A recensão, de 1963, ao livro dos Classiques Garnier, é pretexto para que Jorge de Sena disserte sobre um dos grandes ícones femininos da nossa cultura: Mariana Alcoforado. Lidas e relidas ao longo dos séculos, as suas “Cartas Portuguesas” continuam a granjear admiradores e a inspirar novas obras. Destas, talvez a mais famosa “recriação” seja a que, muito claramente, recebeu o título de Novas Cartas Portuguesas, de autoria das “três Marias”: Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. Como sabemos, pelo caráter político de que se revestiu, às vésperas do fim do regime salazarista, não foi pequena a celeuma que provocou (neste sentido, ver breve comentário de Sena).
Com o estranho título em epígrafe, a conspícua colecção dos Clássicos Garnier (embora muita gente seja conspícua pelo hábito e a comodidade de ser tida como tal) procedeu à reedição das celebradas «Lettres Portugaises». Uma colecção de clássicos, que vise à publicação decente, ainda que não exactamente crítica (como é o caso frequente nesta colecção), de obras importantes da literatura universal, não pode permitir-se a leviandade que esta edição representa. Porque os autores dela não resolvem o mistério da autoria dessas cinco cartas que são uma das fontes do sentimentalismo europeu e do romance moderno, e apenas se limitam a defender, e escassamente, uma das muitas atribuições de que as mesmas têm sido objecto. Podiam publicar, juntamente com elas, as obras do homem que recebeu, em 1668, o privilégio ou a licença de editá-las, em 1669. Podiam, no prefácio, expor as razões da atribuição proposta. Mas não podiam — e a colecção muito menos — proceder à mistificação antropofágica que este volume significa. Será que a França, cada vez mais privada de «grandeur», começa a sofrer de mania das grandezas, e entra a devorar como seu o que só hipoteticamente lhe pertence?
A identidade de Mariana Alcoforado, freira no Mosteiro da Conceição em Beja, (sua terra natal), as suas possíveis relações com o futuro marquês de Chamilly (que então servia nas Guerras da Restauração de Portugal), o facto de ela ser tida no convento como letrada, a circunstância curiosa (e não atentada) de Portugal ter «ignorado» por século e meio esse êxito editorial (quando Mariana morreu octogenária no seu convento, em 1723, as edições na suposta tradução francesa e noutras línguas contavam-se por dezenas), tudo isso está estabelecido fora de dúvida. Mas não prova decisivamente a autoria daquelas cinco cartas de amor, que Guilleragues «traduziu» e que forneceram tópicos de expressão apaixonada a quase três séculos de literatura universal. Mas a autoria deste plumitivo não são os documentos agora aduzidos (e que não são novos, pelo menos os que à questão importam) que a comprovam também. As «badinages» que são os versos de Guilleragues, a sua correspondência mais ou menos diplomática de homem do mundo, e uma carta louva-minheira a Racine não bastam para estabelecer um nexo entre personagem tão medíocre e comum do «Grand Siècle» e a veemente e dolorida queixa em cinco partes, que comoveu o mundo. Sem dúvida que é lícita a hipótese de a «tradução» de Guilleragues ser um embelezamento, ao gosto dominante do tempo, de cartas que seriam menos correctas ou menos subtis; e de esse embelezamento ter sido para o mísero Guilleragues a sua hora, aquela hora de sorte, que sobretudo costuma sorrir aos medíocres. E não estaria fora dos hábitos da ficção seiscentista a publicação como de outrem (neste caso a própria freira original), para melhor exploração da verosimilhança. A mania raciniana, que é uma das medidas do francesismo de qualquer pessoa, porém, sobreleva nos autores da edição tudo isto, em favor de verem, como já foi visto em brilhante hipótese impressionista, as cinco cartas como uma tragédia em cinco actos, participação de Guilleragues nas excelências tragediográficas da época. É evidente a intenção de, com esta hipótese gratuita (pois, que seria, naqueles tempos clássicos à força de barrocos, uma tragédia sem personagens, que fosse apenas um reiterado monólogo de qualquer Andrômaca?), ser acentuado um carácter literário das cartas. Acontece, todavia, que as cartas não são literárias, apesar da literatura que Guilleragues ou qualquer outro lhe imprimiu. Estuam nelas uma sinceridade passional, um refinamento erótico, um sentir o amor como algo que, paixão, pode contraditoriamente satisfazer-se de si mesmo, que não são literatura daquele tempo e lugar. E não são, precisamente por trazerem um tom de autenticidade humana, em que a civilização barroca se transcende pela descoberta da personalidade. O grande equívoco que a tradição escolar francesa tem alimentado, consiste em supor Racine um criador de personagens, um analista do «coeur humain». Racine é, pelo contrário, um criador de abstracções geométricas, analista daquelas situações míticas que escolhe para o coração que as suas sombras de personagens têm na boca, em forma de alexandrino emparelhado. Se Racine, como também já foi suposto, participou da confecção das cartas, por certo procedeu à reversão dialéctica da sua própria mentalidade criadora. Com efeito, ante a tragédia sem personagens, que era a das cartas, conseguiu criar uma personagem de carne e osso, e não mais uma «filie de Minos et Pasiphae»» … O êxito das cartas deve-se ao tom exótico que era o delas. Exótico, não por serem oriundas dos confins das Espanhas sempre tão exóticas para toda a Europa; mas por transbordarem de uma humanidade dorida que não era a das elegâncias metafóricas e esteticistas de meio século (então) de literatura barroca.
Essa humanidade, é absurdo considerá-la especificamente portuguesa: e isto já serviu de argumento para a autoria da Freira de Beja. Não há humanidade especificamente portuguesa, ou pelo menos ela não existe ao nível em que as cartas se colocam por direito próprio. Essas humanidades nacionais, tão distinguíveis umas das outras, não podem dizer respeito à grande arte ou ao grande sentimento humano, porque dizem respeito aos preconceitos imperialistas com que as classes dominantes iludem ideologicamente as pequenas burguesias que as servem como funcionários ou patriotas cívicos. A humanidade de Camões é a dele; e muito pão precisa ainda Portugal comer para merecê-la. A humanidade das «Lettres Portugaises», tão aparentemente conforme à imagem literariamente amável de um povo, que, por si ou por seus prolongamentos, disfarça atrás do sentimentalismo uma impiedosa dureza de coração (porque as circunstâncias nunca permitiram mais que uma mesquinha luta para ganhar, seja por que preço, a segurança do pão quotidiano mais a manteiga da gulodice burguesa), essa humanidade não tem nada de portuguesa, a menos que todos representemos de mulher abandonada pelo amante e enterrada viva num mosteiro de que não aparecerá outro para tirá-la. Neste trágico sentido metafórico, sim, as cartas de Soror Mariana Alcoforado ou do Guilleragues que lhas roubou e repintou significam uma humanidade muito portuguesa: a de um povo sempre roubado da virilidade que o libertaria. Mas isto não diz já respeito ao mistério das «cartas», e sim a outra tristeza sem mistério nenhum.
Com as cartas de Mariana, continuará (por quanto tempo?) a suceder o mesmo que com Shakespeare. Não se consolam os amadores de folhetins que o tão banal e vulgar Shakespeare tenha sido, nas suas peças (ainda que não em todas), um génio. Como hão-de consolar-se os franceses de não serem autores das cartas portuguesas? Como podem eles conceber que uma mulher dos confins desse sertão africano que é a Península Ibérica possa ter amado assim, se o amor dela apareceu ém francês? Até se dúvida de que Montesquieu tenha alguma vez imaginado a pasmada pergunta: «Mais, monsieur, comment peut-on être persan?»