Desde sempre, como é natural, me interessou o estudo da poesia camoniana. Camões é uma grande figura de poeta, prestigiada por secular devoção e universal renome; e o encanto dos seus versos raro não terá atraído a curiosidade e o gosto de quem autenticamente — e até inautenticamente— pela poesia se interesse. Transitar desse deleite imediato para mais culto aprofundamento é inclinação do espírito, que, se outra causa não houvesse, a própria categoria da obra camoniana suscitaria. Percorridos, porém, os imensos desertos que a má retórica ou a erudição acumularam entre uma obra incerta mas admirável e a nunca de facto em si própria buscada personalidade do autor, eis que interpretar essa obra, libertando-a de fáceis paráfrases; buscar-lhe a originalidade e não o circunstancial de seus aspectos; determinar-lhe, portanto, o intrínseco valor e os estranhamente sempre actuais motivos da sua perenidade — são prementes exigências da cultura nacional e da consciencialização universal que toda a cultura implica. Não será tempo de ultrapassar, em nome da própria natureza da obra de Camões e da possível repercussão do seu extraordinário pensamento, esses desertos imensos? De não considerar mais que como meios os oásis, que os há valiosos, de honesta, necessária e indispensável dedicação? Cumprindo o que a poesia de Camões aguarda há séculos, não é nosso dever perder-lhe o medo (ou ganhar-lhe…), e penetrá-la, não para pôr novas hipóteses, mas para mostrar o que ela nem sequer oculta? Por isso este ensaio se subintitula «de revelação da dialéctica camoniana»; por isso aceitei a honrosa incumbência de falar de Camões, que esta conferência era.
Sei que sobre este estudo cairá o silêncio de quantos, com responsabilidades culturais verídicas ou supostas por eles ou outros, nada de novo têm feito pela poesia de Camões. Ê muito agudo em Portugal, nas coisas da cultura, o sentido da propriedade, e toda a gente possui baldios, que não explora, ou prados que cultiva consuetudinariamente; explorar uns ou produzir melhor nos outros é, pois, como que forragear na seara alheia… E os que nada possuem senão os grandes métodos de produção, esses, no silêncio esconderão a habitual consciência de traídos pais do filho que não fizeram. Não espero, portanto, que a minha tese venha a ser realmente discutida ou nobremente aceite. Perdoem-me e ao país, caso queiram, aqueles que estas observações não atingem, se o pessimismo delas os ofende. Mas também sei que, por todas estas razões, e anos passados, uma visão nova da poesia de Camões aparecerá aqui e ali, como coisa evidente que é, como coisa anónima que tudo mais tarde ou mais cedo vem a ser, como um verdadeiro lugar comum. Que essa comunidade igualmente seja de Camões e da cultura nacional é quanto basta.
1948.
Da poesia (…) falemos (…).
Aristóteles — 1.* frase da Poética
Nos países de língua portuguesa e noutros culturalmente a eles ligados, tornou-se costume, oficialmente consagrado, utilizar um dia, o dia de Camões, para, a pretexto de celebrarmos a memória de um escritor e aventureiro do século XVI, chamado Luís de Camões, nos comemorarmos todos mutuamente.
Sim, a verdade é esta: a coberto do renome que fizemos a um pobre poeta que o mereceu como poucos e o não teve, instituiu-se o dia da raça que não somos, porque o conceito de Raça é algo demasiado estreito para significar um povo que, à semelhança de Camões, tem deixado «a vida pelo mundo em pedaços repartida». Em tantas e tão variadas comemorações, centenários, cortejos e conferências, sempre se fala da Fé e do Império, da independência e da Raça, da glória e da sabedoria, do que de facto possuímos e da árvore das patacas que ainda julgamos possuir, mas, raras vezes, ou só acidentalmente, se fala de um poeta, um grande poeta… Sabeis por que? Porque estamos afinal, gozosa e provincianamente, deglutindo a satisfação de que ele tenha sido português. E em tantos e tão variados estudos e edições, fala-se de Petrarca e de geografia, de geologia, de etnografia, de antropologia, de astronomia, de zoologia, de meteorologia, da Infanta D. Maria; e é demonstrada à saciedade a noção idiota de que é surpreendente que um grande espírito seja naturalmente culto — e não se aponta, não se sugere, não se investiga nem se procura o que torna poeticamente excepcional, o que torna prodigiosamente viva e sempre actual a voz quinhentista desse grande espírito.
