se o poeta aprendeu a, isso releva da consciência adquirida nos efeitos da interacção das três esferas fundamentais; mas esta consciência não se adquire na felicidade e sim na avaliação de que se errou, no reconhecimento de como se foi joguete dos fados, e nas frustrações do amor. Todavia, se ele aprendeu a “não querer já”, é porque a sua consciência (equacionada com o livre arbítrio consciente) se conceitua nos limites concretos de uma experiência vivida que a inteligência lúcida abstracciona para avaliá-la. Acontece porém que, ritmicamente, o acento do pé em eu se inclui já cai não nesta palavra mas em nun-ca. De modo que os limites concretos acima referidos apontam a experiência consciencializada como irreversível, o que é, sem dúvida, a própria condição contraditória da liberdade. Mas não querer já nunca – o quê? “Ser contente”. Isto é, ser algo que rima com ardente (qualidade do amor que bastaria a perdê-lo), com somente (a singularidade desse amor) e com presente (a actualidade da grande dor das cousas que passaram). Pelo que o contentamento possível que o poeta aprendeu a não visar é regido precisamente pelo amor que chegava para perdê-lo, e pela grande dor que permanece viva na sua consciência. E é isto o que lhe permite a reflexão sobre tudo o que o poeta passou (ou os acontecimentos passaram nele), por obra e graça daquelas três esferas em que uma visão da sua vida se conceituara. A reflexão é a terceira parte: vs. 9-12. Errou todo o discurso dos seus anos (toda a sequência de acções que compuseram a sua vida vista como uma estrutura completa até à hora do soneto); deu causa a que a Fortuna castigasse as suas mal fundadas esperanças; e de amor não viu senão breves enganos. Os erros, a Fortuna, e o amor verbalizaram-se e pessoalizaram-se nele, para que resulte claro como aos erros se opõe o discurso da vida (feito deles), à Fortuna o dar-se oportunidade a ela, e ao amor (ardente) breves enganos (isto é, breves contra a eternidade do Amor, enganos contra o ardente, ou, vice-versa, breves contra a ardência, enganos contra o Amor). Mas atentemos mais ainda. Que errou ele? O discurso dos seus anos. A Fortuna castigou-o sem razão? Não, ele deu causa. Do amor que sentiu? Nada, apenas “viu”. Isto significa, no desenvolvimento inexorável do soneto, que os “erros meus” só adquirem sentido no decorrer dos anos. Significa que a Fortuna teve ocasião porque as esperanças eram mal fundadas (isto é, eram excessivas, porque, por outro lado, na ardência do amor que bastaria para estas e mais perdições, o poeta sempre desejou e esperou mais do que fados consentem). E significa que o amor que o poeta conheceu de facto foi de momentâneas satisfações, ou de momentâneas ilusões, conquanto seja algo visível ao entendimento ulterior, pela mesma transcendência que ao amor o poeta atribui. Vem então a exclamação desesperada dos dois últimos versos. O poeta emite o desejo, no seu desamparo, na negação e negação de negação que verificou ser a sua vida (errada em seus actos, castigada pela Fortuna, enganada pelo amor), de que haja alguém, alguma cousa, que fartasse de vinganças este seu duro génio. Quem é este génio abruptamente surgido? Que vinganças são estas de que desejaria o poeta que alguém fartasse aquele? Muito curiosamente, as “vinganças” rimam com “esperanças” (tal como “anos” rimam com “enganos”, e “fartasse” com “castigasse”). A construção antitética é evidente: os “breves enganos” opõem-se ao “discurso dos seus anos”, o “fartasse” que é desejado ao “castigasse” que se verificou, e “vinganças” a “esperanças”. O duro génio, por cuja saciedade o poeta anseia, é a consubstanciação do seu destino, do seu dáimon pessoal. As acções deste “génio” maléfico (feito da tríplice acção das três esferas definidoras de uma vida em situação) não podem senão surgir como “vinganças” da vida contra si mesma, das três esferas contra a pessoa humana simbolizada no poeta, e da consciência mesma que o poeta adquiriu. A ambiguidade aparente de “de vinganças”, complemento de “fartar”, poder ter a sua função confundida com a de determinativo de “génio” mais intensifica o dramatismo crescente do soneto. Tudo se passa como se, no momento culminante da consciência que o próprio soneto materializa, a consciência lhe escapasse feita esse duro génio, contra o qual o poeta não vê remédio que não seja uma amplificação inaudita das suas torturas, tão inaudita que culminasse em saciar tal entidade. É como se não houvesse outra saída que não reincidir nos erros, desafiar a Fortuna, e cair em breves enganos de amor, ou recordar tudo isso tão fortemente, que a consciência infeliz se tornasse cega e muda, não por omissão, mas por excesso. Quem tanto pudesse… – e o remédio está para além das possibilidades humanas.[2]
2 – Análise rítmica
O soneto compõe-se de decassílabos que todos, à excepção do primeiro que é anapéstico, são quinários jâmbicos. Destes só quatro contêm, cada um, um pé trocaico, que abruptamente introduz uma inversão do ritmo: vs. 5, 12, 13, 14. Note-se esta concentração no terceto final, que corresponde ao corte da continuidade para vocalizar-se a exclamação apostrófica.
