Fazemos preceder o texto ensaístico que inicialmente Jorge de Sena destinou à coletânea As Quatro Estações de uma elucidativa nota de Mécia de Sena, fundamental para repor a ordem dos fatos. Substituídas pouco depois pela "prosa poética" que hoje se encontra em Visão Perpétua, estas páginas, só publicadas em 1991 no Jornal do Fundão, constituem peça relativamente rara na obra seniana, não só porque delineiam uma leitura de sua própria poesia a partir de um recorte temático, como vêm demonstrar o quão facilmente o autor tansitava de um tipo de discurso a outro: motivado pelo tema do "ensaio", um poema inédito encerra o texto.
Este texto intitulado Primavera, foi escrito com destino a uma publicação da Inova que se intitularia Quatro estacões. Foi enviado a 12 de Outubro de 1974 a Cruz Santos acompanhado de uma pequena carta que dizia: "Aqui lhe mando o texto que finalmente escrevi, e que espero se enquadre no seu plano. Nem é todo poemático, embora inclua um poema escrito para a ocasião, nem autobiográfico, ainda que trate de memórias de poemas. Mas é o que fui capaz de escrever, buscando alguns exemplos de como a primavera me terá tocado." A verdade é que não correspondia ao que Cruz Santos desejara e Jorge de Sena comenta em 29 de Outubro a esse propósito: "Sobre a minha prosa "primaveril", eu não sei que faça nem que diga. V. pensa – e talvez com razão – que é propriamente mais um ensaio do que um texto autobiográfico ou de criação. Na verdade, é. Mas creio que pode dar alguma nota diversa, que não ficará mal aonde os outros falam de vivências (de que eu falo através de poemas, e falar de como se escreveram poemas tem o seu interesse "biográfico" ou de criação). Mas, meu caro, não me mande cópias das prosas alheias, como se dispõe a fazer – eu sei perfeitamente que escrevi o que poderia ter escrito acerca, para mais, de uma estação que não me é particularmente cara (lembre-se de que eu lhe disse, quando me falou do projecto, que por exemplo o Outono apelava mais para mim, e que v. me respondeu que já estava distribuído, o que grande pena foi). Não serei capaz de escrever outra coisa, até porque a minha disposição de ânimo é péssima para fazer seja o que for. Se V. acha que a minha prosa não serve dentro do plano e do tom da publicação, sinta-se livre de deixá-la de lado, e nao pense mais no caso. Outro poderá fazer melhor o que eu não posso."
Apesar disto, em 22 de Dezembro remetia novo texto para uma publicação que, só veio afinal a sair em Dezembro de 1977. A lindíssima edição, tinha a colaboração (além de Jorge de Sena) de Eugénio de Andrade, Almeida Faria e Vergílio Ferreira, e as ilustração são de Ângelo de Sousa, José Rodrigues, António Cruz e Armando Alves.
Mécia de Sena
Primavera
Que eu me lembre – e o não lembrar-me será sintomático – a Primavera não tem, na minha obra em verso ou prosa, frequente lugar. Tê-lo-ão talvez muito mais as atmosferas estivais ou do Outono, uma ou outra vivência do Inverno. Não serei, na verdade, um poeta "primaverll", se é que os poetas podem ser classificados segundo uma estacão predilecta. Daí que o escrever sobre a Primavera, que me é solicitado, seja um curioso desafio.