Evocam-se o Trinca-Fortes e o cantor de Os Lusíadas para fins beneméritos de embófia cívica, fazendo-se paradoxalmente, de um poeta argutamente desesperado ou inconsequentemente malicioso ou musicalmente desiludido ou descaradamente satírico ou orgulhosamente sibilino — que são também aspectos seus — um mestre de boas maneiras, como se os poetas sofressem para maior prosperidade dos negócios, e isto com manifesto desprezo pela leitura atenta dos seus versos, que são tudo o que nos resta dele, de um poeta tão obcessivamente subjectivo e tão alheiamente original que foi possível efectuar-se, de duas maneiras, a escamoteação da sua pessoa e da respectiva originalidade: para o leitor comum, substituídas pelo encanto dos conceitos —
Qual o quieto sono dos cansados,
Debaixo de algua árvore sombria,
Ou qual aos sequiosos e encalmados
O vento respirante e a fonte fria,
Tais me foram teus versos delicados,
Teu numeroso canto e melodia;
E ainda agora o tom suave e brando
Os ouvidos me fica adormentando.
— e para o leitor patrioticamente interesseiro, pela retumbância dita marmórea das suas oitavas. E, no entanto, poucos poetas devanearam tanto como ele, e tão pouco por conta dos devaneios do leitor vindouro; sobretudo, raras obras nacionais foram jamais escritas com uma tão trágica e tão pura consciência do valor da dignidade humana, consciência serenamente feita da indignidade, da degradação e da miséria, que, não só literariamente, Camões parece ter sentido bem.
É certo que pouco ou nada se sabe de concreto acerca desse homem, cujo nascimento, cuja vida, cuja morte e cujos restos mortais são duvidosos, maravilhosamente duvidosos. O que é um convite à imaginação. E é certo que a sua vasta obra, à excepção de Os Lusíadas e de 3 ou 4 líricas, reunida ao acaso de colectâneas várias e póstumas, não oferece grandes garantias de autenticidade, quer de autoria, quer da própria lição dos textos. O que é porta aberta para os desvelos eruditos. E ainda é mais certo ser muito difícil aproximarmo-nos, sem as inibições de um místico respeito, de uma figura que, mais que um semi-deus, se tornou uma espécie de secção de abandonados na Alfândega, um depósito mortuário, não só das esperanças e amarguras dos quatro séculos nacionais que lhe passaram por cima, como dos outros quatro, acima dos quais, todavia, essa figura se houvera erguido.
Por todas estas razões de respeito, de exploração erudita, de incompetência e de oportunismo, mas também de verdadeiro sentimento nacional, os portugueses fizeram de Camões o que nem os ingleses nem os italianos se atreveram a fazer de Shakespeare ou de Dante, embora não devamos esquecer a diferença que vai da expressão acidentalmente histórica de um e de outro destes dois génios, à expressão voluntariamente épica, a que Camões, longa e trabalhosamente, para escrever os milhares de versos do seu ambicioso plano, forçou, com tanto brilho, a sua inteligência de poeta discreto, subtil, sempre vigoroso, mas sempre ou quase sempre entregue a, como ele diz:
Um não sei que, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e doi não sei porque.
De facto, se a Divina Comédia foi um dos mais poderosos catalisadores do sentimento nacional italiano, foi-o principalmente por influência linguística, e porque, do sonho imperial e romano do Santo Império Germânico, a que medievicamente o Dante aderiu, era possível extrair, só nacional, a Itália que ele visionara europeia e ecuménica. Mas a Divina Comédia é, principalmente, o poema da Idade Média, a justificação imaginosa e conclusiva do pensamento medieval (1), e, portanto, por sua própria natureza, mais um produto italiano da cultura europeia, que uma projecção da Itália sobre a cultura do tempo. E por isso não poderia vir a ser, senão depois de filtrado pela história literária, um poema nacional. A glória política do Dante é de raiz literária, no melhor sentido da palavra, isto é, veio da cultura para a vida política, e não desta, ao acaso da imaginação, para a história literária.
Também a situação de Shakespeare difere da de Camões. Shakespeare, apesar de alimentado pela grandeza nascente da Inglaterra de Isabel I, apesar de ter escrito o ciclo de peças da guerra das Duas Rosas, que é o antecedente doméstico e convulso da estabilização isabelina, evade-se, pela dramaturgia e pelo barroquismo lírico, pelo que poderíamos chamar paradoxalmente a gratuidade poética do seu conhecimento do homem (2), a todas as tentativas de fixação histórica. Com ele, a única fixação histórica viável é o estudo esclarecedor e erudito das suas criações; e não há possibilidade de explicar-se pragmaticamente, para fins políticos de sobrevivência nacional, o sentido apesar de tudo tão inglês da sua obra.
