As 4 cartas inéditas a seguir transcritas — reunindo como interlocutores Jorge de Sena, Luciana Stegagno Picchio e Carlo Vittorio Cattaneo (este apenas como destinatário) — formam um conjunto homogêneo que tem como elo o primeiro trabalho acadêmico sobre a obra seniana: Una poesia di Jorge de Sena: Studio di strutture, tese de licenciatura defendida em 1970 por Cattaneo, poeta e futuro tradutor de Sena, na Università degli Studi di Roma, sob orientação de Luciana.
Escritas entre fevereiro de 1970 e fevereiro de 1971, revelam-nos, da parte de Sena, dados sobre os últimos tempos que passou no Wisconsin e os primeiros que passou na Califórnia, sua intensa e constante produção, seus projetos, seus problemas de saúde, seu modo de ler, atento e minucioso, do referido ensaio de Cattaneo, centrado no poema "Imenso de searas…", de Pedra Filosofal; da parte de Luciana, também há problemas de saúde a superar, pesado trabalho acadêmico e burocrático a conduzir, questões internas na sua universidade a contornar, mas, sobretudo, a ânsia de muito mais vir a fazer, inclusive com a colaboração do bom amigo Sena — o que os anos seguintes confirmarão.
Luciana e Jorge conheceram-se pessoalmente em agosto de 1959, no famoso IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, promovido pela Universidade da Bahia, e desde então tornaram-se amigos. Dez anos depois, Sena divide com Luiz Francisco Rebello as badanas da edição portuguesa da pioneira História do Teatro Português, assinada por Luciana e editada pela Portugália. Além de manter o carteio, Sena não deixava de visitar o casal Picchio em suas viagens à Europa, estreitando o fértil diálogo intelectual. Em 1976, é Luciana quem se desloca a Santa Barbara para um ciclo de conferências, a convite de Sena. Pela mesma altura, Luciana integra o grupo de amigos italianos que propõe Sena ao Prêmio de Poesia Etna-Taormina, a ele atribuído em 1977. Após o prematuro falecimento deste, aceitando convites de Maria de Lourdes Belchior, será ela Visiting Professor em Santa Barbara, em períodos de 1980, 1981 e 1983. Em memória do amigo, deve-se a Luciana a organização do primoroso número dos Quaderni Portoghesi dedicado a Sena, datado de 1983. E assina ainda uma pouco falada coletânea de poemas, que ela própria escreveu em cenário californiano, evocando o amigo que partira — La Terra dei Lotofagi – poesie con note (Milão, All'insegna del pesce d'oro,1993).
A correspondência abaixo, verdadeira prenda a nossos leitores, deve-se à generosa atenção de João Nuno Alçada, que a "descobriu", e à família de Luciana Stegagno Picchio, que, muito gentilmente, autorizou sua reprodução, bem como à consabida aquiescência de Mécia. A todos, imensamente agradecemos.
Madison, 8 de Fevereiro de 1970
Caríssima Luciana
Nao respondi logo à sua carta, porque o trabalho tem sido muitíssimo, as arrelias algumas, e a saúde pouca (em verdade, a um ano de diferença de ter sido em Lisboa operado das pedras da vesícula, acabo de descobrir-me uma incipiente e prometedora úlcera no estômago, após longas suspeitas minhas de que o meu mal-estar era excessivo para só adaptação a condições normais – pelo que eis-me de volta a dieta ainda mais rigorosa e selecta que a que tinha antes..»). Mas respondi, entretanto recebida, à carta do seu aluno Carlo Cattaneo, acerca de uma possível tese a meu respeito (mais exactamente, da minha poesia). Nela fiz algumas observações, e manifestei o meu evidente agrado (não se pode ser indiferente a estas coisas). O que, se a carta chegou, por certo V. terá visto. A V., porém, é que me cabe agradecer a ideia – e gratamente lha agradeço.
