No Brasil, o 15 de outubro é "Dia do Professor". Assinalando a data, considerações de Jorge de Sena sobre o ensino da Literatura Portuguesa no Brasil, escritas pouco depois de ter concluído sua experiência docente no Brasil, sempre à frente dessa disciplina. "Este artigo é constituído por alguns excertos da comunicação apresentada no VI Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, reunido em Harvard, em setembro de 1966" — avisa a nota do autor no número especial dedicado ao Brasil da revista O Tempo e o Modo, de setembro de 1967, onde foi primeiramente publicado. À distância de quase 50 anos, é o caso de se refletir sobre o que permanece pertinente no seu conteúdo, ou deixou de sê-lo nos dias de hoje — reflexão também muito apropriada no contexto das celebrações do "Ano de Portugal no Brasil" e do "Ano do Brasil em Portugal", já em curso.
Introdução — O problema de discutir-se a situação actual de uma literatura, dos estudos sobre ela, e das perspectivas futuras dela e desses estudos, complica-se especialmente quando, como é o caso da Literatura Portuguesa, ela importa não apenas a si mesma e a quem, por qualquer razão de preferência cultural, por ela se interesse, mas também a outros países que, separados, ontem ou no futuro, da área de expansão política da língua em que ela foi escrita e que ela foi formando e subtilizando, a possuem, em suas culturas, e queiram-no ou não, como passado escrito da língua que falam e escrevem. A língua inglesa, a espanhola, a francesa, entre as línguas do ocidente europeu, repartem com a portuguesa uma semelhante situação. Mas talvez para nenhuma a dificuldade dos problemas que dessa situação surgem seja tão complexa como para a Literatura Portuguesa.
As razões disto são diversas, e por certo muito poucas delas correspondem às ilusões oficiais da cultura portuguesa. Para tratarmos da questão, é-nos forçoso examinar estas últimas, serenamente, e na esperança de que uma lucidez serena substitua, no espírito dos portugueses que nos ouçam ou nos leiam, a cega obstinação com que, mesmo muitos dos melhores, encaram o que, longe de ser uma discussão académica, é e será cada vez mais uma problemática vital.
Ao contrário do que acontece com as línguas que referimos, a língua portuguesa não tem ainda, no mundo de hoje, um prestígio comparável ao delas. E não pode dizer-se, em boa consciência, que, se, como tudo indica, vier a tê-lo, a literatura portuguesa represente, nessa transformação, algum papel de relevo. É secundário, neste ponto, inquirir sobre se isso é ou não uma injustiça — porque é um facto. A importância que a língua portuguesa está adquirindo no mundo está em directa razão com a do Brasil, como potência e como cultura, e com a curiosidade desperta e difundida acerca dos territórios ultramarinos de Portugal. Se a explosão demográfica do Brasil, por um lado, e uma manutenção . da língua portuguesa como língua nacional daqueles territórios, se unirem no futuro para levar o português ao lugar de uma das quatro primeiras línguas do mundo, em sua expansão falada e escrita, a Literatura Portuguesa, caso venha a captar as atenções dos estudiosos, captá-las-á, sempre e mais, pelo seu passado que pelo seu presente. E, necessariamente, mais como um passado arqueológico da língua, do que como uma fonte para investigação das raízes históricas das diversificações da linguística portuguesa, enquanto não estiverem mortas e sepultas as amarguras políticas e as frustrações psicológicas (para não referirmos os oportunismos que com elas jogam) que presidiram, no passado e no presente, à expansão imperial de uma língua que nunca se fez acompanhar da radicação de instrumentos de cultura.