E, se compararmos o destino literário de Camões com o de Cervantes (3), de quem os espanhóis e o mundo fizeram autor de um símbolo, havemos de reconhecer que, para símbolo da natureza humana, e sob aquele aspecto em que é entendida a universalidade de tais símbolos, alguma ressonância falta à obra de Camões, que encontramos na obra de Cervantes, e que não é apenas resultado da criação romanescamente concreta. É um engano supor-se que uma universalidade de Os Lusíadas lhe possa advir de ser esse poema consagratório de uma prodigiosa aventura humana, que é um dos momentos da História Universal, esse poema que Camões se propôs escrever. Nem a universalidade lhe advirá do facto de ter sido escrito por um homem de notável cultura humanística, irmão, pelo espírito e pela vida, de toda a Europa culta do seu tempo. Sim: supor que o valor simbólico universalizável ao poema advirá, por virtude de esse humanista haver conseguido criar, artisticamente, um importante documento do estado de espírito colectivo de então, é um bem intencionado engano, mas um engano. Sob esse aspecto, e por inelutável consequência do génio peculiar de Camões, o poema é bem menos documental do que seria necessário. E, embora saibamos quanto, nessa época, a literatura defende cautelosamente, das iras inquisitoriais, a pele dos autores peninsulares, Camões não é, de forma alguma, um cultor da liberdade de pensamento que hoje se atribui, com tão demasiada genero-sidade, a toda a Renascença (4). Não que, de facto, o não seja… se ele foi por excelência o poeta do pensamento em luta com os seus próprios laços—-mas não o foi como admiramos num Giordano Bruno, num Juan Luís Vives, num Nicolau de Cusa, mesmo num Francisco Sanches. A sua natureza poética circula em estranhos — já repararam? — estranhos vácuos da personalidade. A sua voz é alheia; e só a tradução, não das entrelinhas dos seus versos, mas das entrelinhas da sua elaboração criadora, nos dará, para satisfação plena da História, o homem do Renascimento que ele foi. Para símbolo ou para doutrina de vida, como sucedeu ao Quixote e respectivas consequências, é Camões demasiado poeta de uma dialéctica possessa das próprias possibilidades, enquanto Cervantes o é apenas da permanência da mesma dialéctica; e, para ressonância humana imediata, ou ressonância tornada imediata pela transfiguração cultural, é Camões demasiado poeta do seu próprio gosto de ser poeta.
De resto, se a voz de Camões soa alheia, se repercute vácuos estranhos da personalidade humana, reparemos que ela, por si própria, não é estranha, não é estravagantemente individualista, como a de um Bernardim Ribeiro. Reparemos que, poeta do arroubo lírico perante a existência do mundo, um Gil Vicente o é bem mais do que ele. E reparemos ainda em que, por exemplo, um Diogo Bernardes demonstra, a cada passo, um maior interesse lírico pelas coisas concretas. Será que esse interesse, em Camões, só se revela no plano da criação épica? Certamente que não — e bastaria observar a mal disfarçada consolação inconsciente, com que os eruditos extraem de Os Lusíadas os trechos meramente descritivos, objectivamente descritivos, para suspeitarmos de que toda a gente quer confundir a narração e as descrições habilmente literárias, que pululam no poema, e aqueles trechos em que a linguagem se ajusta exactamente apenas à sugestão verbal, não amplificada para fins retóricos, de uma paisagem ou de um acontecimento.
Estarei insinuando que Camões não é verdadeiramente, quando épico, um poeta épico? Não, não estou. É certo que, no sentido homérico, Os Lusíadas, quer por, à semelhança do Paradise Lost, ser programático, quer por, à semelhança da Eneida, não ser de elaboração civilizacional e popular, não constitui propriamente um poema épico, não obstante Camões ter conseguido lucidamente, e literariamente, a transposição épica indispensável…: como A. Salgado Júnior o demonstrou, em tempos, com a fina compreensão que uma segura erudição antes não perturba, que ilumina (5).
Mas, creio eu, a transposição épica por Camões efectuada, não a confia Camões à imaginação, como Ariosto ou Tasso. Não só por ser programática a sua intenção; e não só por se cingir ele à narrativa histórica, embora ornada de episódios: é que as imagens de Camões não são imagens. Quando épico, a sua imagística é temática; quando lírico, a sua imagística é alegórica. Nunca, e é uma característica fundamental para o entendimento dos seus versos, as imagens camonianas são, por si próprias, significantemente expressivas.
