José Augusto Bernardes destaca o Maneirismo como ponto de consonância entre Jorge de Sena e Vítor Manuel de Aguiar e Silva nas leituras que traçam de Camões. Sob esse mote, abaixo transcrevemos um dos primeiros textos de Sena a abordar a questão.
Só muito tardiamente, nos estudos literários, o termo Maneirismo começou a surgir, à semelhança do que vinha sucedendo há décadas para as Artes plásticas, como algo correspondendo, na literatura, a características específicas, comuns ao período extremamente importante, entre o Renascimento e o Barroco, que é o da arte da 2a metade do séc. XVI. Para a cultura portuguesa, julgo decisiva esta conceituação que vai contra a mistificação longamente repetida de um Renascimento eminente (ou fruste, conforme os historiadores são liberais ou, mais recentes, da esquerda) e de um Barroquismo, também há pouco emergindo do desprezo em que o tiveram os iluministas (seus descendentes directos), o romantismo libertário (que tanto dominou nos países latinos), os naturalistas, e outros.
A conceituação de maneirismo foi lenta, e está longe de ter adquirido aquela divulgação que o garanta das pretensas hesitações críticas que são obediência a hábitos de pensamento, esquemas herdados, ou primários preconceitos políticos. Para as artes plásticas, só as pessoas mal informadas não reconhecem o maneirismo como um período típico, autónomo por direito próprio, depois dos sucessivos trabalhos de críticos como Goldschmidt, Weibasch, Voss, Friedländer, Pevsner, Hoffmann, que, desde o início da segunda década deste século, o foram impondo, até a eles mesmos. Para a literatura, a conceituação foi praticamente inexistente, e só há poucos anos ela emergiu das confusões idealísticas e eruditas.
Em sentido genérico, maneirismo foi longamente sinónimo de amaneiramento, de petulância cultista ou conceptista da forma, de exagero despropositado e oposto à sobriedade e à elegância «clássica», quando não indício de extravagâncias mórbidas e suspeitas. Sem preconceitos classicizantes, Ernst Robert Curtius ainda, em 1953 fala, como John Addington Symonds, oitenta anos antes falava do «maneirismo em que mergulhava a poesia grega no tempo de Píndaro», no «maneirismo afectado da literatura romana do fim da Antiguidade, comum aos pagãos e aos cristãos». Mas Curtius, no seu afã monumental de provar a unidade essencialmente latina da literatura ocidental até quase aos nossos dias, não só adopta para maneirismo, embora desprovidas de conteúdo pejorativo, as conotações, acima referidas, como, na confusão imensa de caracterizações em que mergulhou no nosso tempo a ressurreição do Barroco, propõe que maneirismo, «denominador comum a todas as tendências opostas ao classicismo», e «constante da literatura europeia», e «fenómeno complementar do classicismo de todas as épocas», substitua o termo Barroco, já que este é mais pesado de sujeições históricas, e já que, diz ele, «o binómio Classicismo-Romantismo é de alcance muito relativo». O Barroco não seria senão um aspecto de outra entidade mais ampla: o Maneirismo. E toda a literatura europeia não seria mais do que a coexistência, às vezes pouco pacífica, de uma tendência clássica e de uma tendência maneirista, na medida em que toda ela derivaria da integração cultural, operada pelos «maneiristas dos sécs. V e VI, do paganismo no cristianismo». E Curtius esmaga o leitor, exemplificando com copiosa erudição de Baixo Império ou de Alta Idade Média, como o hipérbato, a perífrase, a paronomasia, o metaforismo amaneirado — características tão ridicularizadas no Barroco escolar — são constantes maneiristas da literatura europeia, embora apetecesse perguntar-lhe, se ele não estivesse morto e se, vivo, não fosse tão malcriado, porque razão os comparativismos são quase sempre feitos entre os autores da decadência latina e aqueles da segunda metade do séc. XVI e primeira do séc. XVII que tendemos a considerar como especificamente maneiristas. Numa breve nota ao fim deste precioso capítulo sobre o maneirismo, de Literatura Europeia e Idade Média Latina, o criador da análise tópica declara: «O maneirismo dos metaphysical poets, de Marino e dos marinistas, e da segunda escola silesiana, deveria ser estudado novamente na base do espanhol». Curtius que, mesmo a propósito de Gôngora, só cita Dâmaso Alonso para reforço de duas ou três minudências eruditas, não podia contudo saber que dois anos o separavam da definição dos «metafísicos» como maneiristas, proposta por Sypher numa tentativa de amalgamar as artes plásticas e a literatura, mas não podia ignorar que a aproximação de metafísicos e de Marinistas já estava feita por Mário Praz, desde 1925, porque cita de passagem, para depreciá-los, alguns estudos posteriores desse mesmo autor. Mas o próprio Mário Praz, em The Flaming Hearth (1938), ao republicar um estudo de 1931, sobre Donne, remete timidamente para Sypher o leitor que queira informar-se sobre o «carácter maneirista da poesia de Donne».