Portugal não teve nunca, por razões óbvias de limitação de poder e de escala europeia, a projecção cultural da França. Não constituiu nunca, e pelas mesmas razões, um dinâmico império, como a Inglaterra; nem o Brasil é, ou será por muitos anos ainda, uns outros Estados Unidos da América. Portugal, segregado, pelo seu destino de ser nação, do complexo hispânico, não participou, nem participa, da glória da cultura espanhola, ao lado da qual é o responsável pela América Latina. Não foi uma Itália, imagem mítica da unidade imperial romana. E não se germanizou o suficiente, no passado longínquo (como à própria Espanha aconteceu mais intensamente em vários momentos da sua História), para colher algum reflexo do prestígio romântico da Alemanha. E, não tendo sido nunca suficientemente invadido, pelo menos para as imaginações euro-americanas racistamente germânicas, por escandinavos e normandos, também por este lado ficou de fora do ciclo de formação comum das nações europeias nórdicas. No século XV e no século XVI, Portugal deu início à expansão ultramarina da Europa, e criou um vasto império, de cuja importância os restos ainda existentes serão testemunho bastante. Mas, ao que parece, fê-lo mais como intermediário que como detentor das bases económicas de uma tal expansão — e será por isso que é fácil, aos outros historiadores europeus, descendentes das civilizações que forneceram os créditos e recolheram os lucros, ignorar aqueles mesmos que criaram uma riqueza que em verdade não gozaram nunca (salvo uns quantos privilegiados), e não tiveram os meios de estabelecer-se em parte alguma com a mesma solidez cultural com que a Espanha ou Inglaterra puderam e souberam fazê-lo. Não os tiveram — ou as suas classes dirigentes foram sempre incapazes de raciocinar à escala universal em que pretendiam viver.
É ocioso repetr que, todavia, Portugal fez o Brasil. Sejam quais forem as medidas positivas que a administração portuguesa, em determinados momentos, pôs em execução, com maior ou menor sabedoria, e contribuíram para dar uma forma e um ser ao Brasil, seja qual for o peso que, em quatro séculos, a imigração portuguesa teve em fornecer a base principal da população brasileira, a triste e dura verdade é que o Brasil, aquém e além das saudações académicas e oficiais, não tem por Portugal o respeito e o amor que, ainda que muito contraditoriamente alimentados de queixas e recriminações, nutrem pela Inglaterra, os Estados Unidos da América do Norte, ou pela Espanha os países americanos de língua castelhana. Ainda quando o Brasil reconheça o interesse, para os seus estudos de língua e de cultura nacionais, de uma ampla presença de estudos de literatura portuguesa nos currículos superiores de Letras, como recentemente reconheceu, não obstante essa presença é muito mais sentida como uma indispensável necessidade curricular, que desejada como o convívio com uma outra área da mesma língua, que não só é a originária mas também de paralela e interpenetrada evolução. E a essa presença curricular não corresponde, na vida intelectual do Brasil, realidade quotidiana alguma. Se a presença da literatura inglesa nos Estados Unidos chega a parecer a um estrangeiro excessiva, nada de semelhante sucede no Brasil — e podemos mesmo afirmar que nada de semelhante ao que sucede em Portugal com a literatura brasileira. A cultura do Brasil em Portugal, todavia, está oficialmente na mesma posição que é a da cultura portuguesa entre os intelectuais e o público brasi leiros. Em Portugal, em que pese aos que proclamam de estudos universitários brasileiros, a literatura viva do Brasil existe fora dos círculos oficiais e universitários, exactamente ao contrário do que no Brasil acontece. E isto é extremamente significativo da situação real.
Este estado de coisas agrava-se por causas extrínsecas, onde e quando se desenvolve, como nos Estados Unidos agora, um grande interesse pelo Brasil. Não é de hoje, no Brasil ou fora dele, a existência de um, digamos, «americanismo» que, explorando os sentimentos anti-portugueses de muitos brasileiros, procura segregá-los, e à cultura brasileira, de quaisquer raízes europeias, a coberto de torná-los livres da herança colonial portuguesa. Nem sequer não é de hoje apenas no Brasil, por quanto o fenómeno se tem verificado, em diversas oportunidades, noutros países latino-americanos. Há evidentemente razoes politicas e sócio-económicas para isto: um país economicamen e subdesenvolvida que seja segregado do conhecimento das suas raízes e miticamente identificado com uma unidade das Américas, entrega-se mais prontamente a uma sujeição politico-economico a ciualquer grande potência continental. E isso acontece por um curioso processo psico-social: segregado facilmente daquela raiz europeia que professa detestar (por supo-la especifica o passado que renegou justamente), não possui a suficiente independência política-económica para opor, a qualquer penetraçao, uma cultura criticamente assente nas tradições, boas ou mas, que possui. Assim, do mesmo passo, o «statu-quo» politico–social subrepticamente adquire foros de inerente a segurança nacional, e o organismo nacional fica aberto a desnacionalização cultural e económica, precisamente quando parece esta-velmente