Note-se que, no tempo de Camões, e por influência platonista, ou indirecta através de Petrarca, a imagem poética não possuía o mesmo significado que hoje. De certo modo, toda a poesia desse tempo é, para nós, de imagens temáticas ou alegóricas, se de imagens. A imagem aparece como um reforço retórico da narrativa — e é temática — ou como figuração, que é descrita pelos habituais processos narrativos — e é alegórica, qual o próprio Camões critica:
(…) a Poesia, que cantou
Até 'qui só pinturas (6)
Sucede, porém, que esse reforço retórico, em Os Lusíadas, e essa figuração descrita pelos habituais processos narrativos, um e outra visam menos a sublinhar e a criar sugestiva correspondência de antinómicos estados de alma — o que é aliás de toda esta poesia, filha longínqua do provençalismo maniqueu (7) — do que a significar uma desesperada tentativa de intelectualização conceptual das emoções do espírito perante si próprio:
Aqui o adivinhar e o ter por certo
Que era verdade quanto adivinhava,
E logo o desdizer-se, de corrido;
Dar às cousas que via outro sentido,
E pera tudo, enfim, buscar razões;
Mas eram muitas mais as sem-razões.
E essa intelectualização conceptual das emoções poéticas é curioso observar que se opera, no Camões épico, através da reflexão moralística sobre a natureza humana e o particular estado do país no seu tempo; e que, no Camões lírico, ainda quando esta mesma reflexão aparece, a intelectualização se operou através da vivência do puro estado poético, do que se chama às vezes «inspiração»:
não sei que me escrevia
Dentro n'alma, co'as letras da memória,
O mais deste processo,
Co'o claro gesto juntamente impresso
Que foi a causa de tão longa história.
Se bem a declarei,
Eu não a escrevo, da alma a trasladei.
— como Camões afirma numa das suas mais belas canções, fazendo quase uma temerosa profissão de fé de automatismo surrealista… (8).
Se, em Os Lusíadas, encontramos profundamente entrelaçados o narrador intencional e hábil, o lírico das situações individuais e o moralista observador das situações colectivas, e entrelaçados no plano da criação épica, mas segundo as determinações de uma natureza estruturalmente poética como foi a de Camões; se repararmos qual dos três aspectos leva em si maior veemência pessoal; se recordarmos que o momento histórico é já o do regresso trágico da epopeia qual a amarga meditação moral do épico o comprovaria, caso a história o não soubesse há muito — o êxito de Os Lusíadas, como poema épico, é um êxito, por contradição, de uma obra de último recurso. E de facto, para a popularidade, a narração amplificada e amplificadora das glórias nacionais valeu e vale no poema, por contraste, e porque, a cada passo, surgem aqueles trechos candentes de juízo final, como este:
No mais Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada, e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda, e endurecida:
O favor com que mais se acende o engenho,
Não no dá a pátria, não, que está metida,
No gosto da cobiça, e na rudeza
Dhua austera, apagada, e vil tristeza. (9)
ou este:
E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente:
Porque essas honras vãs, esse ouro puro
Verdadeiro valor não dão à gente,
Melhor é merecê-los, sem os ter
Que possui-los sem os merecer.
ou mais este:
E ainda Ninfas minhas não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem:
Senão que aqueles que eu cantando andava,
Tal prémio de meus versos me tornassem
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louros que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram.
trechos bem pouco épicos, bem pouco adequados à cantoria que a retórica balofa se esforça por extrair de Os Lusíadas, mas, apesar de tudo, épicos por contradição, na medida em que a pessoal revolta se desprende dos seus próprios problemas e se arroga o direito, não de julgar e condenar, o que seria pouco e amarrado ao tempo, mas de desmascarar a situação colectiva. É neste mesmo sentido que a longa e célebre fala do Velho do Restelo, em que se tem querido ver o Portugal da terra contra o Portugal dos mares, ou ainda o espírito de prudência contra o espírito de aventura, ou até a cultura humanística contra os expedientes cesáricos, é principalmente a expressão—«com saber só d'experiências feito» — da «mísera sorte, estranha condição»: a originalíssima irrupção, no plano da criação épica, do valor intrínseco e precário da vida humana como tal (10), afirmado por um homem que, numa canção, enlevado na angústia perene da sua meditação, afirma —
Não cuide o pensamento
Que pode achar na morte
O que não pode achar tão longa vida.