Desde que vim da Europa que a minha vida tem sido um inferno de trabalho, e também de algumas daquelas pequenas arrelias de que V. teve longa experiencia universitária. Embora seja catedrático do Departamento de Espanhol e Português, os estudos de Português continuam a ser um pequeno clube dos fundadores, que tudo fazem e dispõem como lhes apraz – e os meus antecessores ou estavam de visita e não se ralavam, ou não estavam, e aguentaram menos tempo do que eu (vai para cinco anos já que aqui estamos). A gente de Espanhol, muita da qual é ciente da situação, ou alinha com o chefe de departamento que é um modelo de jesuitíca doçura e paternalística ditadura, ou fica à espera que eu ponha a mão no fogo por conta das retaliações entre eles todos… O que evidentemente nao farei. Estou decidido a ir-me embora daqui. Tenho em vista uma oferta da Califórnia (melhor clima mas mais longe ainda da Europa), e concorri documentalmente à vaga da cátedra de Português em Amsterdam, anunciada urbi et orbi. Não sei se terei alguma possibilidade. Devo dizer-lhe que, entre os nomes que citei como comprovantes possíveis de quem sou, dei o seu, e peço-lhe desculpa de nao ter havido tempo para pedir-lhe a licença prévia que se devia.
Nao cheguei a voltar ao Leste americano, desde que cheguei da Europa há quase um ano. Apenas fui a três lugares aonde tinha de dar conferências, e eram para o outro lado (St.Louis, Denver, e New Orleans). Mas, indo para aquelas bandas, não deixarei de visitar o seu irmão. Diga-lhe que, aqui, fui nomeado catedrático da Literatura Comparada, para dar (a partir do próximo ano, se cá estiver…) um curso sobre Maneirismo e Barroco.
Peregrinatio tem posto em aflições os críticos portugueses, que agora estão em maré de considerar-me génio, mas não conseguem perceber porquê, e muito menos naquele livro. Estão para sair o 3o volume camoniano, e o das traduções de Cavafy, em que tenho trabalhado intermitentemente desde 1953. Está também para sair o das minhas traduções desde Arquíloco até ao fim do século XIX, uma montanha de mais de 60 poetas e cerca de 200 poemas, em que a Itália ocupa lugar largo. Seguir-se-á o da poesia moderna de várias partes, que sempre também largamente traduzi.
Recomende-me a Seu Marido, e ao Tavani (cujo repertório da métrica medieval nunca recebi). Como ficou, se já está definitivamente, resolvida a vossa situação catedrática? Se eu fôr para Amsterdam, faremos um eixo com Roma…
As mais afectuosas lembranças e um abraço muito amigo do sempre seu
Jorge de Sena
Santa Barbara, 5 de Janeiro de 1971
Exmo Senhor
Dr. Carlo Vittorio Cattaneo
Meu caro Amigo
Os melhores augúrios para 1971, trouxe-me ontem o correio, com a sua tese que muitíssimo e reconhecidamente lhe agradeço por duas razões principais: havê-la feito, e por ser excelente. Por ela — e não por mim — lhe dou os parabéns (extensivos também à Professora Luciana Stegagno Picchio, minha boa Amiga). Não creio sinceramente que, em vida minha, fàcilmente eu veja repetir-se o seu feito de analisar tão cuidadosamente, e com tanta inteligência, um poema meu: a crítica portuguesa nao se dá a esses trabalhos de rigor, não sou grata figura das universidades aonde tais coisas lá se poderiam fazer (e não fazem), e o resto dos lusófilos está à espera de que eu morra… para continuar a ocupar-se da mediocridade lusitana à escala deles. E, nas Américas, não sou suficientemente brasileiro para interessar os meus ilustres colegas que aliás evitam poesia como o diabo a cruz. Ontem mesmo estive a ler com a maior atenção o seu estudo, e cuido de escrever-lhe já hoje – sem deixar amadurecer um pouco mais as minhas ideias — , para que as aulas do novo trimestre, que amanhã começam, me não protelem o agradecimento e o comentário que me cumpre fazer.