O ritmo anapéstico do 1º verso define expressamente a trimembração:
A este verso seguem-se três puramente jâmbicos, que constituem a primeira parte do soneto.
A segunda parte inicia-se por um troqueu (Tudo = /—), e os três versos restantes são tão jâmbicos como os da primeira parte.
A terceira parte é perfeitamente simétrica, porque toda ela jâmbica, termina no 12º verso por um troqueu em breves (/—), que introduz os troqueus seguintes: tanto, no 13º e este no 14º. Que os troqueus sejam tão simetricamente esse tudo que o poeta passou e os breves enganos que viu do amor, para depois serem o tanto de poder que se desejaria para saciar este génio, eis o que ritmicamente confirma a interpretação que viemos desenvolvendo, de uma dialéctica da destituição humana, para superação da qual – que é intrinsecamente um facto da consciência reflexiva – o poeta desejaria um antigénio capaz de opor-se ao duro génio que de vinganças nele não se farta.
3 – Análise tipológica
Após estas muito sucintas observações e comentários que de modo algum esgotam as possibilidades do soneto, vejamos o que nos indica a classificação tipológica. Pela ordem consignada no Ensaio, coloquemo-lo sucessivamente em cada um dos 22 planos de análise, que estabelecemos.
Situação ético-estética
Independentemente de quanto possa haver de tradicionalmente literário neste soneto de Camões (os tópicos da Fortuna, do contentamento desesperado, do breve engano do amor, da omnipotência deste para reger o destino humano, seculares, mas especificamente petrarquistas), e de a forma soneto se integrar numa tradição de epigramatismo conceptual (que, no século XVI, se espalhou triunfalmente por toda a Europa); e, se modernista é aquele que, para fins estéticos, põe em causa os dados da consciência, da sensibilidade e da cultura, o soneto é de um modernista. Com efeito, a visceralidade inteligente da meditação parte da trimembração inicial e dos desenvolvimentos tópicos que ela proporciona para, dentro da forma soneto, uma crítica da situação descrita. Esta descrição, por outro lado, não é feita como uma simples dedução demonstrativa do que o poeta já sabe, e representa, desde o início, todo um comprometimento da consciência reflexiva. Por isso mesmo não é academicista. O que, no caso de poetas antigos, anteriores ao Romantismo e ao Modernismo, há que considerar com o maior cuidado, já que era dentro das “tradições” culturais e formais que os experimentalismos se faziam, ou o personalismo se afirmava.
Situação ético-política
Seria extrapolar demasiadamente o correlacionar, no âmbito de um soneto que não trata expressamente de ideologias político-sociais, a atitude desta situação com as ideias político-sociais de Camões, criticadas em relação ao seu tempo (e só nesta relação é válido qualquer juízo de ordem político-social). Mas, na medida em que o poeta coloca a ênfase do balanço, a que procede, da sua vida, na insuperabilidade da própria condição como um dado da consciência, define-se como reaccionário, ainda que se deva entender que o é de maneira muito especial (que o seu tempo teria por subversiva), qual seja a absoluta interiorização de um destino que nenhuma luz da Graça ou da Fé tira do círculo infernal da sua mesma consciência (o que, noutros lugares, Camões contrabalançou com o seu neoplatonismo e uma religiosidade da visão interior, igualmente muito pouco reaccionária). E há que ter presente a reserva de ordem histórica, que nos aponta como o tempo de Camões perdia, angustiadamente, o sentido da iniciativa individual que, optimisticamente, a Renascença possuíra.
Emoção
Quanto à emoção, dinamicamente estruturada neste soneto e não considerada potencialmente na impressão que nos causam as obras do autor, e que vimos conceituar-se como clássica ou romântica, cumpre-nos reconhecer que, se clássico, quanto à emoção, é aquele que não a usa como intensificadora da sua visão do mundo, ou melhor, da sua concepção estética do mundo, mas sim como uma contenção dela, este soneto é de um clássico, para quem a emoção de que os outros são susceptíveis devesse ser a sua própria e não a que pretenda suscitar nesses outros. O carácter expositivo e reflexivo do soneto mostra que, a partir da trimembração inicial e sua subsequente caracterização, Camões não visa a transferir aos outros a emoção que lhe causou meditar sobre a sua vida; visa, pelo contrário, a mostrar que a exemplaridade do seu caso pessoal não é mais que a quintessência do que é comum à existência humana como ele a vê. A sua concepção estética do mundo não é intensificada pela emoção; pelo contrário, esta contém-na a tal ponto nos limites da razoabilidade universal, que o próprio poeta não suporta, ao fim, a contenção que o reduz excessivamente a uma entidade abstracta que, todavia, está a meditar sobre uma pessoalíssima e dolorosa vida, ao que se depreende. E todo o classicismo da emoção está em que apenas, ainda quão intensamente, depreendemos.