Se lermos, mesmo com pouca atenção, as redondilhas, os sonetos, as éclogas, as odes, as elegias e as canções camonianas, e ainda o teatro, verificaremos que, à primeira vista, se resumem, da simples chocarrice ao mais elevado treno, a um monótono e incessante divertimento sobre as perplexidades do amor não correspondido, do amor correspondido e depois esquecido, ou do amor impossível. Deste ponto inicial de vista, a poesia de Camões é já notável, pela graça maliciosa e melancólica, pela variedade puramente gratuita dos conceitos analogicamente repetidos, por uma linguagem dúctil, e tão expressiva, que à própria elocução rítmica está confiada parte do sentido, que assim transborda de uma fixação racionalizada e racionalizável, para o exercício constante que é a perseguição dialéctica.
Tem-se dito e redito que Camões é um poeta do amor, e, por extrapolação, que foi um grande amoroso. A sensualidade ao mesmo tempo impetuosa e lúcida, que os seus versos patenteiam, é, de facto, índice de uma natureza tão apaixonada como sensual no mais físico sentido do termo, e uma certa displicência feminil, também por vezes evidente, é menos de um homem castamente delicado, que de um intelectualizado femeeiro. De resto, a célebre carta, em que são apreciadas, prosaica e entediadamente, as «damas» da índia, será, acerca disto, um clarificante documento.
Mas, se Camões tivesse sido e fosse apenas um poeta do amor, naquele sentido pornográfico, que uns lá vêem, ou no sentido abstémico, para donzelas bem pensantes, que outros lá vêem igualmente, teria sido muito pouco, ou pelo menos não teria sido aquele pouco mais que o distingue da avalanche dos poetas que cantaram, com talento, os narizes, os olhos, e outras partes de várias criaturas mais ou menos cantáveis.
É preciso ter em consideração que o petrarquismo renascentista, revivescência culturalista daquela intelectualização conceptual do formalismo cavalheiresco das «cortes de amor», que a poesia de Petrarca por sua vez já fora (11), é, como acontece sempre, mais do que uma escola literária, um modo de expressão. E também sempre as escolas literárias literatizam o que, nos criadores autênticos, é um método da consciência criadora, um sistema convencional de representação da realidade como o intelecto a apreende. Mas o curioso é que, nos epígonos dessas escolas, naqueles em quem já a «literatura» se decompõe sob o influxo de novos modos de expressão, esse método pode vir a ser precisamente a consciência criadora.
No tempo de Camões, morria o petrarquismo, com a desaparição do ideal cavalheiresco, para ficar apenas a «agudeza y arte de ingenio», que mais tarde, Baltazar Gracian teorizará, muito significativamente chamando a Camões «el siempre agudo». O próprio Camões é, por vezes, lucidamente explícito acerca dessa transformação, nas suas reflexões de homem de acção sobre a inanidade da pura agitação guerreira, ou nas suas reflexões de poeta da visão fugidia —
— Por mais e mais que chame, não respondes,
E quanto mais te busco, mais te escondes.
O maneirismo camoniano (12), o seu petrarquismo, a sua lírica sistematicamente erótica — porque é sempre um caso de amor que aparece simbolizando a causa das perplexidades intelectuais do poeta—, reduzem-se naturalmente àquilo que são: por um lado, domínio total dos recursos formais do tempo e sua exploração desenfreada, dentro dos cânones da noção de originalidade de então, que não impunham a rebusca de outra linguagem, mas a transformação individual do amador na coisa amada, neste caso o modo petrarquiano de versejar as emoções; por outro lado, uma vez que Camões, à medida que o aprofundamos, nos vai aparecendo como um génio eminentemente dialéctico, esse maneirismo e esse erotismo são, hábil e tragicamente, a última possibilidade expressiva desse génio.