Houve tempo em que gostei desse poema que, depois, por comparação com outros ulteriores, passei a achar um pouco tosco e imaturo – razão pela qual, ao saber da selecção, me lembro de haver dito que outros poderiam ser mais fecundos para a análise. A sua análise, porém, mostrou-me que ele é muito mais "sólido" de estrutura do que eu havia pensado sem demorar-me em observá-lo — e o modo seguro como o decompõe não é dos menores méritos do seu estudo. As simetrias, os paralelismos, as recorrências, foram admiravelmente postas em relevo, e não poderiam tê-lo sido melhor. Por outro lado, a forma como o método foi aplicado, gradativamente, permite uma integração sucessiva dos círculos de significação, em que melhor ressaltam, ampliadas ou modificadas, as ressonâncias semânticas. Tudo isto lhe digo, para mostrar-lhe como apreciei o método e a sua aplicação, e como considerei excepcional a qualidade da análise. Posto isto, tenho discrepâncias de pormenor, que quero comunicar-lhe, não para diminuir o seu trabalho, mas para contribuir, se posso, para a exactidão dele. Note que eu, se disse que não sei o que os versos dizem de mim, não disse que não sabia, o que não dizem…
Vamos por partes. Compreendi perfeitamente a intenção e o alcance dos capítulos introdutórios, subordinados ao fim de explicar de quem se tratava: e mesmo me pareceu que vão bem mais longe do que essa mera limitação com que os define na sua carta. A tradução é excelente. Apenas nela creio que há um pequeno lapso: no v. 45 traduziu V. tremeluz por tremola. Tratava-se do verbo tremeluzir, que raramente se conjuga (= brilhar com luz trémula, e não apenas "tremer"), e de que em geral só se usa, além do infinitivo, o p. presente tremeluzindo. Parece-me que essa luz trémula posta na garganta fez falta para enriquecer a sua interpretação. Depois, até à p. 92, não tenho senão louvores a dar pela subtileza de tudo. Na p. 92, creio que a "vida inteira", no contexto, não é a "vita stessa del poeta", mas, como habitualmente significa,"a humanidade como ser vivente". Daí que se faça a transição para o que, na humanidade, limita essa humanidade: a teimosia, a vacuidade honesta, etc. E creio que é, neste ponto, que nos separamos. Verá porquê. A p.103,
fala V. de "disgustosa immoralitá". Não há tal. O que o poema pretende condenar é que existam todos os constrangimentos de uma moralidade normativa que me desgosta. O que ninguém ousou dizer é que não há que dizer senão o uivo animal (comento a p.8). Parece-me muito boa a aproximaçao de marmóreo do v. 35 e dos deuses do v. 39. Mas, naquele verso, creio que existe uma específica progressão de lunar, que paraleliza o "desolado" do v. 31, para marmóreo (figura sem vida, estátua, e, irònicamente, evocação de um epíteto muito comum para as formas à luz da lua), logo cortada mas ampliada pelo "prosaico" pardacento (que é a cor de uma paisagem lunar), deste para infausto (transformando em "aziago", "infeliz", o colorido triste de "pardacento") e para humano – o céu humano, infausto, pardacento, marmóreo (= pétreo), lunar, que esmaga o uivo desolado do animal preso. Assim, se o final de p. 30 e a p. 31 merecem a minha absoluta concordância, o mesmo não sucede com o parágrafo que começa "C'è la convinzione…" (p. 128). É assim que também não posso concordar com 3.7 (p. 136-39). Os deuses e as vestais são usados satiricamente, à luz do que imediatamente os precede — e por isso, considerando o que fica dito, creio que reconhecerá que o achou estranho por tê-lo tomado a sério. "Vestal", em português, num contexto de sugestão sexual, é já por si termo irónico. Se eles e elas (ou eles, e eles em sentido genérico, já que "vestais", ironicamente, se usa para os dois sexos), os símbolos da pureza e do angelismo e os que pretendem imitá-los na vida, "gritam de horror", numa falsa pudicicia, note que o fazem com o sexo a humedecer-se – com o que rigorosamente eu não quiz sugerir polução ou ejaculação, mas a ironia de se horrorizarem (fingindo), quando precisamente o sexo se lhes humedece (e não "inunda") daquela humidade que a excitação ou atracção sexual faz que o sexo se humedeça… apenas em preparação premonitória. Não é, pois, possível que os deuses sejam a poesia e as vestais o poeta. Trata-se de uma crítica da hipocrisia sexual, e não da possibilidade ou impossibilidade de comunicação. Daqui resulta que as palavras foram criadas para prender o homem, e nao para libertá-lo, a menos que a poesia as refaça inteiramente para dizer do uivo último.
Suponho que, se aceitar a razoabilidade destas minhas sugestões, a parte 4, sobre os vs. 43—56, que é excelente, encontrará ainda maior possibilidade de análise, para além da admirável qualidade em que se coloca. Porque não é o artista quem é esmagado pelo bicho, mas o poeta convencional que ao bicho e ao seu uivo se recuse.