Correlação criadora
Se esta correlação se antitetiza na oposição subjectivo-objectivo, será evidente que este soneto é, sob esse aspecto, subjectivo, não, é claro, por tratar de um caso pessoal, ou ser confessional, mas por, nele, tudo ser reduzido a uma verificação da consciência.
Expressão
Este plano de análise foi definido no par antitético clássico-barroco, assim se destrinçando dois diversos níveis no conceito de “clássico”, em comparação com o plano da emoção. No “barroco”, dissemos, a formalidade das formas é orientada no sentido de fixar, nas convoluções das ideias e das imagens, todas as virtualidades harmónicas de uma célula expressional. Esta, no presente soneto, é sem dúvida a trimembração inicial. O “clássico” quanto à expressão, esse orientaria tal formalidade, pelo contrário, no sentido de limitar as virtualidades harmónicas exclusivamente às da célula proposta e tal como o é. Por dedutiva que, na aparência estrutural, seja a marcha do pensamento de Camões ao longo do soneto, ele não se limita a desenvolver rigorosamente as virtualidades culturalmente presentes na trimembração inicial que, por outro lado, o “barroco” amplia com rigor mecanicamente lógico. É na segunda parte do soneto que se opera a transformação barroca pela introdução do tema do descontentamento descontente, em correlação com a rememorada experiência. Aí, as virtualidade harmónicas da trimembração são re-trazidas à experiência em que se manifestaram, e à consciência que sopesou e sopesa essa manifestação, do mesmo passo que estas experiência e consciência são postas em referência com as entidades abstractas que resultaram delas. É uma marcha eminentemente indutiva, já que a exemplaridade do esquema trimembrado passa da experiência à consciência, e desta àquela, por uma reversão dialéctica. As três partes do soneto constroem-se numa perfeita semelhança geométrica. Nem um esquema será necessário para isso ser evidente. Mas tal semelhança vai-se transformando, de parte para parte, numa síntese que, retornando à trimembração, personaliza a impressão de conjura, em que os erros, a fortuna, e o amor parecem ao poeta ter-se mancomunado contra ele. Na primeira parte, os erros, a fortuna e o amor são entidades exteriores ao poeta – é uma primeira fase da tomada de consciência. Na segunda, os efeitos da conjura identificam-se com e na grande dor que subsiste, e a perdição torna-se, ao mesmo tempo, a presença dessa dor e a ciência da resignação contraditória. É a segunda fase da tomada de consciência, quando esta realiza que o tudo (de erros, fortuna, amor) que passou o poeta, fosse ou não fosse uma conjura, se cifra numa angústia moral em que a destituição se reconhece a si mesma como algo que se supera não se superando. Na terceira parte, os erros, a fortuna, o amor, passam a ser representados por verbos referidos à pessoa e à consciência do poeta, e esta, infeliz, rebela-se (e vem a apóstrofe final). A perdição, que foi afinal uma tão contraditória ciência de sofrer, só algo de equivalente ao duro génio pode combatê-la. Mas que e quem será equivalente a tal, senão o próprio génio feito consciência e extinção dela? O geometrismo, baseado nos paralelos binários de uma pluralidade tripartida, ascendeu de uma visão bipartida (em que o elemento trinitário é básico), ou seja a confrontação do poeta com o que se conjurou para perdê-lo, a uma visão unitária em que, todavia, a dialéctica persiste entre o génio que é o poeta enquanto consciência dos seus males e esse mesmo génio como a consciência que se anularia se… Será preciso mais para reconhecermos a natureza indutiva de uma expressão barroca?
Esta expressão barroca, tendendo à expansão dos possíveis, está em contradição com a emoção clássica que qualificámos, tendendo à contenção expressiva. A busca de uma coerência interna, que apontámos como característica da expressão barroca, coexiste com uma emoção que é usada para conter elegantemente uma concepção estética do mundo. Esta concepção, pois, comunica-se-nos simultaneamente por uma emoção que se quer discreta, e por uma expressão que passa da dedução (coerência externa) à indução (coerência interna). Daí um estado de contraditória tensão, cujo dramatismo é tanto mais sensível quanto a coerência se recusa às satisfações racionalistas, para desenvolver-se no geometrismo analógico. Tal estado de tensão define, em parte, o que chamámos maneirismo em Camões, e que é triplo nele: o que resulta da tradição de erotismo literário em que ele se integra, o que resulta da sua própria personalidade dialéctica, e o que resulta da época histórico-literária em que essas linhas puderam realizar-se, e a que ele pertence e de que é um dos mais altos expoentes.
