O número 14 dos Cadernos de Poesia, de 1953, abriga uma alentada homenagem a Teixeira de Pascoaes (1877-1952), organizada por Jorge de Sena. Este, no seu próprio depoimento, aí publicado, declara: "Teixeira de Pascoaes foi, para mim, muito menos e muito mais do que um mestre. Devo-lhe o pior que me podia ter acontecido — e do melhor que a vida me dá. Com efeito, a leitura, no limiar da adolescência, da sua Terra Proibida — e, mais ainda talvez, a impressiva descoberta, por um poema desse livro, de que havíamos nascido ambos no mesmo dia, o Dia de Finados — é que é responsável pelo facto de eu ter principiado a escrever poesia". Sem dúvida, esta declaração esclarece e justifica a dupla referência ao poeta do Marão no poema-prelúdio "La Cathédrale Engloutie, de Debussy" (Arte de Música). Justifica também duas dedicatórias em dois poemas seus: "Canção", de 1946, em Post-Scriptum (Poesia I) e "Entranhas de água", de 1974, em 40 Anos de Servidão.
Pela via do ensaísmo seniano, o mesmo apreço se manisfesta, como bem provam os três textos abaixo reproduzidos, hoje compilados em Estudos de Literatura Portuguesa-I. O primeiro, de 1951, foi escrito por ocasião da homenagem prestada a Pascoaes pela Academia de Coimbra, sendo publicado no número 52 da revista Via Latina. O segundo, informa o próprio autor, foi "artigo expressamente escrito para as páginas especiais de O Comércio do Porto, consagradas, em Abril de 1953, a "O Saudosismo e Pascoaes". O terceiro, de 1956, "foi escrito para a página literária do Jornal de Notícias, do Porto, dedicado à memória de Pascoaes, no quarto aniversário de sua morte".
Forte unidade se depreende desta sequência de artigos para periódicos portugueses, na qual não faltam os maiores louvores, criticamente arrolados, à "grandeza de Pascoaes".
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE TEIXEIRA DE PASCOAES
Julgo extremamente difícil falar de um poeta como Teixeira de Pascoaes, e que, como ele, tenha atravessado espessas névoas de incompreensão, injustiça, intencional silêncio, ou, o que será pior, as tenha atravessado na perigosa companhia de admirações frustes, elogios pedantes ou referências críticas irresponsáveis. Depois, é Pascoaes um poeta do nosso tempo, cuja obra, muitíssimo vasta, já fora em grande parte publicada, quando a maioria da actual intelectualidade portuguesa ainda lia Histórias da Carochinha, ou nem havia nascido, como é o meu caso; e dessa obra pode dizer-se que está quase toda perdida em edições esgotadas ou esquecidas. E, pois, necessário definir o que constituirá a grandeza de Pascoaes, sem contribuir com mais um equívoco ou mais um flatus vocis para a sua bibliografia; e defini-la por modo a que ela fique patente a imensa gente que conhece o Poeta apenas de nome, de citação, de antologias gerais com a eterna Elegia do Amor. Eis, para já, algumas das razões por que julgo extremamente difícil falar de Teixeira de Pascoaes.
Claro que, de certo ponto de vista, esse desconhecido poeta o não será mais do que tantos outros: os do passado, que ninguém lê, os quase contemporâneos (um Gomes Leal, um Eugénio de Castro, um Junqueiro, mesmo um Junqueiro), que toda a gente finge que leu. Estou em crer que isto foi e será sempre assim. Com os poetas exactamente contemporâneos ou com aqueles que uma relativamente longa vida faz nossos contemporâneos, acontece até ser muito frequente aparecerem seus leitores entusiásticos aqueles mesmos que, durante vários anos, passaram ao lado da obra deles, sem a ver sequer. E a obra sofrerá de uma desactualização que não possuía nem merece; e perde-se a perspectivação histórica do que foi uma autêntica originalidade ou uma corajosa audácia.