Como lhe disse, tudo isto lhe digo pelo enorme e grato interesse que a sua tese me suscitou, e pela alta qualidade da análise do meu poema. Se quizer: a sua análise foi que me deu asas para discordar aonde me parece que se não trata de divergência, mas quiçá da circunstância de a imagem dos vermes e das sugestões de animalidade o terem focalmente atraido. E isso pode ser deficiência do poema, dado o meu gosto de certa ambiguidade e de imagens violentas que se sobrelevam quiçá demasiadamente. Os vermes rolando-se animalmente sao uma imagem dura, acrescentada pelo "lixo podre". É uma ambiguidade – todos nós, por repressão civilizacional, recuamos ante a sujidade animal, mas todos nós somos isso mesmo, quer gostemos ou não, e não há razão para não aceitar que isso nao é agradável nem desagradável. Além do mais, o "lixo " é uma criação da civilização (que quanto mais desenvolvida mais lixo faz) – de modo que, se ele é podre, apodreceu das repressões civilizacionais. Não pense que escrevi agora de propósito (escrevi há tempos) o poema inédito que adiante lhe transcrevo e explica tudo isto melhor do que faço agora:
Quem diz de amor fazer que os actos não são belos,
que sabe ou sonha de beleza? Quem
sente que suja ou é sujado, por fazê-los,
que goza de si mesmo e com alguém ?
Só não é belo o que se não deseja
ou que ao nosso desejo mal responde.
E suja ou é sujado que não seja
feito do ardor que se não nega ou esconde.
Que gestos há mais belos que os do sexo?
Que corpo belo é menos belo em movimento ?
E que movor-se um corpo no de um outro o amplexo
não é dos corpos o mais puro intento ?
Olhos se fechem não para não ver,
mas para o corpo ver o que eles não;
e no silêncio se ouça o só ranger
da carne que é da carne a só razão. [1]
Gostaria muito de ver a sua tese publicada [2], e espero ter contribuído para o entusiasmo que pôs nela. Creia que, em tantos anos de ler coisas inteligentes, ou malignas, a meu respeito, raras vezes me foi dado ler, sobre mim, um texto tão seriamente e tão aprofundadamente escrito. E, de um ponto de vista metodológico que para mim o mais importante, nunca. A sua tradução faz-me pensar no que seriam outros poemas meus traduzidos por si. Não quero, porém, influi-lo a este respeito – e sou um péssimo propagandista de mim mesmo, que sempre se sente preso para solicitar o interesse alheio. E sobretudo quando o meu prazer seria maior – como é o caso da Itália, já que ser-se traduzido em francês ou em inglês não adianta nada a um poeta português, porque só será lido pelos que leriam o original, e esses países não acreditam que haja poetas noutras línguas, particularmente em Portugal. Se o próprio Camões ainda nao é conhecido, que podem esperar os outros?
Transmita as minhas melhores lembranças aos Profs. Tavani e Luciana. A ela diga que vou escrever-lhe. Gratamente lhe retribuo os seus desejos de Feliz Ano Novo. E receba o mais grato abraço do sempre seu
Jorge de Sena
PS – Se receber para o verão uma bolsa que solicitei, tenciono ir à Europa e sem dúvida a Itália (que, como esperava, me encantou na minha veloz visita, a primeira, há dois anos). Conto ter então o prazer de conhecê-lo pessoalmente. E, é óbvio, fico à espera, dos seus comentários às minhas observações. Que livros meus não tem, a ver quais terei eu que possa oferecer-lhe?
Repare na minha nova morada pessoal, visto que, há meses, mudei para a Universidade da Califórnia (Santa Barbara).
Roma, 12 de Janeiro de 1971
Meu caro Amigo
o meu querido aluno, agora licenciado, Carlo Vittorio Cattaneo, trouxe-me ontem a sua carta de 5 de Janeiro. Ma perché far tanta fatica a scrivere in portoghese quando Lei sa benissimo l'italiano?
Dunque: ho saputo da Cattaneo del Suo nuovo indirizzo: Mudança definitiva o provvisoria? Sono contenta comunque che Lei stia finalmente al caldo.