Plano psico-epistemológico
Este plano de análise foi definido pelo par intelectualista-sensualista, conforme, na elaboração da actividade criadora, predomina a preferência pelos dados da inteligência aos dos sentidos. Não teria sido necessário analisar estruturalmente este soneto de Camões para reconhecermos que, nele, os dados dos sentidos foram inteiramente submetidos a uma transfiguração intelectual. “Tudo se passa” na consciência do poeta, no juízo da sua experiência. Psico-epistemologicamente, o conhecimento, para Camões, não se processa fora da inteligência, ainda quando dialecticamente a exceda. O intelectualismo dele é, em consciência estética, absoluto.
Erotismo
Não permite este soneto que concluamos por uma ardente sensualidade em Camões. A ardência do amor, assim especificamente caracterizado como instrumento de perdição, poderia, no entanto, sugerir-nos a sensualidade, já que o amor ardente é dado como susceptível de, por si só, sem erros pessoais e sem azares da fortuna, conduzir a vida do poeta ao desastre final. Note-se, todavia, que esta sensualidade, tal como aparecer, tanto pode ser exclusivamente mental, quanto possa ser desbragadamente física. O que, na análise, indicámos, ao referir que os breves enganos tanto podiam ser satisfações momentâneas quanto ilusões da imaginação apaixonada.
Imaginação
Destrinçada, como plano de análise tipológica, da representação funcional e da fantasia, vimos que a imaginação, nos seus tipos extremos, nos aparecia como realista ou onirista, conforme são os eventos exteriores ou interiores o que alimenta o poeta. À primeira vista, se tudo no soneto se passa na consciência dele, subjectivamente (quanto à correlação criadora) e intelectualisticamente (quanto à posição psico-epistemológica), parece que ninguém seria mais onirista de que Camões neste soneto. Mas isto seria persistir na confusão de planos. A racionalidade de Camões, ainda que superiormente dialéctica, não apela, neste soneto, para nada que releve do domínio do sonho (este domínio, pelo contrário, aparece frontalmente criticado, ainda que o poeta possa, na vida, ter-se abandonado a sonhar satisfações). Como este soneto evidencia, o lirismo camoniano é uma severa e implacável confrontação com o real. Se todo o real se torna, em Camões, subjectivo e intelectualizado, isso não significa que ele lhe substitua, enquanto poeta, os seus sonhos e ilusões, ou que estes se tornem critério de realidade, ou mais exatamente, meio de escapar-se a ela. Para Camões, precisamente por subjectivo e intelectualista, todo o real é externo à sua consciência, por susceptível de ser sempre, e em qualquer caso, objecto dela. Para ele, como mais tarde para Hegel, “todo o real é razoável, e todo o razoável é real”. E, se tudo é redutível à consciência em acto de conhecer-se, é porque a imaginação de Camões é, no mais alto grau, uma imaginação realista.
Representação funcional
O transcendentalismo simbolizante da linguagem de Camões, neste soneto, em que tópicos e lugares-comuns são chamados a significar para além de si mesmos, não oferece dúvidas. É claro que não se trata de apenas haver como que uma personificação da Fortuna, ou de aparecer um “génio” a personificar o destino do poeta. De resto, tecnicamente, isso seriam alegorias e não símbolos. Trata-se, sim, de que, à realidade descrita no soneto, é atribuída, por força da descrição mesma, um significado transcendente. Condensada nos catorze versos, a vida de Camões é chamada a simbolizar como qualquer estado de destituição humana, semelhante ao descrito, corresponde a uma situação de excepcional significação ética, pois que, nele, o homem conhece simultaneamente que a vida é, moralmente, de sua inteira responsabilidade, e que esta responsabilidade se refere, paradoxalmente, a algo que o excede. O homem reconhece, ainda, que está sozinho no mundo, e que, portanto, nada pode exprimir que não seja simbólico de uma situação que, por outro lado, é sempre exemplar. No plano da representação funcional, este soneto é, pois, eminentemente e intrinsecamente simbolista.
Fantasia
Afirmámos que a fantasia de Camões é abstraccionante, isto é, uma “inventiva que abstrai dos dados imediatos que estão na base da criação estética, ou, pelo contrário, procura organizá-los num todo que diríamos mais concreto que o concreto originário”. Em face do que temos vindo analisando, será desnecessário acumular demonstrações para concluirmos que a fantasia empregada neste soneto é e não pode senão ser abstraccionante.
