Antecipando de uma semana o “Dia Internacional da Poesia”, o Brasil celebra a 14 de março o seu “Dia Nacional da Poesia”.
No desejo de bem assinalar a data brasileira com uma dicção portuguesa, ocorreram-nos estas palavras de Jorge de Sena: “Nesses anos 30 e nos 40, a literatura brasileira moderna, e muito especial a poesia, teve para os poetas portugueses uma importância enorme, e poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Ribeiro Couto, etc., era a imagem complementar de uma modernidade que, em Portugal, se manifestara quase só em Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros, cujas obras, até aos fins dos anos 30 e princípios de 40, eram mais mitológicas e menos acessíveis do que as daqueles poetas brasileiros”. [1]
Dos poetas enumerados, decidimos trazer a nossos leitores as páginas que Jorge de Sena dedicou a Carlos Drummond de Andrade, nas quais o próprio tema da poesia se faz muito presente. Trata-se de duas pequenas notas e de um artigo, publicados em maio e junho de 1946 [2], ou seja, bem antes de o poeta português e o poeta brasileiro se encontrarem pessoalmente, dando origem à amizade que ambos prezavam.
Nota Biográfica
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 1902. O seu primeiro livro — «Alguma poesia» — publicado em 1930, não passou desapercebido, e, a propósito dele, afirmou o crítico Eduardo Frieiro: «Digamos simplesmente que C. D. A. é um poeta moderno e dos mais representativos. (…) Há nos seus poemas, não construídos, isentos de literatura, um lirismo íntimo, recalcado, que se alimenta das pequenas coisas da vida e tira de tudo um motivo de irónico desencanto». Falava-se, então, muito de «poesia indirecta», e nada aparentemente mais indirecto que essa poesia refugiando-se na narração de um caso ou de um momento, jogando humildemente com uma ideia fixa. Pouco depois da publicação do segundo livro, «Brejo das almas» (1934), em que a ironia já não inibe, antes enforma o lirismo, o poeta vem para o Rio de Janeiro, chamado a ocupar o cargo de chefe do gabinete do Ministério da Educação e Saúde, cargo que abandonou recentemente. E no Rio, onde vive, tem publicado: o admirável «Sentimento do mundo» (1940), que inclui a célebre ode a Manuel Bandeira; «Poesias» (os três livros anteriores, mais «José») — (1942); «Confissões de Minas» (1944) e «O gerente» — novela (1945). Nestes dois últimos volumes, nomeadamente o primeiro, esse homem seco e triste, metido consigo, de boca apertada, óculos fortes e fronte alta, revela-se um prosador de primeira plana. O seu último livro é «A Rosa do Povo», aparecido há seis meses. Hoje, a sua poesia é tão naturalmente construída como há dezasseis anos o não era. Mas «isenta de literatura» é que ficará para sempre.
Mundo Literário, nª 3, 25/5/1946
UMA ARTE POÉTICA, a propósito de “Procura da Poesia”
Este poema, um dos cinquenta e tantos que constituem o magnífico último livro de Carlos Drummond de Andrade, é uma completa arte poética. Na sua forma concisa, define exactamente a «procura da poesia», e quase pode dizer-se que só tem par nas páginas célebres do Rilke dos «Cadernos de M. L. Brigge».
São opostas, no entanto complementares, as recomendações do brasileiro de Minas Gerais e do europeu nascido em Praga.
Enquanto este último procurou captar o que de humano subsistia em coisas que estiveram próximas, Drummond aconselha: «não tires poesia das coisas» e, noutro passo, comenta: «Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase».
Neste comentário está contida a essência dramática da sua criação poética: a crise terrível da poesia que perdeu a ênfase, da poesia que se envergonha até do luxo de ser bandeira, mesmo de papel, perante a miséria do mundo presente.