Io sono stata molto ammalata, mi hanno squartato e ricucito e adesso torno, pian piano, alla vita e al mio lavoro. La cattedra di Lingua e letteratura portoghese presso l'Università di Roma finalmente istituita e attribuitami a partire dal 1o. novembre 1970 mi libera finalmente dalla provvisorietà. Pisa è rimasta sguarnita; altre tre cattedre sono però state istituite in aggiunte a quella del nostro beneamato Rossi (Venezia, Lingue, Tavani – Bari Lingue, Macchi, Roma Lettere, io – Napoli, Orientale, Rossi), In quattro riusciremo a fare di più per la "difusão da cultura portuguesa na Italia e no mundo?" Lo spero proprio.
E cominciamo da noi. Sono contenta che in linea di massima la tesi di Cattaneo Le sia piaciuta. Anche a me, che l'ho seguito e in un certo senso, provocato, pare un lavoro serio e degno di ogni rispetto. E grazie, per quanto mi riguarda, della Sua accettazione. Adesso besognerebbe pubblicare il tutto. Ma, io ho l'impressione che sarebbe meglio farlo in una lingua diversa dall'italiano. O inglese o portoghese. Se lo pubblicassimo in italiano andrebbe a finire o in una rivista generica qui (che pretenderebbe molti tagli, fino a ridurre ad un massimo di 30 pagine il lavoro), o in una rivista di poca diffusione e di scarsa rilevanza internazionale come (mi dispiace dirlo, ma è la verità) gli "Estudos Italianos em Portugal".
Se lo traducessimo in portoghes potremmo tentare o una rivista portoghese, o una rivista americana (la "Revista ibero-americana" di Austin, Texas? o qualche cosa di simile). Che cosa ne pensa Lei? Si potrebbe fare anche un libretto autonomo, da dare alla Portugalia o a casa editrice affine. Quali sono i suoi suggerimenti, anche a proposito dell'eventuale traduzione?
Lasciando a Lei di risolvere questo problema, se Dio mi dà grazia e salute, io mi occi però prossimamente di trovare un Editore qui in Italia per una antologia poetica Sua fatta eventualmente da Cattaneo, o da Cattaneo e me a quattro mani. Sarebbe una bellissima cosa.
Per il resto… tiriamo avanti. Qui mi trovo completamente sommersa dal lavoro: anche burocratico. Come ultima arrivata sono infatti anche Segretaria della Facoltà. Troppo, per il mio temperamento. Ma non mi è stato possibile tirarmi indietro.
Chissà comunque che io riesca a fare una puntata in America entro i prossimi mesi. Il fratello mi reclama, con la scusa che i medici americani sono migliori degli italiani. E chissà che io finisca per dargli ragione. Nell'attesa di rivederLa, o qui o lì, La prego di non scomparire e di esistere ogni tanto, almeno per gli amici.
Con tanta stima e amicizia de
Luciana Stegagno Picchio
Santa Barbara, 21 de Fevereiro de 1971
Caríssima Luciana
Perdoe-me que, com a sua carta de 12 de Janeiro há um mês diante dos meus olhos, só agora lhe responda, quando, tendo sabido por Cattaneo da sua falta de saúde e operações, já antes andava em angústias de escrever-lhe. Mas estes últimos tempos têm sido – felizmente que a menor escala – também de pouca saúde para mim, e sobretudo de uma espécie de agonia, que não me deixa mais que o trabalho quotidiano e as provas tipográficas ou escritos urgentes, a remeter ràpidamente (em especial, artigos para o Dicionário do Cochofel [3], alguns longos e de especial responsabilidade por tocarem em ideias feitas). Faço votos por que V. esteja, entretanto, recuperada (o que não posso dizer que, a menos a vesícula e respectivas pedras, tenha sido o meu caso, desde que regressei há dois anos da operação em Lisboa), e em plena actividade – quanto aos médicos americanos não partilho a confiança de seu Irmão, e, pelo contrário, tenho deles um medo danado. Esse trabalho extra – de ser secretária da Faculdade, desgraças burocráticas que às vezes nos caem em sorte – é que me parece excessivo para uma pessoa que se refaz de aventuras cirúrgicas!