conquistá-la. O interesse pelo Brasil, que se verifique hoie nos grandes países, não é necessariamente condicionado por esta visão política — seria uma grande injustiça, e de um grande e perigoso simplismo, o afirmá-lo. Mas a tendencia de um grande país predominantemente de mentalidade euro-americana, ao inte ressar-se por um país do Equador, em que a chamada raça anglo–saxénica não tenha imposto o seu exclusivismo (como> e o caso contrário de nações como a União Sul Africana ou a Austraba) se não é prepará-lo para os seus próprios fins, e para estima-lo paternalmente, admirando-lhe a paisagem e o pitoresco, e lutando filantropicamente por melhorar a vida de gente tao engraçada e tão simpática. As razões históricas de essa gente ser assim, o conhecimento de quais tradições essa gente herdou e transformou, eis o que é secundário, e, mais do que secundário, perturba inteiramente o facto folclórico e filantrópico, com considerações de exigência cultural, incompatíveis com o gosto pela especialização estrita e não-problemática. Isto e tanto a verdade que qualquer americano se escandalizaria com um estudo do sistema legal norte-americano, ou da religiosidade norte-ame cana, que ignorasse inteiramente as suas raízes anglo-saxomcas. Mas por certo serão muito poucos os que pensem necessário conhecer o sistema legal português ou a religiosidade portuguesa, para discutir-se disso mesmo no Brasil. E, nisto, a maioria do intelectuais brasileiros participa: que um estrangeiro estude isso sem recorrer a Portugal, eis o que os tranquiliza quanto a peculiaridade e originalidade do Brasil, enquanto o estrangeiro baseando-se nas bibliografias existentes, e levado a crer, por exemplo, que realmente no Brasil as tradições religiosas negras ou índias sobrelevam de longe a importância dos cultos cristãos (ainda quando, como é o caso dos protestantismos, eles não tenham sido instalados no Brasil pelos portugueses, mas por ociedades bíblicas de origem anglo-saxónicas ou germânica, já que e perfeitamente mítica, do ponto de vista da permanência cultural, a presença do protestantismo holandês no Nordeste ou a do protestantismo francês no Rio de Janeiro). Se isto é assim, ou tende a ser assim, com as questões antropológicas e sociais com maioria de razão o será com as literárias e culturais Ue modo que a manter-se esta situação que as circunstâncias de interesse pelo Brasil só podem agravar, não pode a literatura portuguesa esperar que sequer uma atenção para com ela seja tida, ainda por muito tempo, como indispensável a uma compreensão mais profunda e mais correcta do Brasil.
E evidente que atenção apareceu e existe, e não se pretende negar ou minimizar o que os Estados Unidos ou países da Europa tem feito pela cultura portuguesa, muitas vezes realizando aquilo mesmo que os intelectuais portugueses tinham o dever de fazer e nunca fizeram. Mas, com raríssimas excepções, os estudos da literatura portuguesa no estrangeiro (isto é, fora de Portugal e o rasi) têm partido ou dependido de estudiosos principal-mente interessados na cultura hispânica. Isto não é necessariamente um mal, porque precisamente serve a corrigir as extremas limitações que a ignorância portuguesa tem sofrido nesse campo como em outros em que raro abundam de um actualizado e bem informado comparativismo. Mas, contribuindo para colocar os estudos de cultura portuguesa como um capítulo da cultura hispanica que tem poderosas tradições internacionais, mais cinde a literatura portuguesa da sua conexão com um Brasil que não e hispânico em nada. E tanto o não é, e a tal ponto a sua individualidade e importancia se afirmam, que a literatura brasileira nao e considerada um capítulo mais na história das literaturas hispano-americanas que são apenas as de língua espanhola.
A realidade — ou melhor, a existência e o valor em si — da literatura portuguesa não depende evidentemente de tudo isto mas, muito mais do que os seus cultores e críticos portugueses imaginam, e, e cada vez mais será, extremamente condicionada por estes factores que fomos indicando. E sê-lo-á quanto à criação presente e quanto aos juízos sobre o passado. Quando a literatura de um pequeno país se fecha sobre si mesma ao mesmo tempo exagerando o seu valor universal (que, por potencial que seja, só existe quando reconhecido universalmente) e aceitando ser só eventualmente reconhecida, corre o risco de não apenas reduzir o passado à escala dos seus pequenos interesses provincianos, como o de desinteressar desse passado mesmo os estudiosos fiéis que tenderam a corrigir os erros de visão estreita, e que, assim fazendo, sabem não poder agradar àqueles mesmos que poderão dar-lhes apoio e estímulo. E, quanto ao presente dj^. criação literária, será muito difícil que obras apareçam, dignas da atenção universal, ainda quando encerram elementos de uma mais universal visão ou estejam seus autores bem informados acerca do que se passa no mundo da cultura. A razão é simples: de tal modo tudo isso estará integrado no pequeno círculo de uma cultura que, como sociedade, perdeu os contactos e a consciência das interrelações, que mesmo o mais universal dos escritores parecerá, e sera a muitos títulos, apenas um curioso caso de uma pequena literatura.