Intelecção
Vimos que a intelecção, ou seja, o como a linguagem literária se desenvolve e significa os dados iniciais que é chamada a exprimir, se conceitua antiteticamente em discursiva e metafórica. Que a linguagem deste soneto é discursiva, isto é, opera não por translações de sentido, mas por sucessivas e progressivas identificações racionais, eis o que se nos afigura evidente. Camões, nele, recusa-se à metáfora. E a discursividade é tão ostensiva, que ele se dá, de parte para parte do soneto, a uma caracterização meditativa, cada vez mais minuciosa, da trimembração inicial. Estamos, portanto, perante uma intelecção discursiva.
Eloquência
Distinguimos “discursividade” e “eloquência”. E observámos que, antiteticamente, podíamos entender esta última como elíptica ou redundante. É muito difícil, num soneto, discernir o que é inerente à concisão epigramática dos catorze versos, e o que seja próprio de uma eloquência elíptica. Seria forçar as conclusões definirmos nele a eloquência como elíptica, quando, na verdade, os nexos lógicos não só não estão omitidos como o soneto deles se tece. No entanto, por certo que a escrita de Camões se reduz ao essencial, não usa de ornamentos ocasionais, e se insere rigorosamente numa linha cuja inteligência é subutilizada precisamente pelo que parece repetitivo e é uma transformação semântica de grau.
Correlação descritiva
Conforme a “observação” ou correlação descritiva metodologicamente visa aspectos existenciais ou essenciais da realidade, prefere uma observação imediata, global, ou uma observação que destaca o seu objecto, definimo-la como impressionista ou fenomenológica. Este soneto nada tem de impressionista, nem – como uma especial análise mostraria – a linguagem é nele usada nesse tom. Camões não visa impressões fugidias e momentâneas que lhe sejam causadas pela meditação sobre a sua vida. Camões não pretende descrever o comportamento do objecto dessa reflexão, que a sua vida é, mas caracterizar rigorosamente as eventualidades desse objecto de pensamento. A existencialidade profunda da sua meditação não lhe obnubila o desejo de ver a sua vida por todos os lados, de examiná-la de fora do contexto existencial. A sua busca não visa a exactidão do pormenor impressionista, mas o rigor da peculiaridade característica: é uma correlação descritiva fenomenológica.
Vivência ou posição ontológica
Quanto ao tipo de concepção que o poeta tem do seu lugar numa hierarquia dos seres, isto é, se se vê como mediador entre uma escala de entes superiores e o mundo (vivência transcendente), ou como hipóstase expressiva de uma racionalidade superestrutural (vivência imanente), que nos dirá este soneto?
É nele muito delicada e fina a dialéctica entre as acções agenciadas exteriormente, e enquanto apreendidas como fixações da consciência. Por exemplo, os “erros” começam, ainda que “meus”, por serem como que entidades exteriores ao poeta que os considera e observa, para serem depois a própria acção responsável do poeta: “errei”. Mas o poeta, como vida vivida que é, não se vê a si mesmo como uma hipóstase não referível a nada que não ele mesmo. Se assim se visse, não teria sentido ou reconhecido que a sua vida se conceituasse como algo que o excede, e sim como algo que ele próprio excederia. Que ele é, enquanto poeta, mediador entre duas ordens de seres (ou duas ordens de entidades da consciência), eis o que é denunciado pela dialéctica de um desastre moral que o livre arbítrio não pôde evitar, e o efeito sobejo do que seria bastante para limitá-lo. A vivência expressa, ainda que as implicações metafísicas do soneto sejam restritas, é transcendente.
Cumpre notar que, sob muitos aspectos da sua obra, Camões tem uma visão existencial da vida. Como, assim sendo, nos aparece como quem se vê mediador e não hipóstase, já que uma atitude existencial é a imanência mesma? É este um dos fascinantes paradoxos da personalidade poética de Camões, e podemos iluminá-lo pela análise tipológica, depois de havermos observado os planos seguintes.
Vidência ou posição axiológica
Escrevemos que, segundo o valor relativo do “eu” e do “cosmos”, no convencionalismo individual da criação estética, assim teríamos egovidência ou cosmovidência. O senso de uma globalidade cósmica em que o “eu” se insere, ou que no “eu” é inserida, e não propriamente, ou não necessariamente, uma clara e definida visão filosófica do cosmos e da relação do homem com ele, é o que preside a este plano axiológico. Se a egovidência é assim uma visão do cosmos em que o “eu” convencional da criação estética é centro do universo que em torno dele se ordena cingindo-o, como dissemos, este soneto que analisamos é clamorosamente egovidente. Tudo em Camões é referido à sua personalidade estética que, mesmo na mais amarga destituição moral, não abdica do privilégio de ver o cosmos concitado para cingi-lo e perdê-lo. O seu “eu” poético, a sua consciência de estar no mundo em termos estéticos, é, para ele, a medida última de todas as coisas.