A verdade é que, ainda quando a chamada Natureza desempenhe papel de grande relevo em muito do muito que tenho escrito como literatura de criação, eu não sou, no sentido em que isso se entende, um poeta dela. Ou o sou para além dela. É simples una razão biográfica: nado e criado em Lisboa, homem da cidade e descendente de gerações de citadinos, os ciclos ditos eternos não me tocam da mesma forma directa em que podem existir radicados nos que conservem memórias da infância com campos, flores e árvores: como eu disse em Os Paraísos Artificiais, poema de Pedra Filosofal (1950): "Na minha terra, não há terra, há ruas" , etc., etc., poema que, diga-se de passagem, era um ataque sócio-político à vida portuguesa daqueles tempos. A esta razão biográfica, pode acrescentar-se que, por temperamento e por formação que me dei, sempre tive em horror (e só por disciplina intelectual aceito mesmo em poetas quo muito estimo) a projecção romântica do homem e dos seus estados de alma sobre a paisagem, de que as estações são elemento que as varia. Não que eu seja insensível à paisagem, ao mundo que me cerca que tem para mim uma importância essencial. Mas uma paisagem – o mar, as montanhas, as imensas planuras, o campo humanizado pelo homem, que muito tenho visto por este mundo adiante – só me interessa em si mesma e por si mesma, ou pelo que possa suscitar de meditação sobre o lugar absurdo do homem no chamado universo. Para mais, o homem, para mim, é aquele ser que prolonga e supera a "natureza", criando a sua mesma humanidade, com opor-se a ou libertar-se da indiferença, da crueldade, do acaso que, em termos humanos, precisamente caracterizam a chamada Natureza. A ideia de ser-se "natural", de "viver-se segundo a natureza", de "regressar à natureza", ao solo da madre, etc, etc, é para mim uma falácia romântica de campónios frustrados (que todavia não quereriam, efectivamente, regressar à condição, ancestral de campônios). Além disto, e por muito que se conheça mundo, e eu tenho conhecido, as estações, para um cidadão urbano, cifram-se sobretudo no caracter cômodo ou incômodo com que se apresentam. O Inverno é assim a inoomodldado das chuvas, dos frios e das neves (não as delicias da lareira antiga, quando os trabalhos rurais estão suspensos). O Verão é a do calor insuportável (com fugas à praia para quem pode). E a Primavera lisboeta, com quo me criei, é um prolongamento arrenegado e indeciso das incomodldades invernais, e não o brotar das flores, o renascer da terra, ou outras coisas sumamente arquetípicas e pagãmente divinas.
Quando vivi seis anos no Brasil, o Outono e a Primavera sumlram-se da minha paisagem de estações: o clima repartia-se entre um mais inverno e um mais verão (e para acentuar a confusão, era no inverno que chovia), sem as transições clássicas de primavera e de outono (as quais também não tenho tido agora, em quatro anos de Califórnia). Todavia, o que o grande Inverno ou o tremendo e também subtil estourar da Primavera poderiam ser, conheci-os – como não há em Portugal – no Wisconsin, no norte dos Estados Unidos. Aí sim: mesmo na cidade, árvores e o mais mundo vegetal estavam promissoramente à minha volta, e das últimas neves e gelos que duravam meses, rebentavam e floriam com uma intensidade prodigiosa, a que os mitos primaveris da Antiguidade Clássica e mediterrânica (que tanto pesam na memória tradicional e na literatura) não terão assistido nunca.
A premonição desse momento quase instantâneo, numa paisagem arborizada, à margem de um enorme lago para que davam as minhas janelas, o que gelava solidamente o Inverno todo, foi o que descrevi num poema de Peregrinatio ad loca infecta (1969), intitulado precisamente Primavera no Wisconsin. Interessante é notar que eu tenha sentido ou destacado mais esse momento anterior ao desbordamento primaveril, do que sentiria depois a magnificência pletórica da estação mesma; de resto, como o poema é datado de 1966, isto significa que eu (chegado àquelas paragens no Outuno de 1965) efectivamente senti ou pressenti esse momento, antes mesmo de ter visto o que ele indicava como Primavera esplêndida. Poemas deste tipo, são-me resultado imediato da observação directa. Leia-se:
Primavera no Wisconsin
Na limpidez tranquila da manhã diáfana
em que as despidas árvores imóveis
são como nervos ou expectantes veias
no corpo transparente do azulado ar,
as águas quietas, mas não tanto que
nelas se espelhe mais que a concentrada cor
do ar tranquilo, nem tão menos que
pareçam gelo perto as águas mais distantes,
pousam na margem delicadamente
como na mesma terra infusas se dispersam
dos ramos e dos troncos sombras confundidas.
A terra se amarela de ante-verde
e, sêca, espera, entre a neve que foi
e o ténue estremecer da seiva que desperta.
É um poema estritamente descritivo, em que ritmo e linguagem se aplicam a criar a visão paisagística, com um exacto rigor que não sacrifica a impressionismos, nem autoriza que, na pura paisagem, se intrometa (mais que no olhar que selecciona e na linguagem que fixa) o elemento humano. Este gosto do confinamento à descrição fenomenológica é uma das linhas da minha poesia, creio eu, e poucas vezes terá sido tão perfeitamente realizado como neste poema consagrado ao despertar da Primavera.
Já esta aparece em situação muito diversa, num poema de muitos anos antes, Equinócio da Primavera, coligido em Pedra Filosofal (1950), e que não recordo se foi escrito em Lisboa, se no Porto, ainda que me pareça que ao Porto se referem o "rio", as "luzes da outra margem", as "montanhas", etc. (enquanto aa "glicínias" que existiam na varanda da minha infância lisboeta, passada na casa em que nasci e onde vivi os primeiros trinta e quatro anos da minha vida, sejam por certo reminiscências de Lisboa):
Equinócio da Primavera
Da noite a aragem, tépida refrescando vem
surpreender as luzes, que interiores, se apagam
lentamente, uma após outra, como em madrugada
ao longe as luzes de outra margem – rio
descido pelas águas tenuemente crespas,
sombras passando, e escorre matutina,
ainda sem brilho, a vibração das águas,
enquanto rósea apenas de uma aurora ausente
a crista das montanhas reverdece.