A literatura portuguesa no Brasil
A posição da literatura portuguesa no Brasil é ambígua, embora a sua ambiguidade não seja exactamente a que transicionalmente se supõe no Brasil ou descuidadamente se imagina em Portugal. Para os brasileiros, a literatura portuguesa situar-se-á em dois planos diversos: o de ser a expressão literária do passado da língua nacional (e, nesse plano, ela pertence realmente às duas culturas e é comum património de ambas), e o de ser expressão contemporânea da língua, em nível estético, mas numa diferente área cultural (e, neste outro plano, já ela não exerce a mesma função em ambas as culturas). Todavia, neste segundo dos dois planos, a literatura portuguesa confina, funcionalmente, com as demais literaturas estrangeiras, e é, paradoxalmente, mais estrangeira do que elas. Na verdade, ela [não]* pode competir em prestígio e difusão com literaturas como a francesa, a norte-americana, etc., porque não pode oferecer, àqueles que buscam nessas literaturas o complemento cultural necessário à construção de uma cultura tida por actual, a magnitude fascinante que elas apresentam. É perfeitamente secundário discutir, mesmo com elementos de mais objectiva crítica, se, na sua relativa pequenez, a literatura portuguesa dos últimos cem anos não possui, alguns escritores tão interessantes ou até superiores a muitos escritores franceses ou norte-americanos que ganharam a celebridade internacional. Tudo se passa, com raríssimas excepções como um Eça de Queiroz ou um Fernando Pessoa, que de resto, mesmo admirando-os, poucos se atrevem a dizer que são maiores que alguns dos seus contemporâneos mais influentes; tudo realmente se passa como se fossem efectivamente, aqueles escritores, secundaríssimos, mais ou menos na mesma medida em que o são para as grandes culturas euro-americanas que os ignoram. Claro que, e até por razões de profissão, um ou outro autor, e o movimento geral da história portuguesa interessam a quantos, no Brasil, se dedicam ao estudo ou ao ensino da literatura portuguesa. Mas esse interesse não ultrapassa o âmbito da área de influência desses estudiosos. Seria curiosíssimo, a este respeito, fazer um levantamento estatístico dos trabalhos publicados por esses estudiosos, pois que nitidamente nos elucidaria sobre a ambiguidade da literatura portuguesa contemporânea no Brasil. Quando não são personalidades especialmente dedicadas aos aspectos filológicos ou linguístico, campo em que o Brasil se destaca por trabalhos de alto valor, mas personalidades dirigidas para ou confinadas nos estudos literários, os estudiosos de literatura portuguesa, no Brasil, ocupam-se de estudar de literatura brasileira. E estes estudos, de um modo geral, não se caracterizam por um comparativismo das duas literaturas vernáculas, mas cuidadosamente as separam em domínios sem continuidade. Os estudiosos brasileiros de literaturas estrangeiras não sentem a mesma necessidade de ocuparem-se de literatura brasileira que muitas vezes não se pejam de ignorar; e os especialmente dedicados à literatura brasileira, quando se não dedicam ao estudo dela como isolada de todas as correntes, ou quase, da cultura euro-americana, sentem a preocupação (evidente nas maciças referências bibliográficas e na vasta cópia de nomes citados) de colocar a literatura brasileira em estreita correlação com essas mesmas correntes, sem que a literatura portuguesa (que, no passado colonial, foi o predominante intermediário, às vezes com demasiado exclusivismo) seja chamado a desempenhar nesse quadro um papel preponderante ou mesmo de modesta importância. Nada há de extraordinário, em princípio, no gosto e no interesse dos estudiosos brasileiros de literatura portuguesa pela literatura brasileira, que é sua nacional, e já que são literaturas da mesma área vernácula; e sem dúvida que é profundamente errado o interesse excessivo e exclusivo por outras literaturas estrangeiras. Mas o facto de verificar-se como que uma segregação dos estudos de literaturas vernáculas não deixa de ser um sintoma quanto ao que se diria a falta de naturalidade e a self-consciousness» de muitos brasileiros, ao tratarem da literatura portuguesa. E, no entanto, por isentos do «commitment» de serem portugueses, e por terem uma preparação filológica que em Portugal falta em escala igual, estão em condições de ser, e vários são, mais competentes nela que a maioria dos portugueses de equivalente educação e cultura.