Por que? — perguntar-me-ão. E eu responderei com uma pergunta. Como poderia ele, poeta fundamentalmente sensível ao contínuo ciclo dialéctico, exprimi-lo, sem lançar mão de metáforas, e metáforas correntes, visto que —todos os seus versos o confessam — lhe interessa menos o significado das ideias que a vida e morte delas? Claro que estamos percorrendo ao inverso, dos textos para a criação, o caminho que Camões percorreu da sensibilidade para a metáfora, e que descreve assim, magistralmente:
Pode um desejo imenso
Arder no peito tanto,
Que à branda e à viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nódoas do terreno manto
E purifique em tanta alteza o esprito
Com olhos imortais
Que faz que leia mais do que vê escrito. (13)
Portanto — e é interessante esta conclusão — aquilo que, em Camões, é formalismo da época, é paráfrase, ou é exercício da aplicação dos seus dons à glosa de um mote, aquilo, enfim, que nele tem sido menos apreciado por menos «original», ou apreciado apenas em função da graciosidade obtida, constituirá, como para poucos outros poetas, uma das raras portas para penetrarmos na sua consciência criadora, visto que, nesta, há um abismo entre a circunstância provocadora da emoção e a emoção expressa, entre os factos concretos e a lição dialéctica neles apreensível. A maneira como Camões altera o sentimento petrarquiano ou a interpretação que dá a um mote alheio ou próprio são preciosas chaves para a compreensão de um poeta cuja compreensibilidade, em que pese aos racionalistas estáticos, está implacavelmente menos no resíduo intelectual extractável dos seus conceitos, que na arquitectura conceptual dos seus versos (14). Este seu trecho, a par do que anteriormente citei, que comenta, é flagrantemente significativo (e Hegel e Marx teriam tido inveja, se o houvessem conhecido):
Assi que indo perdendo o sentimento
A parte racional me entristecia
Vê-la a um apetite sometida;
Mas dentro n'alma o fim do pensamento,
Por tão sublime causa me dizia
Que era razão ser a razão vencida.
Assi que, quando a via ser perdida,
A mesma perdição a restaurava;
E em mansa paz estava
Cada um com seu contrairo num sujeito. (15)
Desejo acentuar que estes fragmentos não serão ímpares na obra de Camões; se o são, são-no apenas por mais claramente que noutros pontos ser neles evidente a natureza dialéctica do génio camoniano, e sublinho — génio abstracto (16), que reduz sempre as emoções a conceitos, conceitos que não são ideias, mas a vivência intelectual delas.
Associada à sombra petrarquiana, uma outra sombra tem, mercê de uma tacanha exploração literata de pretensos filósofos de sebenta, impedido a descoberta do verdadeiro valor do génio camoniano: quero referir-me ao tão decantado platonismo de Camões — decantado brilhantemente por ele, e decantado estultamente por muitos estudiosos.
Há uma obra do judeu português italianizado Leão Hebreu — os Diálogos de Amor—, a qual, como uma das mais senão a mais elevada expressão do neoplatonismo renascentista, nos permite avaliar epocalmente o platonismo camoniano. Não interessa determinar se Camões leu ou não Leão Hebreu; poderia não o ter lido, nem sequer ter conhecido essa obra aliás então popularíssima entre os meios cultos, que a importância dela seria a mesma para nós: a de, até certo ponto, paralela expressão de um mesmo momento da cultura.
Na obra de Leão Hebreu encontramos, levadas plotiniana- mente até ao amor recíproco da «suma formosura divina» e de uma «baixa e finita mente humana», a mesma subtil dialéctica do amor e do desejo (17), que, em Camões como noutros poetas da Renascença, se complica de já moribundo petrarquismo, e a mesma ascensão purificadora de um conhecimento que se vai tornando contemplação.
Todavia, digamos francamente que o platonismo camoniano (e é tão nítida a solução de continuidade nas famosas estrofes de «Sobre os Rios» que quase toda a gente o tem notado) interrompe-se onde o cristianismo, ou mais exactamente o catolicismo escolástico, introduz as noções da graça e da revelação. E platonicamente, naquele sentido em que o post-franciscanismo filosófico reagiu contra a própria escolástica, poderia não o ter feito nesse ponto… Poderia, se, de facto, o catolicismo português fosse tão franciscano quanto alguns literatos, por reacção liberal, o têm sonhado (18). Desse ponto em diante, Camões, quando fala do amor que se torna divino, embora continue poeticamente sincero, é literariamente insincero para com o formalismo convencional que adopta. Por que tema dizer o que pensa? Sim e não. Porque assim procede menos por temor das consequências para o seu físico social, que das consequências para a sua tão ansiosamente buscada e perdida paz moral. Apavora-o, e esse receio é manifesto em vários passos líricos, não o perigo que sabe inerente à vida humana — e como o sabe!—, mas o abandono da condição humana a si própria, no espaço obscuro para além do conhecimento possível, quando nos desastres da vida a essa indiferença divina ele a pressente e suspeita e declara. E contudo, a sua própria criação poética, a sua própria vivência do fluir dialéctico do pensamento e da vida, e a sua consciência dramática do tempo perdido (que faz dele um magnífico Proust da Renascença, ou melhor, do Barroco, ou melhor ainda, do Maneirismo, como nem Shakespeare ou Miguel Ângelo o foram) lhe atenuam esse pavor, o reconciliam heroicamente com a existência, lhe elidem a transposição a que não se atreve (19). Todo o maravilhoso final da canção «Vinde cá, meu tão certo secretário» representa este duplo processo —
Não conto tanto os males como aquele
Que, depois da tormenta procelosa,
Os casos dela conta em porto ledo;
Que inda agora a Fortuna flutuosa
A tamanhas misérias me compele,
Que de dar um só passo tenho medo.