Por sobre a plácida e pensante aragem física
das violações diurnas, de amarguras,
vilezas vistas e traições sonhadas,
notícias de jornal e desafios,
guerra eminente ou, mais que dolorosa,
cravada nas imagens de uma paz sombria,
perpassa a noite véus de primavera,
glicínias que amanhã estarão floridas,
e folhas verdes, muito frágeis, tenras,
e o azular-se o mar, o distanciar-se o céu
na crua luz que juvenis sorrisos,
traços ligeiros de alegria funda,
devora lentamente, e as rugas ficam..
– ao longe as luzes de outra margem, rio
onde a noite se esconde até à morte.
O poema tom duas partes evidentes. A primeira é, à primeira vista, uma descrição do mesmo tipo da do pooma anteriormente citado, com uma análoga estrutura de enjambement lógico de verso para verso. Mas a descrição não só não é um ponto de chegada, como no outro poema, e sim um ponto de partida, mas é uma descrição virtual (só ao reler o poema para escrever dele me apercebo) determinada pelo "como" do 3o. verso. Com efeito, esse como interioriza quanto está antes dele, e que será uma visão exterior, por analogia, de uma visão interna (as "luzes interiores"). O 1o. verso da segunda parte introduz explicitamente um outro motivo ou tem, ou atitude que é muito recorrente na minha obra (se não é de facto o cerne dela), e que estava latente no começo: em tudo a presença dolorosa ou intensa das vicissitudes humanas e sociais, vistas não tanto em contraponto que seria uma relação romântica, mas naquela sobreposição contraditória do físico e do psico-moral que a plácida e pensante aragem física representa, o que, na verdade, significa a minha pessoal convicção – sempre poematicamente re-verificada – de que o humano está para além e acima do "natural". A adjectivação atribuída aqui à "aragem" que aparecera no 1o. verso como apenas "tépida" desenvolve através dela o caracter ambíguo do início do poema, propiciando, na descrição objectiva, uma fusão do físico o do psico-moral. A aragem "tépida", que era um anúncio subentendido de "primavera", passa como que ao outro plano, não só por ser agora, além de plácida, pensante, mas por ser de uma série de circunstâncias ou eventos de um mundo maligno e desfeito (os cinco versos seguintes). Sobre tudo isso, "perpassa a noite" (que é o primeiro nome referido logo no início do poema) "véus de primavera", ou sejam diáfanas sequencias de sensações ou representações primaveris, enumeradas até à culminação de uma luz diurna (virtual adentro da virtualidade) que, oposta aos véus primaveris da noite, devora nos rostos, como a vida, os "juvenis sorrisos, / traços ligeiros de alegria funda", deixando em seu lugar as rugas de haver-se existido. O rio, que está presente no 4o verso, reaparece quase no fim do poema, como símbolo de uma paz que resiste e fica, noturna, até à morte. Há, ao longo do poema, parece-me, e na mesma cadência dele, uma. atmosfera de virtualidade primaveril quo o permeia, como contraste contra os horrores de um mundo e de uma sociedade em processo de envilecimento.
Curiosamente, as "glicínias que amanhã estarão floridas" colocam essa primavera alegórica num momento de expectante antecipação, análogo ao da descrição "real" que constitui o poema, antes citado, de muitos anos depois. Só uma pesquisa minuciosa ao longo de uma obra vasta como a minha (o que não me cabe fazer nem importa muito que se faça ou não), poderia dizer se esta atitude em relação à Primavera, que aqui se cifra em dois poemas que ocasionalmente recordei, é realmente característica, ou uma coincidência entre dois poemas em que a Primavera (expressamente referida no título de ambos, mas só mencionada declaradamente no segundo) é mais centralmente conspícua. De qualquer modo, parece-me que a coincidência é algo significativa, e nunca eu na verdade pensara nela, antes de ser convidado a ocupar-me da Primavera.