Da parte de Portugal, tomar ao pé da letra este estado de coisas, actuar no Brasil como se a literatura portuguesa fosse efectivamente estrangeira, será por certo um erro de incalculáveis, ou demasiado previsíveis, consequências, visto que a situação da literatura portuguesa no Brasil, e os correlatos problemas que afloramos, não são os mesmos. Para o Brasil, a literatura portuguesa anterior à independência política (ou, mais exactamente, à Inconfidência Mineira), se é a literatura do país colonizador, não menos é a 'do passado da língua e da cultura, e não menos é parte do seu património nacional, ao mesmo tempo que o é para Portugal, por estranho que isso possa parecer à estreiteza de visão, a que Portugal é muitas vezes sujeito. Aliás, e paradoxalmente, uma das queixas da cultura brasileira contra a literatura portuguesa de 1500 aos fins do século XVIII reside precisamente na muito notória ausência do Brasil nela — queixa que corresponde a uma das características dessa mesma literatura e é a curiosa e generalizada ausência, nela, não apenas do Brasil, mas de todo o ultramar e das navegações, se vistos de um ponto de vista não-oficial e não-militar, com as possíveis excepções, de resto gloriosas, dos relatos que compõem a História Trágico-Marítima, e da Peregrinação. Que estas observações têm enorme fundamento é fácil de verificar pelo que sucede aos autores dos séculos XVI e XVII que se ocuparam do Brasil. Têm os brasileiros a tendência a considerá-los seus compatriotas, mesmo quando se trata de um autor tão conspicuamente dedicado a Portugal como António Vieira, enquanto outros não figuram nas histórias da literatura portuguesa, ou pelo menos não figuram, ainda hoje, em proporção da justa importância que possuem para o Brasil. Vieira, é claro, disfruta sempre um grande lugar na literatura portuguesa, mas por razões inteiramente diversas e às vezes incongruentes: o vácuo da prosa seiscentista seria sempre repartido entre ele e um Francisco Manuel de Melo ou um Bernardes, mesmo que eles valessem a décima parte do que valem; e o facto de ter sido um jesuíta perseguido pela Inquisição faz que as tradições jacobinas portuguesas se esqueçam de que ele foi não só um jesuíta, mas um dos articuladores do jesuitismo que tão ominoso é para os admiradores do Marquês de Pombal. Em contrapartida, o prestígio de Vieira no Brasil, que ele de modo algum teve entre os brasileiros seus contemporâneos, que chegaram a expulsá-lo de lá, é precisamente devido ao mito de que os jesuítas fizeram, à base de índios românticos, um país diferenciado dos «colonos» que os escravizavam. Nem eles fizeram esse país (ou o fizeram aceitando uma escravatura negra preconizada pelo próprio Vieira — cf. a sua «Resposta aos capítulos do Procurador do Maranhão), nem os «colonos» que se opunham a Vieira eram só emigrantes portugueses, mas, na terminologia do tempo, também os habitantes ou naturais da colónia. O caso de Vieira é assim uma pedra de toque, para a observação, em termos de sociologia da cultura, das relações literárias luso-brasileiras, sobretudo se nos lembrarmos de que os sermões dele, mais escolarmente célebres em Portugal, não são os mais conhecidos no Brasil, quando entre estes figuram dos melhores que ele terá proferido.