Já de mal que me venha não me arredo,
Nem bem que me faleça já pretendo,
Que pera mim não vai astúcia humana;
Da força soberana Da Providência, enfim, divina pendo.
Isto que cuido e vejo, às vezes tomo
Pera consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana, quando lança
Os olhos no que corre, e não alcança
Senão memória dos passados anos,
As águas que então bebo e o pão que como
Lágrimas tristes são, que eu nunca domo,
Senão com fabricar na fantasia
Fantásticas pinturas de alegria. (20)
Que, se possível fosse que tornasse
O tempo pera traz, com a memória,
Pelos vestígios da primeira idade,
E, de novo tecendo a antiga história
De meus doces errores, me levasse
Pelas flores que vi da mocidade;
E a lembrança da longa saudade
Então fosse maior contentamento,
Vendo a conversação leda e suave
Onde ua e outra chave
Esteve de meu novo pensamento, (21)
Os campos, as passadas, os sinais,
A fermosura, os olhos, a brandura,
A graça, a mansidão, a cortezia,
A sincera amizade, que desvia
Toda a baixa tenção, terrena, impura,
Como a qual outra algua não vi mais…
Ah! vãs memórias! onde me levais
O fraco coração, que inda não posso
Domar este tão vão desejo vosso?
No mais, Canção, no mais (22); que irei falando,
Sem o sentir, mil anos. E se acaso
Te culparem de larga e de pesada,
— Não pode ser — lhe dize — limitada
A água do mar em tão pequeno vaso. (23)
Nem eu delicadezas vou cantando
Co'o gosto do louvor, mas explicando
Puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!
Repito — este trecho representa esse duplo processo, e documenta claramente como, por vias poéticas, a dialéctica platónica se transformou em outra dialéctica mais vasta, menos ou nada alegórica e mais concreta. Sem dúvida, repararam nos dois últimos versos:
Puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!
Esta procurada perplexidade entre a verdade e a ficção, que é a própria essência da criação poética, acentuo, viveu-a Camões com uma intensidade e uma lucidez, que fazem dele um dos mais estranhos poetas da poesia. Quanto há de misterioso, obscuro, sibilino, na poesia de Camões, em grande parte provém daí, desse dualismo intrínseco da visão poética. E, num passo único na literatura universal, descreveu ele inigualavelmente, oomo já o fizera em «Sobre os rios» para os «cantares de amor profano por versos de amor divino», o drama da hesitação fáustica, peculiar a todos os poetas que foram grandes por uma consciência genial da estruturação dialéctica da representação do universo —
Ah falso pensamento, que me enganas!
Fazes-me pôr a boca onde não devo,
Com palavras de doudo, e quase insanas!
Como alçar-te tão alto assi me atrevo?
Tais asas dou-tas eu, ou tu mas dás?
Levas-me tu a mim, ou eu te levo?
Não poderei eu ir onde tu vás?
Porém, pois ir não posso onde tu fores,
Quando fores, não tornes onde estás.
Compreendeis agora a razão de Camões, sendo tão profundamente subjectivo, nos falar em voz tão estranhamente alheia, alheada. Um poeta que tudo incluiu em si próprio para, daquela região da personalidade onde a personalidade se anula perante o que Hegel chamará o espírito objectivo, extrair a própria génese dessa consciência final. Não admira, em face de um fenómeno que culminou modernamente, com Proust e Pirandello, na pluralização do eu e da expressão verídica desse eu dos moralistas, que já se tenha chamado pirandelliana à terrível cena cómica da perda da personalidade de «Sósea», na comédia Anfitriões.
Inúmeros aspectos, também importantes ou acessórios dos indicados, ficaram, no decorrer deste estudo, por apontar. Outros, bem o sei, foram apontados e justificados com sínteses demasiado densas, para as quais me fiei da cultura dos leitores. Mas tinha de ser assim. Era urgente e oportuno autenticar a grandeza de Camões, uma grandeza por demais acriticamente adivinhada, literariamente concedida, e politicamente utilizada.