Poema, diz mais do que digam dele. E além disso, Carlos Drummond, embora a si próprio chame «…poeta brasileiro, não dos maiores porém dos mais expostos à galhofa», é um dos maiores poetas brasileiros.
As suas palavras teriam, portanto, a audição reservada à «autoridade» que os adjectivos conferem, ainda que realmente Drummond não fosse considerado, entre nós, com conhecimento de causa, o grande poeta que é.
Porque em Portugal os adjectivos chegam sempre primeiro que as provas dadas; e até, nas letras como nos estudos, quem se «porta bem» é dispensado das provas finais…
Mundo Literário, nª 3, 25/5/1946
A ROSA DO POVO, por Carlos Drummond de Andrade
Esta «Rosa do Povo» (Ó Eluard! La Rose publique!... — estes vocativos são tão bonitos, não são? — com eles podem encher-se páginas e páginas a fingir de crítica) é um grande livro de poesia. De facto, aqui e ali, vê-se que, por intermédio de Eluard, igualmente ascético em matéria de música, Drummond renovou a sua expressão. Mas…
Estes poetas são meus. (…)
Furto a Vinícius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiacovsky.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.
Isto é: quando o poeta sabe que toda a sua vida está jogada no caminho que aceitou, e este último na possibilidade de expressão que encontrar em si próprio — todos os outros poetas são seus irmãos; não pode haver, perante eles, sentimento de propriedade nem da própria nem da alheia expressão, e quanto os outros tenham dito é a esperança do que conseguirá dizer. Daqui resultará uma originalidade superior, que se não rebuscou fugindo aos mais, nem os traiu na sua confiança de publicadores de versos.
Em presença de um poeta como Carlos Drummond, a atitude de um crítico, que não seja poeta só nas horas vagas, é de contínua e sobressaltada admiração. Que a admiração, de poeta para poeta, não se suspende apenas das perfeições, mas das imperfeições paradoxais e imprevistas. Tudo menos o seu tão pessoal sentimento do mundo é imprevisto na poesia de Drummond. É também imprevista, imprevista e caprichosa, a poesia de um Manuel Bandeira, embora no fundo, muito afim da tradição portuguesa, mesmo quando evoca, nativistamente, o Recife da sua infância. Mas o que em Bandeira é plena liberdade formal, capacidade de passar de um «cantar de amor», imitação perfeita, a «Mozart no céu», em Drummond é plena consciência crítica. De Bandeira, nunca se sabe que poema virá, ainda que se saiba, de antemão, qual a ironia terna, o misto de resignação e esperança de que será feito. Num poema de Drummond, ou os versos, subitamente cortados, dão lugar a outros, ou na sequência poética se intercala uma sugestão sem complacências para com nenhum dos tabus da própria decência quotidiana.
Poeta do finito e da matéria
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
— eis o que, de facto, ele é: impiedoso e, no entanto, sensível àquela intransmissível ciência da vida, que o mundo perde com qualquer morte. Só assim poderia atingir a extrema dignidade do epicédio a seu pai («Como um presente») ou a Mário de Andrade («Mário de Andrade desce aos infernos»), o poeta que confessa:
ignoro profundamente a natureza humana
e acho que não devia falar nessas coisas.
Estes dois versos são do poema «América» («Esta solidão da América… Ermo e cidade grande se espreitando»), E que distância vai da América de Walt Whitman a esta de Drummond de Andrade! O mundo percorreu quase um século de desilusões e esperanças, de alterações político-semânticas das palavras. Depois, o bardo norte-americano viveu detestando aquela secura que Ribeiro Couto sintetizou admiravelmente («nem catequese, nem filhos mestiços»), e que não houve no Brasil; e só uma voz moderna — a de Carl Sandburg — se aparenta com a de Drummond de Andrade, no circunstancial, no anedótico, sarcástico e contido.