O caso de Teixeira de Pascoaes não anda longe disso. Mas, porque o poeta, para transcrição da sua personalidade original, da sua estranhíssima receptividade, das suas heréticas intuições, nem sempre buscou uma forma, uma temática e uma imagística tão originais e estranhas como elas, resulta daí não ter, pelo próprio aspecto dos seus textos, repelido de si aquelas admirações frustes e elogios pedantes, que, embora indignos da alta mensagem do Poeta, puderam identificar-se com um aparente sentimentalismo fácil e uma aparente vulgaridade de difíceis símbolos, um e outra susceptíveis de ser tomados pelo que não eram.
Todavia, deve sublinhar-se que, quer na estrutura interna dos poemas, quer na rítmica dos versos, a linguagem de Pascoaes atinge uma força e um equilíbrio inteiramente adequados a uma poesia que, algures e lucidamente, o próprio Poeta classificou de escultórica. Isto deveria ter feito reflectir os admiradores superficiais das suas lágrimas e dos seus fantasmas [1], e do seu Tâmega sumido em bruma como do seu Marão dissolvido em luar: os admiradores, em suma, do que parece vago por parecer que não chega a ser expresso. O gosto de tal fingimento, a consolação de ficar-se aquém dos terrores e dos perigos da visão profunda – eis o que está na base de muita admiração pela poesia, e o que está por trás de muita poesia que é de facto evasiva.
Ora, a poesia de Pascoaes, longe de ser evasiva, é das poesias mais corajosas da nossa língua: poesia de um homem que olhou poeticamente de frente os mais graves problemas da existência do mundo e as mais sérias perplexidades do destino humano. Mas viu-se apenas, por exemplo, quanto o poeta ecoava do panteísmo final de Junqueiro, sem nunca se ter reparado (?…) que, por dentro dessas alegorias formais, estava um outro panteísmo de complexas raízes, que reeditava, com tintas de pelagianismo, a 14 séculos de distância e apesar de S. Martinho de Dume, o priscilianismo de Entre-Douro-e-Minho. E não se reparou em como Pascoaes havia recolhido a herança magnífica daquela «ironia transcendente» que Oliveira Martins tão penetrantemente detectara em Antero. De resto, as obras em prosa de Pascoaes explicitam largamente esta última faceta do seu génio, em que se cruzam ressonâncias do cristianíssimo sarcasmo de Camilo.
Por ser uma poesia invulgar – quase poderia dizer-se que Pascoaes é o mais autêntico romântico que nos foi dado ter, pela natureza dos seus contactos com uma realidade que a poesia oculta -, mas vazada em moldes gramaticalmente singelos e imagisticamente recorrentes, é que a poesia de Teixeira de Pascoaes postula uma exegese que a defende de si própria: da distância imerecida entre o que lá está sempre e o como às vezes lá está. Apresso-me, porém, a esclarecer que não viso a subrepticiamente diminuir o Poeta; antes estou a tentar libertá-lo de uma determinada ganga epocal e a tentar subtraí-lo à perenidade sentimentalória (de que será quase impossível salvar João de Deus e muito difícil salvar António Nobre), para erguê-lo à altura que é de direito e de facto a sua: a de urna das mais prodigiosas organizações poéticas da nossa literatura, um homem que pela intensidade e o fôlego da sua inspiração se irmana a Camões e a Pessoa como pelos dons de visionário emparelha com Gomes Leal, um extraordinário e nobre espírito cm qualquer parte, mas, sobretudo, uma figura importantíssima, na qual se resumem quase todas as experiências boas e más de sete séculos e meio de poesia portuguesa.
Para todas estas dificuldades da poesia de Pascoaes é que eu quereria chamar as atenções, inclusive a minha. Porque eu tenho uma grande dívida para com o Poeta, ou ele a tem para comigo. Foi a leitura, feita ao sair da infância, da sua Terra Proibida que me abriu os sentidos para uma coisa que eu não sabia tão grande: a «terra proibida» da Poesia.
1951
Nota:
1. Note-se quão fantasmático (as «sombras») é o mundo de Pascoaes, cujo paganismo não consentiu as transformações finais de «sombra» em espírito e deste cm coisa nenhuma. Fantasmático e não fantástico – muitos fantasmas e pouca fantasia.