Que o Renascimento era uma coisa mais ampla, mais contraditória e mais complexa do que primariamente ainda se pensa, já o sabiam autores tão importantes na conceituação dele, como Burckhardt em 1860 e Walter Paten na mesma data em que Symonds fala de «maneirismo». Que o Barroco se caracteriza, logo no seu início histórico, por um anti-maneirismo (ao contrário das generalizações apressadas de uns, ou «tópicas» de Curtius», ficou caracterizada por Friedländer, em 1929, precisamente na época em que ele, Pevsner e Weisbach ressuscitavam o Barroco artístico.
O que se passa com Curtius, tão integrado no idealismo filosófico que é o incipiente ou digerido substracto intelectual dos romancistas alemães, é um misto de horror da História (substituída pela conotação erudita das transmissões culturais através dos tempos), de ignorância das Artes Plásticas (ainda hoje tão comum na cultura dos universitários de letras), e do gosto germânico da tipificação abstracta em tão vastas unidades que o sentido delas se perde. Que será, através da História, e a não ser simplismo nebuloso, um binómio Classicismo-Maneirismo, que substitua o Classicismo-Romantismo, por este ser confuso de mais?
A confusão entre a tipificação é vasta de caracterizações idealisticamente aplicadas, por analogia, a autores ou obras aparentadas estilisticamente, mas situadas em diversos contextos espaciais e temporais (e temos essa confusão nos estudos históricos, levada ao máximo requinte com os paralelos de Toynbe), e a tipificação restrita, igualmente idealística na sua simplificação, que reduz os períodos culturais à identidade com escolas ou grupos, só pode ser resolvida por uma tipologia que, segundo planos diversos de análise, discrimine e identifique, como virtualidades sempre possíveis, as atitudes estéticas, recorrentes civilizacionalmente. O que permite falar de uma recorrência que nada tem das perenidades idealísticas, sem a confundir com a sucessão histórica de escolas literárias ou artísticas em que uma determinada atitude assumiu, na realidade concreta das obras ou nas intenções polémicas dos autores, uma importância nominalista e predominante. À luz dessa tipologia que enfim defini e propus em 1960, o maneirismo de, por exemplo, um Camões resulta de uma emoção clássica e de uma expressão barroca; e, neste sentido, é possível falar-se, como atitude estética, do maneirismo de autores dispersos no tempo e no espaço, na Grécia e em Roma, em épocas diversas dessas duas civilizações, ou em épocas diversas das artes e das letras europeias, sem cairmos na generalização de tudo vermos em termos de um classicismo ideal para que tudo tende, quer os clássicos normais, como bem conceitua Curtius ao falar de classicismo, quer os maneiristas «anormais» mas persistentes.
Acontece, porém, que o maneirismo, primeiro valorizado na obra de pintores italianos que se afastavam decadentemente das premissas classicizantes de Rafael (que, sob certos aspectos, é um maneirista), como Pontorno, Bronzino, Parmigianino, e eram vistos como enlanguescimento dos ideais clássicos, transitou desses estreitos e locais limites históricos para limites mais vastos, sem perder — e antes apurando — as suas características periodológicas. E, enquanto se processava na Inglaterra, desde 1921, a ressurreição crítica dos poetas metafísicos e do drama isabelino e jacobita de segunda ordem, e o centenário de Gôngora propiciava em Espanha uma revisão total do seu prestígio e da sua importância, tudo se preparava para a conceituação do Maneirismo como uma das mais decisivas épocas da cultura europeia, algo que se destacava do Renascimento, e não era por forma alguma um pré-barroco. Sem prejuízo, é claro, da continuidade fundamental da cultura europeia, muito pouco compassiva de periodizações rígidas, na sua sobreposição de tendências que se sobrevivem, e de atitudes que subterraneamente preparam a acessão ao nominalismo escolar.