Para mim, então, segundo estes dois poemas espaçados de mais de quinze anos e de muitas transformações da vida, a Primavera é sobretudo duas coisas que podem ser significadas pelo mesmo momento: ou a antecipação dos esplendores estivais, de uma luz devoradora, ou aquela promessa latente e já brotante que no fim do Inverno se desenha e define. Não é tanto, dir-se-ia, uma estação em si, cuja autêntica existência, enquanto tal, não é aliás universal, já que em vastas regiões do globo ela não se processa ou não é evidente como a tradição europeia a fixou tradicionalmente na literatura dita ocidental. Que esta visão não me foi dada pela experiência de regiões onde a Primavera não existe, nem me foi modificada pela de outras onde ela se manifesta poderosamente, mostra-o o facto de o poema coligido no livro de 1950 ter sido vivido e escrito em Portugal, de onde só saí em 1959. Do segundo poema no tempo, e o do livro de 1969, poderá todavia dizer-se que a precisão descritiva me foi suscitada pela experiência, nos fins de 1965 e princípios de 1966, do longo e gelado Inverno do norte dos Estados Unidos, que torna o momento antecipador da Primavera mais fascinante do que jamais eu pudera antes de tê-lo sentido ou visto. É como se uma nova experiência não fizesse senão reiterar e acentuar uma forma de sentir a Primavera que já antes me seria peculiar.
E não será, de facto, o modo mais justo de senti-la? Para mais, se um poeta tem, como eu, tentado escapar a tudo quanto sejam clichés tradicionais da cultura ou da expressão, que em geral impedem ou distorcem uma renovada experiência da realidade exterior ou interior. Ora a Primavera, talvez mais que nenhuma das outras estações, é um cliché tradicional, perfeitamente simbolizado na famosa pintura de Botticelli, com a dama exibindo-se na sua elegância florida para perpetuar séculos e séculos de vivências mitológicas.
Sou eu contra as mitologias, quando, em tantos dos meus poemas, se faz apelo aos deuses? É este apelo, como a presença deles, uma complacência retórica? Sendo contra as mitologias, creio, porém, eu pretendo crer, realmente neles, ou na existência de forças que eles representam, e a que o cristianismo, com as suas sequências de ateísmo tão primário como ele, veio trazer uma marca de inibição, proibição, negatividade. Assim sendo, como conciliar a minha visão do homem como o ser que nega a natureza, com o desejo, ou quem de que os deuses, ou quem por eles, possam regressar? Como conciliar essa crença, se o é, nos deuses, com um integral ateísmo?
É que os deuses não representam a personificação de forças "naturais", mas o esforço de humanização do homem na sua própria história, o seu anseio de poder e de liberdade, precisamente contra a visão limitadora, em termos sócio-morais, do que a natureza (ampliada pelo homem) seja. Crer neles, ou evocá-los, é refazer uma mitologia mais profunda do que não só as prescrições "naturais" impostas pelo cristianismo, como também do que as próprias proibições de que o paganismo antigo fez as suas sociedades de classes e de escravos. E quem diz o paganismo (pelo qual se entende sempre o greco-romano) diz todas as outras religiões tradicionais em qualquer parte do globo – as quais, como ele e o cristianismo, se inventaram para corresponder ao terror do homem só em face de uma natureza hostil, incerta e caprichosa, e para garantir a estabilidade das classes que instalaram o seu poder sobre uma falsa protecção contra esse terror. Os deuses, usados e transformados pelas instituições religiosas, são instrumentos de dominação. Mas, evocados e invocados contra elas, e contra quanto elas impuseram de moralismo ao ateísmo contemporâneo, são armas de liberdade. Crer neles é uma forma de não crer em nada, superando-se o ateísmo dos que não creem por indiferença ou para se oporem aos que "creem em Deus".
Não somos já as sociedades ou populações agrárias primitivas que iludiam o seu estar no mundo com celebrações propiciatórias do renascer da natureza e da vida, fingindo que a natureza não renasceria sem elas. Nem temos já o direito de sermos as sociedades urbanas recentes que, para compensar-se do seu distanciamento da terra, precisam de reinventar o mito da Primavera. Neste vazio terrível em que só os deuses perpassam como imagens do nada em que existimos, só nos restam os nossos corpos e os alheios, e a angústia (e a aceitação) de sermos sem razão alguma, num mundo em que todas as justificações assumem um ar de falsidade moral.
Tudo o mais, incluindo o falarmos nas estações sem despojá-las dos seus mantos pretéritos, não é senão o desejo que sentimos, contraditório e trágico, de pertencer a algo que se renova, quando nós mesmos, pelo que ainda nos prende à natureza, nos não renovamos no tempo que nos devora; o desejo de sermos um elo de uma cadeia que, na verdade, e absurdamente, nos marca física e psicologicamente com os erros dos nossos antepassados, e, ao mesmo tempo, se interrompe a cada instante na morte dos entes queridos ou na nossa própria; o desejo de sentirmos que tudo quanto sonhamos e fazemos é algo que se insere numa "natureza" de que não somos parte, por dela havermos saído quando nos tornámos humanos.