TEIXEIRA DE PASCOAES – DEPOIMENTO
Teixeira de Pascoaes foi, para mim, muito menos e muito mais do que um mestre. Devo-lhe o pior que me podia ter acontecido – e do melhor que a vida me dá. Com efeito, a leitura, no limiar da adolescência, da sua Terra Proibida – e, mais ainda talvez, a impressiva descoberta, por um poema desse livro, de que havíamos nascido ambos no mesmo dia, o Dia de Finados – é que é responsável pelo facto de eu ter principiado a escrever poesia. Não encontro hoje, ao lê-lo com a profunda admiração que tenho pela sua obra, o mesmo deslumbramento de então; e talvez porque este se interiorizou, se transformou na desesperada consolação de encontrar versos. Que a sua morte haja acontecido, eis o que me não fere mais do que ele me feriu a mim. Há muitos anos escrevi, e sempre pensei, que ninguém é mais vulnerável do que esse homem comum, tão desconforme, que é o Poeta. Vulnerável a tudo, absolutamente tudo, até à própria poesia. Morreu de Pascoaes uma presença física — e não há almas nem sombras sem uma presença dessas – que era o penhor individual dos seus versos, aquele penhor sem o qual, num mundo perfeita e harmoniosamente safado, ficamos sempre mais pobres e mais sós. Um homem que fala de muito alto e entre nós é por demais raro, para que a solidão remanescente não seja infinitamente pior. Quando, porém, um poeta como Pascoaes nunca falou de outra coisa que não desse pior de todo o instante – a morte permitirá ouvi-lo de uma maneira que na vida se esquece. Permitam-me, pois, que o escute agora sem mais nada. E – quem sabe? – a poesia me doerá um pouco menos.
Lisboa, 19 de Dezembro de 1952.
PASCOAES – 1956
Quatro anos são passados sobre a morte de Teixeira de Pascoaes. A sua nobilíssima figura de poeta e de todo un hombre, como diria o seu amigo Miguel de Unamuno, desapareceu do número dos vivos; mas o poeta que ele é não pode desaparecer, porque, à semelhança quase da Saudade que ele a seu modo definiu sobrevivente aos mundos e às estrelas, sobreviverá para lá das circunstâncias fortuitas em que as próprias nações, as línguas e as civilizações se afundam, diluem, transformam e desaparecem. Se alguma vez, da cova imensa das eras consumidas, se erguer a «língua morta» que outrora nós falámos, à voz de uns raros como ele se deverá que ressuscitemos. De povos que foram historicamente importantes, de civilizações que esplendorosas dominaram o mundo dos seus tempos, e de ilustres feitos, grandes comércios, maravilhosas cidades, restam vagas ou precisas memórias, que a História incorpora a sínteses cada vez mais vastas. A língua, porém, que essas gentes usaram para amar, tratar, comunicar o que viam e sentiam, apenas sobrevive pela força daqueles que como ela disseram o que as civilizações por si sós não dizem: a vivência de um homem, entre os homens da sua época, em frente ao mundo e ao mundo que os homens criam. O acaso das ressurreições não se firma nem sustenta sem esse outro acaso: o de ter havido um poeta.
Ao contrário do que vaidosamente se supõe, com essa vaidade tão típica dos que desesperadamente não aceitam morrer para nascerem de novo, não tem a língua portuguesa muitos desses homens de quem fiar a sua relativa perenidade à face da Terra. E, na obra desses homens, nem tudo o que se julga mais garantidamente perene vale exactamente como tal. Eu tenho para mim que, quando Os Lusíadas forem uma curiosidade histórica, significativa de uma época e de um povo nela, apenas serão lidos por ter sido seu autor um certo Camões, bem duvidoso autor também de um corpo de poesia lírica da mais extraordinária que a humanidade concebeu.