Há quem pergunte, aliás sinceramente, se a poesia resistirá a certas imagens, que ferem, não já o gosto, mas aquela discreção mínima, filha da repugnância pela imundície, e que faz com que, nos milhares de obras que se têm escrito, haja milhares de situações e de sequências impossíveis e, no entanto, aceites, porque a humanidade gosta de perfumar-se e angelizar-se, esquecer a escravidão da sua existência física. Esta palavra «escravidão» é, aqui empregada, uma concessão a esse gosto comum. Resistirá, por exemplo, a poesia à aparição do piolho? E porque não? Não é «Les chercheuses de poux» uma das mais belas poesias de Rimbaud? Mas é simbolista… e escrita em francês. Sejamos francos. Não anda pelo menos 70% da humanidade coberta deles? Uma das mais enternecedoras paisagens das nossas aldeias ou dos nossos bairros pitorescos não é o espectáculo de uma mãe, sentada à porta do seu lar, com a cabeça do filho no regaço, e catando-o meticulosa e carinhosamente, enquanto os passarinhos adejam nos telhados próximos? Sejamos coerentes: a poesia não pode nem deve ser capa de misérias, apregoam. Pois não o será de nenhuma. A não ser que o poeta, realmente, só veja das misérias aquelas que os tratados teóricos de economia lhe apontam como tal. Mas a miséria do homem é de toda a parte e de todos os tempos, não é verdade? Pois toda a poesia a tem ignorado. Lá se vai o último refúgio!… e
alguns achando bárbaro o espectáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(in Sentimento do mundo)
Ou seja, no que respeita à poesia — a
vida: captada em sua forma irredutível
já sem ornato ou comentário melódico.
A arte ou a poesia não são refúgio contra qualquer espécie de verdade. São elas próprias a verdade. Se não há outra, a culpa não lhes pertence.
Para mais, a nossa época não me parece tão propícia ao idílio, como querem crer inúmeros poetas. Até, agora por momentos Drummond de Andrade:
………………………………………
Irmãos, cantai esse mundo
que não verei mas virá
um dia, daqui a mil anos
talvez mais… não tenho pressa.
Um mundo enfim ordenado
………………………………………..
sem leis e regulamentos (etc.)
Quem acredita hoje, que, no futuro, haja um mundo «sem leis e regulamentos»? Então julga o poeta que a estrutura jurídica vai acabar como, em Roma, começou o direito do Dr. Assis? — por não existir? Estes milénios de história não chegam para o desiludir? Quer mais um? Não vê que a tendência inexorável do mundo para a multiplicação das liberdades colectivas apenas engendrará, constantemente, uma ainda mais extensa discriminação de liberdades individuais, a pulverização da liberdade individual em milhentas liberdadezinhas, cujo exercício será codificado, uma por uma?
Faça o poeta, se o entusiasmo o acomete, os versos da sua esperança provisória. Mas não os misture com os outros, aqueles em que denuncia a picara tragédia do momento presente como «A flor e a náusea» ou «Anoitecer», ou aqueles «Versos à boca da noite», que atingem uma gravidade elegíaca notável em qualquer literatura.
Não — entre a «Divina Comédia» e o «Paraíso perdido», o poeta tem direito de escolha. Mas entre o «Paraíso perdido» e o «Paraíso reconquistado» a cada esquina da história, o poeta tem o dever de jogar pelo seguro — e seguro, seguro, só a certeza de que
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Da riqueza deste livro, dificilmente se pode dar uma ideia. Porque, na sua complexidade, há respostas para todas as «safadezas» dos críticos, e desmentidos para todas as afirmações, mesmo laudatórias, que eles caiam na asneira de fazer.
Mundo Literário, nª 4, 01/6/1946
Notas:
1. Estudos de Cultura e Literatura Brasileira, Lisboa, Ed. 70, 1988, p. 9
2. Hoje, encontram-ses compilados em Estudos de Cultura e Literatura Brasileira, Lisboa, Ed. 70, 1988, p. 37-44