Não, não vim para a universidade da Califórnia em caráter provisório. Os tempos de Wisconsin, aonde todos os problemas existentes (mais o que se haviam aproveitado para fazer durante a minha ausência europeia) explodiram com as sucessivas crises estudantis e políticas, dentro da universidade e na rua, foram muito duros e desagradáveis, desde que eu havia voltado de Lisboa. Enchi a paciência, como dizem os brasileiros, e aceitei o convite de Santa Barbata, para onde fui nomeado, ao fim de muito tempo de delongas burocráticas, em Julho – mas ensinei em Madison até ao fim do verão, quando me lancei à magna aventura de mudar a família, a biblioteca e mais pertences, através da América, de Madison à Califórnia, tentado pelo clima de primavera eterna, pelo mar e a montanha, a proximidade de Los Angeles (hora e meia de automóvel daqui) e de San Francisco, e decidido a não ter de cruzar no corredor com rostos e sorrisos que me metiam nojo. Que numerosa tropa reles e fandanga é a nossa profissão em grande maioria, não é verdade? E recusei as ofertas do Wisconsin para lá ficar, e que igualavam, e até cobriam a daqui. Estamos instalados, ou vamos estando, a família e eu, desde os princípios de Setembro, com saudades dos amigos que deixei em Madison (embora a minha saída e do Diego Catalán, e outras que vão efectivar-se, arraste a derrocada do departamento e tenha destruído os estudos graduados de Português) e dos excelentes estudantes que formara ou dos que me acarinhavam, sobretudo depois das posições que eu, ainda que com os cuidados do bom senso, tomara em favor deles, que todos compreenderam, com tristeza, as razões de eu me demitir, espectacularmente, de um coio de intrujões. Já lá estava, como estou aqui, também em Literatura Comparada que é, tanto ou mais que a Lit. Port. e Bras., meu campo. E estou nela, a ensinar um curso, aqui, sobre o Maneirismo o o Barroco (em inglês, é claro). Santa Barbara é um dos nove "campuses" (plural de fazer tremer as pedras) da universidade da Califórnia, com Berkeley, Los Angeles, etc. Mas os tempos vão maus, com a tendência de reacção feroz contra as universidades como centros de agitação, e com o oculto desígnio governamental de as fazer descer ao nível antigo, para controlá-las melhor e pô-las na dependência política dos dinheiros federais (e respectivos programas bélicos – ex: sabe acaso V. a razão de os extremistas terem feito ir pelos ares, em Madison, o Centro de Pesquisa Matemática? Porque era inteiramente pago por dinheiros secretos da CIA e do Pentágono – e foi lá que se fizeram, em computador, os cálculos para caçar o Ché Guevara…). A repressão vai acesa ainda que subterrânea, e a eliminação de todos os controlos democráticos por parte do professorado, também (nem já a "tenure", efectividade, é segura, pois que pode ser revogada pelos Regentes – e quem é que tem dinheiro, sem ajuda de grupos de resistência, para ir a tribunal contestá-los?). É esta a atmosfera geral – que evidentemente não só dá inquietação como enjôo, mesmo a pessoas não-políticas como eu. E, muito mais americanamente do que se julga, toda a gente se encolhe e baixa a cabeça.
Muito folgo – e dou-lhe os parabéns – por ter sido resolvida a sua situação e a dos estudos portugueses, com a criação da cátedra. Concluo, do que me diz, que só a sua (a do Rossi também?) é de Língua e Literatura, sendo só de Língua as do Tavani em Veneza (continua lá o meu velho amigo brasileiro Alexandre Eulálio de leitor?) e do Macchi em Bari. É assim?