Em Portugal, o Renascimento é algo que, iniciado com a laicização cortesã-administrativa da cultura, e com as navegações e conquistas, vinha processando-se desde o início do séc. XV. Se o medievalismo subsiste tanto, ele não subsistirá mais do que na Alemanha onde foi possível feudalisticamente a Reforma protestante, ou que na Itália, onde as revoluções populares levam ao poder camarilhas esclarecidas como as de D. João I ou de seu filho o infante D. Pedro. Esse movimento, que culmina no estabelecimento de um Império em que a religião deve submeter-se aos interesses do Estado (e, com Frederico II, de Hohenstauffen, é, no séc. XIII, isto mesmo o princípio do fim da Europa feudal e teocrática), exauriu-se nas contradições económicas patentes em meados do séc. XVI. Mas, na Inglaterra desse tempo, a centralização dos Tudors conduzira o país à beira de um barroquismo como o da Espanha dos Habsburgos, e, na Itália, Miguel Ângelo duvidava, em pedra e em soneto, da capacidade humana para ser-se o David que ele esculpira antes. A segunda geração dos tidos em Portugal por «renascentes» oficiais (nas histórias literárias), que é a de Camões e de António Ferreira, já se cinde entre uma extremada recusa à tradição medieval, recusa que caracteriza o afã clássico da agonia do Renascimento (e Ferreira comporá a mais bela peça do classicismo europeu), e uma desesperada nostalgia do medievalismo ecuménico que (como em Spencer e em Tasso, mais jovens do que ele trinta e vinte anos, respectivamente) será a obsessão épica de Camões. Por volta de 1620, o maneirismo que se inicia com Camões e os tão mal conhecidos poetas confundidos com ele ou tidos por servis imitadores seus, entrou em declínio. Rodrigues Lobo e Manuel da Veiga Tagarro, este mais tardio, serão os últimos expoentes delicados desse período que, no espírito de Francisco Manuel de Melo lutará ainda com o Barroco. O Concílio de Trento iniciado em 1545 e cujas decisões são promulgadas em 1564, e que dividiu demoradamente os teólogos e a hierarquia da Igreja, a ponto de supor-se impossível levá-lo a bom termo (e o bom termo foram soluções de compromisso), coincide exactamente com a primeira metade do período maneirista, cujas angústias o inspiram, e a arte barroca, que ele por sua vez inspira, irá florir até ao neo-classicismo da segunda metade do séc. XVIII, só depois de ter lutado, pela supremacia, contra a dialéctica da fluidez e da firmeza do traço, nas artes plásticas, e a dialéctica do espírito em perseguição de si próprio, nas letras, que são típicas do maneirismo. Quando a fluidez da voluta se geometriza, e a firmeza do traço se torna tridimensional; quando a dialéctica de um Camões, fugidia e visio¬nária como a de Giordano Bruno, perde o sentimento heróico-trágico da vida — então, sim, a Idade Barroca triunfou. Mas sobre as ilusões humanísticas do Renascimento já o maneirismo havia, muito antes, agonicamente triunfado. Não sem razão o grande poema épico do Maneirismo, que são «Os Lusíadas», tem sido interpretado como quintessência do Renascimento. Este já era uma quintessência optimística do pessimismo medieval. E quintessência de quintessência é o que dialecticamente é possível, quando uma inteligência como a de Camões não poderia senão ver, como viu, na sua própria vida e na da sua pátria, o desastre expiatório do Renascimento inteiro.
Em 1948, muito antes de falar-se de maneirismo literário, no nobre sentido periodológico de que só agora (o livro de Sypher é de 1955) começava a falar-se, eu apontei o maneirismo camoneano. Ele o é de dois modos: tipologicamente e na sua periodização histórica. E, nesse estudo, eu descrevia como tal maneirismo se processava, dizendo: «É preciso ter em consideração que o petrarquismo renascentista, revivescência cultura-lista daquela intelectualização conceptual do formalismo cavalheiresco das «cortes de amor», que a poesia de Petrarca por sua vez já fora, é, como acontece sempre, mais do que uma escola literária, um modo de expressão. E também sempre as escolas literárias literatizam, o que, nos criadores autênticos, é um método da consciência criadora, um sistema convencional de representação da realidade como o intelecto a apreende. Mas o curioso é que, nos epígonos dessas escolas, naqueles em que já a «literatura» se decompõe sob o influxo de novos modos de expressão, esse método pode vir a ser precisamente a consciência criadora». E por aí adiante.
Neste trecho, creio que está definida, exactamente, a transmutação daquele maneirismo final que parece ser o dos Bronzinos e Parmigianinos em relação aos Rafaéis, em Maneirismo por direito próprio, de que Camões é o mais alto expoente lírico, naqueles seus poemas em que, como nesse mesmo estudo eu dizia, «reduz sempre as emoções a conceitos, conceitos que não são ideias, mas a vivência intelectual delas.
Maneirista como o Miguel Ângelo e o Ticiano do fim das suas vidas, como Montaigne, como John Donne, como Bruno, e como o serão Shakespeare e Cervantes no fim do ciclo, Camões é uma chave da literatura portuguesa que para ele reverteu e dele descende até nós. E parece que, para compreendermos uma e outro, indispensável será saber — depois de saber-se o que é Renascimento e o que é Barroco — o que seja Maneirismo.
Nota:
As obras ou autores referidos, cuja leitura mais imediatamente importa, são: Ernst Rober Curtius, Literatura Europeia e Idade Média Latina, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957 (trad. port. da edição alemã, original, de 1953); Wylie Sypher, Four Stages of Renaissance Style, Anchor Books, Nova Iorque, 1955; Mário Praz, The Flamming Heart, Anchor Books, Nova Iorque, 1958; Jorge de Sena, Da Poesia Portuguesa, Ática editora, Lisboa, 1959; Jorge de Sena, Ensaio de Tipologia Literária, Faculdade de Filosofia de Assis" 1960 (Publicado em Dialécticas Teóricas de Literatura, 1977).