De que o “eu” camoniano assuma uma tal posição egovidente, quando ontologicamente a sua vivência é transcendente, dissemos que implica um dualismo metafísico. Ainda que não tivéssemos, no soneto, observado as posições ontológica e axiológica do poeta, um dualismo intrínseco ressaltaria da própria dialéctica de um poema que opõe, a cada passo, os actos em si e os actos como consciência moral, conceituando, pois, o problema do Mal em termos dualísticos. Mas ocorre perguntar: se dualisticamente conceitua Camões, por força da sua ontologia e da sua axiologia estéticas, o sentido da vida humana, como temos insistido tanto na sua dialéctica que, parece, implicaria uma concepção triádica e, consequentemente, uma vivência cósmica e não egotística, e uma vivência imanente, e não transcendente? O triadismo, de tão grande fortuna em religiões, resulta da contradição entre uma visão do mundo, centrada no cosmos, e uma concepção do homem como hipóstase de si mesmo. Nem outro sentido filosófico pode ter o dogma da Encarnação, que precisamente fornece o terceiro termo, suposto redentor do Mal. Mal o triadismo não é a dialéctica, e sim a imobilização, a cristalização dela. E o que torna tão dramática a dialéctica de Camões é precisamente a contradição entre a sua consciência dualista e a sociedade triádica em que essa consciência vive. Egovidente num mundo cosmovidente, e transcendentalista num mundo que postula a imanência constante da encarnação divina, o seu dualismo tende constantemente para uma cristalização aceite da progressão dialéctica, como é tão patente no final das sublimes redondilhas de Sobre os rios. A polémica anti-idealista do materialismo moderno tem feito esquecer ou omitir que a consciência dialéctica postula uma vivência transcendente, em que o homem é mediador entre a realidade e o conhecimento dela, que a transforma. É essa capacidade mediadora que permite ao homem a mutação qualitativa do mal, como Camões, neste soneto, e em fórmulas necessariamente datadas, tão comoventemente exprime.
Plano lógico
O entendimento lógico do universo, que acaso este soneto contenha, como se conceituará? Uma logicidade em que predomina “uma visão do mundo como mecanicamente estruturado, com um carácter de causalidade fisicalista em que o livre arbítrio é apenas um epifenômeno” (mecanicismo), ou “uma visão em que a vida impõe ao universo uma liberdade sucessivamente conquistada” (vitalismo)? É temerário, ainda que a logicidade estética de um grande espírito deva estar em tudo o que ele realiza, pretender que ela possa transparecer decisivamente neste soneto. Que o livre arbítrio não ocorre nele, todavia, como epifenômeno de um universo mecanicamente estruturado, apesar da importância que, no fim, é atribuída ao “duro génio”, está patente na terça parte de responsabilidade, que cabe aos “erros” individuais do poeta. O vitalismo lógico, embora condicionado por uma situação temporal peculiar à época maneirista em que viveu Camões, em que a liberdade individual vai fundir-se na hierarquia física do universo e na hierarquia político-social da sociedade, luta, apesar de tudo, no soneto, por manter-se desesperadamente autónomo. E o recurso “in extremis”, pelo qual é desejado que os males se excedam e na quantificação se anulem em paz de espírito, é precisamente um apelo vitalista contra a ordem mecânica que ameaça o poeta de esmagá-lo, até porque os “erros” tendem, numa tal ordem, a classificar-se como efeitos de um ordenado desconcerto do mundo.
Tendo observado, além de uma egovidência e de uma vivência transcendente, uma logicidade vitalista, podemos agora responder à pergunta sobre o existencialismo camoniano, se nos recordarmos de que encontramos também na correlação descritiva fenomenológica. Para quem se vê eixo do mundo em termos de expressão poética, vê a vida como soberana, atribui sentido sempre superador à própria essência ontológica, e, todavia, considera que nada se descreve senão em si e por si, o resultado será, obviamente, a consideração de uma situação existencial para a consciência de “estar-se no mundo”, uma vez que a liberdade se conceituará inteiramente na margem que resulta da própria consciência de existir-se, esta resultando das acções responsáveis (erros ou não-erros, conforme o resultado final que é sempre “erro”, por definição, para quem vive nas contradições acima descritas). Um vitalismo egocentrado ou vice-versa, e aplicado a ver-se como uma essência isolada e objecto da consciência, que, esta essência, é feita de superação infinita em que a liberdade é a própria fuga de ser-se livre, é o que define, por certo, uma atitude existencial, tão patente na atmosfera do soneto, tal como o desenvolvimento dele a cria.