Camões é, de facto, inesgotável; não só por ser grande como tantos outros, mas por ter sido, imparmente, o poeta da própria essência da vida humana, do próprio drama do fluir do pensamento humano. Aí reside a sua originalidade; aí está o seu mérito de ser um dos mais excepcionais poetas de todos os tempos. A sua grandeza existe e impõe-se por si própria, tanto mais consoladoramente quanto suportamos, de hoje em dia, a sensação ridícula de vivermos num país de notabilidades às dúzias, às grosas, às carradas, tantas são as figuras e os factos comemorados quotidianamente, com frequência quase horária, ou uma culposa consciência de colocar um pouco de cevada no rabo do asno morto.
Não vos biografei, imaginosa e eloquentemente, a figura célebre, chorando a alma minha, nadando com o manuscrito de fora, lendo Os Lusíadas ao rei, ou metido numa gruta onde não cabe senão um anão. Não vos passeei pela Lusa Atenas, pela Lisboa do regresso das conquistas, pelo norte de África, onde se diz que ele ficou zarolho, ou pela Goa do Dr. Garcia de Orta e da Bárbara escrava. Não vos fiz o panegírico, a folha limpa do registo criminal e policial, desse homem que parece ter metido as mãos nas contas dos defuntos e ausentes. Não enalteci o seu patriotismo, que ele dispensa bem que lho enalteçam, e até consignou a esse respeito a própria opinião… Procurei mesmo fazer esquecer todo o romanesco sentimentalório e todo o patrioteirismo sebastianista com que o seu lídimo génio tem sido enxovalhado. Quis que vísseis, comigo, passo a passo admirados, quão extraordinário poeta ele é, para lá de uma maravilhosa linguagem, para lá da sincera veneração que merece como mestre de um pensamento vital, como figura humana de rara nobreza intelectual, e até como autêntica glória nacional, bem maior e mais universal do que tem sido visto. Se o consegui, se por momentos foi a esse poeta que contemplastes, ao nosso maior poeta, a um dos maiores do mundo, sentir-me-ei feliz. E concordarei até com… um dia de Camões.
1948.
NOTAS
1. Entenda-se aqui «medieval» literal e epocalmente e nao como apenas referindo-se à cristandade. A presença muçulmana na Divina Comédia ficou demonstrada por Asin Palacios in La Escatologia Musulmana en la Divina Comédia, apesar da tempestade que a obra levantou.
2. Ver nota A.
3. Repare-se no doloroso paralelismo das vidas de ambos.
4. Aproximar este passo e o que se afirma na nota E.
5. Antonio Salgado Júnior –«Os Lusíadas» e a Viagem do Gama – O tratamento mitológico duma realidade histórica – Porto, 1939.
6. Note-se como não são estas «pinturas» as mesmas a que ele se refere noutro passo, citado a p. 28. Cf. nota F
7. Ver nota B.
8. Ver nota C.
9. Todas as citações do épico são feitas do fac-simile da 1a. edição de Os Lusíadas, pois que aí se entende tudo o que os gramaticos tem conseguido que não seja entendido
10. Ver nota D.
11. Aproximar da referência ao «provençalismo maniqueu» feita a p. 21 e ver nota B.
12. Entenda-se aqui, neste passo, maneirismo nos seus dois sentidos, que em Camões se sobrepõem: devoção a uma «maneira» ou afectação rebuscada, e «maneirismo», período artístico em que Camões é integrável.
13. Note-se o que este último verso implica de progressão dialéctica, transcendendo o petrarquismo aparente.
14. Não deve esquecer-se nunca o fundamental contributo de Antonio Sérgio para a descoberta de um Camões pensador profundo e dramático.
15. Ver nota E
16. Ou seja: em que se define o universal concreto hegeliano.
17. Uma admirável análise interpretativa desta mera dialéctica do amor e do desejo encontrar-se-á in «Luís de Camões» introdução, selecção e notas de José Régio — Lisboa 1944.
18. Ver nota F.
19. Poder-se-ia dizer, paradoxalmente, que é esta realização sempre ultrapassada do génio lírico, que lhe confere, por contraste, o tom épico.
20. Ver nota F.
21. Deverão aproximar-se este passo, a «mudança de vida» expressa em «Sobre os Rios» e a consciência — bem clara — da permanência abstracta da renovação dialéctica.
22. Aproximar este «No mais, Canção» e o «No mais, Musa» citado a p. 22, cuja diferença documenta o ultrapassamento lírico.
23. Ver nota G.