Se há uma condição de ser-se humanidade (por quanto tempo ainda?), que nos condiciona e limita, esta é, que todas as outras não são senão efeitos das traições sociais. Em vão, por isso, podemos celebrar rituais primaveris, cerimónias estivais, rituais de Outono, cerimoniais de Inverno. E é o que torna mais dolorosa e também mais – como dizer? – ridícula essa ebriedade de recomeço e de renascimento, que a Primavera lendariamente simboliza. No curto espaço entre duas noites que é a nossa vida (declaração que é um cliché clássico…), não há mais que desejar senão que perpasse a noite de véus de primavera, véus que, todavia, sabemos não evitam, nem iludem, que a mesma noite aí se esconda até à morte que é ela. Quando nos damos às tradições ancestrais que conformam até (e é uma luta que cumpre ao poeta moderno lutar estrenuamente) a própria linguagem que nos é dada e que é nosso dever, em cada instante criador, pôr em questão, devemos sempre tratá-los com suspensão irónica ou dramática, por forma a arrancar-lhes os dentes de uma ancestralidade que em nós tenta conservar estruturas obsoletas do viver social. Ou então atermo-nos a uma descrição minuciosa que, por seu lado, também des-mitifica a realidade. Só assim será possível contribuir-se para a criação progressiva de um homem renovado que seja capaz de, sem traição à sua própria existência, contemplar, se tal quisermos, o fluxo das estações, e, entre elas, destacar a que mais carregada vem de símbolos que ansiosamente desejam – possuindo-nos através daqueles desejos desesperados de sobrevivência – manter-se à nossa custa e do que em nós é liberdade. Assim é que para esta caminharemos, a nossa e a dos deuses. E a Primavera poderá então vir – aonde quer que nitidamente venha – simplesmente ela mesma, como um renovado mito que de nada se sustenta a mais do que do seu acontecer, e que nos não prenderá em mágicas malhas de pretensas justificações de ser-se humano neste mundo sem outro.
Enquanto isso não é possível, talvez que um poema novo, saído desta meditação que a Primavera foi chamada a suscitar, diga dela esse fugir do instante que está iniludivelmente ligado ao próprio momento em que ela aparece:
Não flores de primavera ou recorrentes águas
que das montanhas pardas se descendem
aos vales que o horizonte encobre verdes,
eu peço ou espero. Apenas no arvoredo
imagens do que erecto é corpo humano
entre as pedras esparso e soerguido.
Como de acaso é visto o que em desejo
olhando nos buscamos e buscámos,
assim se movam ramos e folhagens
em movimentos leves e contidos.
E o mais não seja quanto em sonho os sonhos
não são de primavera mais que ardor, perdidos.
Santa Barbara, Outubro de 1974
Este ensaio foi editado mais recentemente em Poesia e Cultura (Porto, Caixotim, 2005, p. 189-198) e vem acompanhado da seguinte "Nota do Autor", destinada à edição do texto numa revista que, segundo Mécia de Sena, jamais se fez:
Este texto tem uma breve história que vale a pena contar. Para um belo projecto gráfico que era sonho seu editorial da Inova, Quatro Estações, pediu-me`há anos Cruz Santos que escrevesse sobre a Primavera. Objectei que não me considerava poeta "primaveril" — mas ele já tinha as outras estações todas mais ou menos comprometidas, e não desistia de que eu efectivamente escrevesse sobre uma e era aquela. Cedendo à insistência amiga, escrevi este texto mais ensaístico que "poético" (e que termina todavia com um poema escrito na ocasião, o qual, diga-se de passagem, não me parece nada mau), em que de certa maneira mostrava como a Primavera e coisas semelhantes tinham, ao que penso — pouco que ver comigo. Ao mandá-lo, dizia ao Cruz Santos que ele deveria sentir-se livre de rejeitá-lo, se o não achasse tão poético como o seu projeto requeria, mas ele não desistia de um texto meu. E o caso é que — embora muito mais à minha maneira que "primaveril" — dois meses depois me saiu o texto poético que acabei por escrever e é parte desse projecto Quatro Estações. Mas Cruz Santos pediu-me agora para publicar o primeiro texto nesta revista — pois seja. E os leitores interessados nas minhas reaccções primaveris (se os há) que comparem os dois textos.
Abril de 1976