Sageza
Dissemos que os planos ontológico, axiológico, e lógico, sugerem um outro, escatológico, em que a acumulação de sabedoria gerada pela actividade estética (sabedoria que é uma dialéctica entre o que se sente e pensa e a expressão sucessivamente adquirida) se transforma, não em “ciência” (ainda eu possa ser “técnica”) mas em sageza, cultura em sentido lato, experiência ética (e não moralista). Nada há, segundo antiteticamente caracterizámos este outro plano, de optimismo aquisitivo neste soneto. A abnegação, que postulámos como característica da oposta sageza de salvação, é nele absoluta e total. O poeta não se contenta com os resultados utilitaristas do saber que adquiriu e de que o soneto é declaração, mas, pelo contrário, joga o poema na investigação de uma sageza de salvação última. A dolorosa exclamação final significa um anseio, uma exigência, uma angústia lúcida, reclamando que o exame de consciência, a que o soneto precedeu, culmine numa libertação que torne insignificativos o errado discurso da vida do poeta, os castigos da Fortuna, os breves enganos do amor, pela atribuição a tudo isso de uma significação superior. Mas o poeta sabe, e a exclamação apostrófica o diz, que tal superação jamais se atinge, na medida em que o atingi-la postulará um novo estado da consciência moral, em que novos erros serão considerados como tal, novos ataques da Fortuna serão identificados, e novos enganos breves do amor (ainda que sejam antigos, rememorados e novamente julgados pela consciência) serão revelados tais. Numa sageza aquisitiva, tão tipicamente manifestada por um Antero, quando afirmava que o desengano e a dor não haviam sido demais para ele chegar à visão do amor, a experiência contenta-se ou finge contentar-se com os seus próprios frutos. Numa sageza de salvação, a experiência exige que esses frutos se tornem insignificativos, em favor de uma significação maior, que, no caso deste soneto, não é, de modo algum, a visão do Amor, já que Camões disse tê-la desde o início. Ou não o é apenas, porque a salvação implica uma visão do amor, que não é um resultado, mas uma condição sine qua non de toda e qualquer experiência para ele (“para mim bastava amor somente”). Sublinhe-se que a salvação não é, m termos de sageza, o chegar-se a um seguro porto necessariamente e suficientemente, mas a exigência de que todo o saber moral adquirido se cifre na própria aquisição dele. Isto não tem, em princípio, que ver com religião nenhuma, embora os dogmas e as crenças de uma religião possam ser usados ou aceites para limitar a infinita e agónica aquisição de uma sageza de salvação, que não salva de nada. Tais princípios de religião estão, neste soneto, totalmente ausentes, como o estão na esmagadora maioria da lírica camoniana.
Correlação mítica
“A relação consciente (ou não) com a actividade mítica do inconsciente colectivo”, que, mais que uma definição religiosa, importa na criação estética, este soneto não a aflora diretamente. Mas, se não podemos por ele afirmar que a correlação mítica de Camões é mitogénica, a verdade é que todo ele aponta para uma atitude que não é de cepticismo, uma vez que Camões coloca na consciência positiva da “grande dor das cousas que passaram”, o fulcro das suas possibilidades de entendimento estético da vida, integrando-se assim numa correlação mítica que, se não está recorrendo às pseudomorfoses mitogénicas, não menos postula uma ambígua fé nas virtualidades expiatórias da vida humana. Repare-se, porém, que não é o facto de Camões atribuir poderes e entidade especiais à Fortuna, velho tópico mítico, o que automaticamente pode ajudar-nos a reconhecer o seu tipo de correlação mítica, aqui. A Fortuna, como acentuámos, não aparece como mais que uma alegoria do que escapa à esfera da liberdade, como à do que não é regido pelo amor que dirige os movimentos do universo e da consciência. Significaria mais, se aparecesse (como aparece em Os Lusíadas) equacionada com uma crença intelectual nos deuses (ainda que estes sejam agentes da divindade ou do princípio divino).
Sensibilidade
Que a sensibilidade camoniana, neste soneto, dissocia as hamónicas da sua reação estética ao estímulo que a trimembração inicial representou, e que, portanto, se preocupa mais com a diferenciação gradual que com a impressão totalizante que ela lhe causou, por certo que todo o soneto o demonstra e o mais que temos vindo dizendo. Não é por na segunda parte o poeta falar da “grande dor”, das “magoadas iras”, de “não querer já nunca ser contente”, que ficamos autorizados a concluir pela acuidade diferencial da sua sensibilidade estética. Nem porque o seu intelectualismo e a sua fantasia abstraccionante, e o seu descritivismo fenomenológico, subtilizem tudo a que se apliquem. Mas porque o que importa a Camões, aquilo a que evidentemente ele é mais sensível, é não ao mínimo valor do estímulo, mas a mínimo valor diferencial na variação dele. O soneto é precisamente um inquérito às variações ético-psicológicas do estímulo inicial, expostas na progressão que apontámos de parte para parte, com as suas transformações de função gramatical para as diversas entidades inicialmente enumeradas. Por isso é que podemos concluir, nele, por uma sensibilidade diferencial.