Claro que a tese de Cattaneo me agradou muito, não só por ser sobre mim, mas por ser especialmente inteligente e subtil – independentemente de eu discordar (e não creio que seja matéria de opinião mas de facto) de alguns pormenores (tenho, a este respeito, uma carta dele, para responder, em que ele responde à minha). É sem dúvida um trabalho sério – e será que muitos poetas modernos portugueses se podem gabar de terem sido tratados em mais que estilo ensaístico? Concordo consigo que a publicação em outra língua que não o italiano, realmente só lido por quem se interessa por estudos italianos (e não por portugueses), seria preferível. O facto de ser publicado o estudo numa revista (para o que teria de ser condensado) não prejudica que possa ser oferecido, paralelamente, ou logo depois, na sua forma completa (e quiçá com um capítulo final e outro introdutório a enquadrá-lo na minha obra poética), a um editor português: ou a Portugália ou a Inova, do Porto, que se interessa também muito pelas minhas coisas. Mesmo nos Estados Unidos, conviria que, não sendo traduzido para inglês, o fosse para português. Os "estudos italianos em Portugal" seriam uma possibilidade – mas que lê e recebe essa revista? Quanto à tradução, poderiam VV. aí preparar uma versão que com muito prazer eu reveria (sem que isso figurasse em mais que dizer-se que eu vira a tradução – o que só se diria a modos que prefaciais, pois que de outro modo as pessoas pensariam que eu tivera mão no trabalho e na publicação dele).
Quanto a um volume de poemas meus traduzidos – por Cattaneo, ou por ele e V. "a quatro nãos" — , seria para mim alta recompensa (e estaria ao dispôr para esclarecer ou sugerir, como tenho feito com Jean Longland, de New York, que tem traduzido poemas meus na ideia de um eventual volume). Poesia minha tem aparecido em inglês, francês, alemão, em antologias, ou artigos (e, pasme, em croata e lituano) – mas, que eu saiba ou recorde, nunca em italiano, língua que me é tão cara e de país que amo tanto. Seria uma grande coisa. Haverá editor? Quando eu não sou dos lusos ou dos brasílicos que têm feito as suas "cavações" em Itália?
Antes que me esqueça: um estudo mais breve, e diverso, de Cattaneo (como a ele direi) poderá aparecer num volume que a Inova, do Porto, prepara, e sobre o qual me consultou, de "21 Ensaios" sobre mim (está para sair um assim sobre o Eugénio de Andrade, e encomendaram-me a preparação de outro sobre Camões). A propósito, esse volume, que é para coincidir com o centenário de Os Lusíadas, não incluirá necessàriamente só estudos sobre a epopeia. Escrever-lhe-ia, em breve, sobre o seu e meu interesse em colaboração sua. Está V. disposta a preparar alguma coisa? Quem mais, de Itália, pensa V. que poderia fazer algo interessante? Não necessariamente um camonista – ainda há pouco recebi, de Oklahoma, um interessante artigo
publicado por especialista de Milton, que abre de novo a questão de Camões ter "influenciado" (termo que detesto) aquele.
Pedi a esta universidade uma bolsa de viagem para ir à Europa no verão. Não sei se ma darão. Se derem, tenciono estar principalmente em Espanha, por causa das minhas pesquisas nesse sentido. Mas é minha ideia ir à Itália, para demorar-me em Roma mais dias que da outra vez, e visitar um ou outro lugar mais. Aonde estará V. por Julho e Agosto?
Ouvi dizer que Yale (não é aonde o seu irmão está?) andava à procura de um "nome" para Português – não fui contactado, talvez porque — e é sempre o problema na América – não seja suficientemente brasileiro para o gosto dominante, nem suficientemente português para as miragens deitadas às benesses oficiais lusitanas. Mas haverá nos EE.UU. nome maior do que o meu? Claro que há a considerar, também, o analfabetismo universal da maioria dos sujeitos que, na América, fingem que sabem português… ou cultura de qualquer dos dois países. Razão pela qual só me quero aonde esteja 50/50 em Português e em Literatura Comparada – até o momento em que, vivendo aqui, possa ter o português corno o escritor que sou, e esquecer-me de que ele é ou possa ser ensinado. No fim das contas, para que lutar pela melhoria de algo com que Portugal e o Brasil estão tão contentes?
E aqui vai o grande abraço da melhor amizade do sempre seu muito grato
Jorge de Sena
Notas:
1. Trata-se do poema "Arte de Amar", publicado em Exorcismos (Poesia III)
2. A tese de Cattaneo virá a ser publicada, refundida, em Estudos Italianos em Portugal, nª 38/39, Lisboa, 1975/1976, p. 29-78.
3. Como se sabe, pouco veio à luz do Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e de Teoria Literária, projetado por João José Cochofel em fins dos anos 60. Os 37 verbetes destinados por Jorge de Sena a essa obra monumental integram hoje o volume póstumo Amor e outros verbetes (Lisboa, Ed. 70, 1992).