Porque felizmente Os Lusíadas só se escrevem uma vez, e quando alguém os repete saem O Oriente ou O Gama ou lá que são, teve Pascoaes a sorte de escapar ao mal-aventurado destino de ter escrito ou rescrito um poema «para uso das escolas» e de quantos nunca se deram ao trabalho de ler qualquer poesia. Não é que, nas dimensões do Porto do seu tempo, e da Águia de seu poleiro, o não haja tentado essa missão imediatamente política da poesia. Mas os ares eram outros. O Rio Tâmega não era o Tejo das caravelas e das naus a regressarem pelas páginas da História Trágico-Marítima adiante; a gigantesca miopia de ver-se Marrocos nas Índias já dera o que tinha a dar, com Filipes e tudo; e, comidos o açúcar e a prata e o terramoto de Lisboa e D. Miguel e a Monarquia, não havia idealismos que comessem a carne dura e teimosa dos financeiros futuros, porque o idealismo é notoriamente desdentado. Pascoaes escreveu, portanto, a par de imensa poesia de menor fôlego, o Jesus e Pan, o Regresso ao Paraíso, o Marânos; e pregou em conferências várias o «saudosismo», inventariou os «poetas lusíadas»; e, mais tarde, consolou-se devorando em rios de prosa as figuras de S. Paulo, Santo Agostinho, Camilo e Napoleão.
A sua tentação de refazer Portugal poeticamente, que foi um admirável sonho de cultura e ressurgimento, na hora em que o liberalismo morria na cidade que lhe sagrara os destinos, transcendeu-a Teixeira de Pascoaes por milagre de um génio visionário em que se refugiou a derradeira ingenuidade humana. No limiar da era das cisões, quando tudo, desde a personalidade às sociedades e ao átomo, ia cindir-se e perder a serena unidade clássica, Pascoaes escutou, na impassibilidade nevoenta e violácea das suas montanhas, no lar que estanhava em brumas os socalcos de uma lavoura ancestral, os últimos ecos de uma contemplação de finisterra da Europa: a derradeira intemporalidade do mundo galaico-duriense. Isto que só ele ouviu – e que fora transmontana sentimentalidade em Camilo, nirvânica abdicação em Antero, rumorejante encantamento indignado em Junqueiro, doridamente frívola contemplação da própria inanidade em António Nobre – ele transmutou numa linguagem radicalmente nova, feita do enxurro lírico de sete séculos de poesia sempre à margem da vida nacional, qual foi a nossa poesia quando não cantou, de serva ou Mestre Gil, as cantigas predilectas das sucessivas e apressadas aristocracias de um solo pobre para sustentá-las, e de um povo triste por as ter gerado.
De um mundo rural, ensimesmado em rios e montanhas, nos confins da Europa, onde tudo chegou com as invasões numa babugem já extinta; um mundo em que a romanização pagã e, mais tarde, a romanização cristã vieram de muito longe, qual ficaram vindo os peregrinos a Compostela; uma espécie de Irlanda sem história; um extremo ocidental a que toda a complexidade civilizacional não poderá deixar de parecer um silenciar trágico do animismo primitivo desse mundo sedimentado em recorrências através dos séculos, veio cristalizar em Pascoaes, numa linguagem evanescente a que o próprio peso de um eu unitário já repugna, uma poesia extremamente antinómica, em que o bem e o mal, o paganismo e o cristianismo, o concreto da inspiração e o abstracto da fixação verbal, se amalgamaram dialecticamente numa síntese insólita, numa aventura espiritual tão audaciosa quanto na mais alta poesia de qualquer época ou lugar.
Uma poesia de contemplação e de saudade, que proclama a futuridade do Homem e de Deus. Uma poesia de efusão emocional, que se enraiza numa rigorosa fenomenologia das coisas que a rodeiam. Uma poesia herética, que brota do âmago da ingenuidade e da inocência. Uma poesia de esperança, de redenção, de liberdade, de suprema alegria, e todavia redundante de formas espectrais, de cinzas idas, de lágrimas e prantos. No limiar das novas eras, e com todo o verbalismo de um vocabulário academicamente consagrado, uma poesia do «Incriado, o Inominado ainda», como disse Pascoaes num dos seus mais belos poemas.
Tudo isto seria paradoxal, se não fosse poesia; e não seria a grande poesia que é, se não a trespassasse um sopro de grandeza, de majestade, da irreprimível tristeza de uma juventude eterna, a juventude do perpétuo devir, que se abre em certezas triunfais de harmonia e paz.
1956