Vontade criadora
Sem que este plano queira significar que a obra de arte é inteiramente voluntária, quis-se por ele caracterizar a que ponto a criação estética depende, enquanto tal, de uma clara consciência vocacional que se autodefine tanto como técnica adquirida quanto como personalidade assumida. Se há poesia em que uma ideia de vocação seja indissolúvel de toda uma experiência de vida, por certo que é a de Camões. Mas, neste soneto a que nos limitamos, isso só poderá depreender-se, muito indirectamente, do facto de o poeta nele se dedicar à meditação do seu próprio destino, traduzindo-o em termos estritos de consciência sua. O soneto não declara expressamente (como tantos outros passos de Camões) que o poeta é, e não poderá deixar de ser, o poeta que é. Mas não deixa de subentender a existência de uma vocação consciente, que conscientemente se exerce.
Visão
Observámos que uma vidência qualquer não implica necessariamente uma visão complexa. Daqui a conveniência de considerar-se um outro plano de análise que permita a caracterização da natureza primária e simplista, ou pelo contrário complexa, de uma visão pela qual a personalidade do poeta “intui da multiplicidade de relações entre si própria e tudo o mais, como também em si própria, e na estrutura de tudo o que a rodeia”. E acrescentámos que “essa mesma multiplicidade intuída e o carácter relativo, probabilístico, do que apreende, uma e outro sustentam a mais alta visão que será a ironia”. Neste soneto, ainda que nele pressintamos, pelas variações semânticas e estruturais, quanto a visão de Camões será complexa, por certo acontece que mais transparece nele uma ironia trágica do que a visão complexa de que esta ironia é a mais acabada forma. Com efeito, todo o desenvolvimento do soneto culmina na apóstrofe final que é, por certo, uma trágica ironia mais acentuada pelo carácter apostrófico.
Tonalidade
A força, a veemência, a energia do tom – que tantas vezes são confundidas pela crítica com uma linguagem desordenada e teatralizante, de que estão quase sempre ausentes – são patentes neste soneto. Não porque ele seja, como é, um monólogo vincadamente personalista; mas porque, apesar da dolorosa surdina das suas cadências rítmicas, as acentuações marcam, verso a verso, uma intensidade que nada tem de displicente, e que atinge a ferocidade do fogo frio da meditação meticulosa, tão desvairadamente apaixonada, que só a serenidade aparente da dicção é capaz de traduzi-la.
4 – Conclusão
De um estudo do desenvolvimento do soneto, e de algumas características rítmicas e de rima, muito sucinto, apenas como base para a exemplificação, passámos à rápida análise segundo os 22 planos de classificação tipológica que havíamos estabelecido, assim justificando e exemplificando o que, no texto do Ensaio, tínhamos dito acerca de Camões. Se a ele usámos foi, obviamente, porque ninguém na literatura portuguesa oferece maiores possibilidades de grande arte e de fascinante e complicada personalidade poética. As classificações a que chegámos, só análises mais amplas e minuciosas poderão, por quaisquer métodos, conforme o plano de que se trate, confirmá-las ou corrigi-las. Num e noutro caso, o interesse e a importância destas discriminações de planos de análise será mais comprovada e aplicada, contribuindo-se para sair-se da confusão terminológica em que a crítica está presa.
NOTAS
1 Seguimos a lição de Rodrigues Lapa, em Luís de Camões – Líricas, sel., pref. e notas de …., 2ª edição correcta e aumentada, Lisboa, 1945. Cortejámo-la, porém, pela edição de 1669 da Segunda Parte, e por isso as duas primeiras ocorrências de “fortuna” vão com maiúscula e a ocorrência de “génio” com minúscula. Os nossos estudos sobre o vocabulário de Os Lusíadas e a comparação de edições e manuscritos levaram-nos a considerar com extremo cuidado questão tão mínima na aparência, porquanto Camões tendia a escrever com maiúscula certas palavras, e os censores a cortar-lhe a ênfase em vocábulos que cheirassem a paganismo e outras coisas suspeitas como a crença em fortunas e fados.
2 Note-se que a tríade sob cuja égide Camões se coloca neste soneto pode ser entendida no sentido em que Maquiavel estabelece a sua clássica, em O Príncipe. Virtú (e é o sentido de Camões para “virtude” em Os Lusíadas; cf. os nossos “Camões: quelques vues nouvelles sur son épopée e sa pensée”, em Visages de Luís de Camões, Paris, 1972, e “Camões: novas observações acerca da sua epopeia e do seu pensamento”, nº especial, dedicado ao Simpósio Camoniano de Connecticut, de Ocidente, Novembro de 1972) corresponderá a “amor”, se fortuna é ela mesma, e se “erros meus” está por necessità (o grau de reconhecimento da adequação da acção pessoal com a sequência dos acontecimentos).
REFERÊNCIA
SENA, Jorge de. Dialécticas da literatura. Lisboa: Edições 70, 1973. p. 67-96