Quanto à literatura portuguesa posterior à independêncià política do Brasil (e a Inconfidência Mineira, desejada e preparada por homens que pertenciam ao Esclarecimento internacional dos fins do século XVIII, é necessariamente mais um fenómeno de independência política que do nacionalismo cultural que, em termos de liberalismo romântico, não tinha, para esses homens, sentido algum), com ser um prolongamento daquela anterior, não deixa de estar numa posição inteiramente diversa de qualquer das outras literaturas estrangeiras. Faltam, de resto, e quase totalmente, em Portugal e no Brasil, os estudos sobre o intercâmbio literário luso-brasileiro durante o século XIX e até ao advento do Modernismo vanguardista, durante a fase romântica e naturalista, a que correspondeu no Brasil a criação de uma literatura desejadamente nacional. No Brasil, dir-se-ia que esse intercâmbio apenas se cifrou em desagradáveis ataques portugueses aos supostos deslizes gramaticais dos brasileiros, quando esses ataques partiram, em geral, de figuras sem representação alguma na cultura portuguesa, e quando os melhores escritores e críticos portugueses, desde a primeira hora, aclamaram, como liberais que eram, o advento e a demonstração literária de um Brasil brasileiro, como foi o caso de Garrett ou de Herculano. Que tais estudos, baseados em sérios levantamentos históricos e documentais, faltem no Brasil, compreende-se, já que não são prioritária matéria de investigação cultural; que faltem em Portugal é por certo sintomático de quanto, nos últimos cem anos, a cultura média portuguesa (não os melhores elementos dela) foi aceitando, passo a passo, a sua menoridade e a sua restrita importância, entre um Brasil que crescia e lhe voltava as costas, e um mundo que precisamente para mais silenciosamente cooperar com as classes dirigentes portuguesas na exploração colonial, lhe impunha uma imagem de pequeno país inerme do ocidente europeu.
A literatura portuguesa de vanguarda, a literatura viva dos últimos cinquenta anos, muito pouco deve a esforços de agentes universitários ou oficiais portugueses no Brasil. O pouco que dela os brasileiros conhecem deve-se a eles mesmos ou à obra divulgadora de portugueses que precisamente nunca saborearam as delícias das protecções oficiais, nem as aceitariam. De resto, desenvolvendo-se a literatura brasileira moderna em duas linhas aparentemente opostas (porque estão convergindo nos autores mais recentes), o vanguardismo português, sobretudo voltado para a exigência estética e para a análise irónica e dramática das mitologias nacionais, tinha em comum com o vanguardismo brasileiro que, nas datas oficiais antecipou de meia dúzia de anos, apenas o que era comum a todo o vanguardismo ocidental: a quebra com os esquemas tradicionais e académicos. Mas, sobretudo na primeira fase do vanguardismo brasileiro, afastava-se dele e não podia ser-lhe profundamente interessante, visto que, em Portugal, era preciso demolir o equivalente caduco do que, no Brasil, era juvenilmente necessário, ou seja, o mito de uma aproximação cultural com a vivência quotidiana, com as tradições populares, com a consciência de uma nacionalidade peculiar, com a problemática social de uma grande nação à beira de profundas transformações sócio-económicas e políticas. A aproximação deu-se, logo depois, e da parte de Portugal, em duas fases sucessivas: primeiro, os continuadores do primeiro vanguardismo português sentiram a afinidade recíproca com o Segundo Modernismo brasileiro (aquele que precisamente criticava o excessivo folclorismo do primeiro), e, depois, quando nos anos trinta e quarenta se desenvolveu, em toda a parte, um florescimento do realismo em termos de politização esquerdizante, os ficcionistas portugueses encontraram no romance brasileiro nordestino, mais que em qualquer outro, o exemplo próximo de que precisavam e que as estruturas literárias portuguesas lhes não forneciam. O vanguardismo brasileiro, ao tornar-se mais interiorizado e mais esteticamente exigente (no sentido de os problemas estéticos sobrelevarem os de criação de uma nova fase de literatura nacional), ficava mais próximo da tradição do vanguardismo português. E este foi atacado em Portugal pelos discípulos portugueses do romance nordestino, exactamente pelas mesmas razões que fizeram os homens do Nordeste opor-se ao vanguardismo carioca e paulista.
Posto isto, insinuar, mesmo indirectamente e inocentemente, que os brasileiros precisam de ser iniciados pelos portugueses nos arcanos da literatura portuguesa é ofensivo e ridículo, ainda quando a dificuldade de obter, no Brasil, informações, edições, revistas, etc., seja um severo «handicap». O problema é apenas de meios de informação, de falta de difusão de edições, e, também, um pouco à escala das contrariedades diversas que temos mencionado, quanto à cultura portuguesa no Brasil. Mas, na verdade, aquele «handicap» não será inferior ao que os brasileiros encontrariam, e encontraram pela frente (como aliás todo o estrangeiro), ao utilizarem de boa fé as espécies bibliográficas da crítica portuguesa, quase todas elas viciadas por preconceitos políticos ou mesquinhamente pessoais, necessariamente ininteligíveis para quem tenha a felicidade de não viver no interior daquele caos de alusões ou omissões. E, nisto, a literatura portuguesa de hoje não é mais estrangeira no Brasil que em si mesma.
* Certamente por lapso, JS omitiu esta negativa que dá sentido à frase.