Neste 2010 em que se comemoram 90 anos de publicação da Clepsidra, assinalamos a data transcrevendo algumas reflexões de Sena sobre Camilo Pessanha, que, como se pode constatar, tanto admirava. Sob o título de "Camilo Pessanha e António Patrício", o artigo foi publicado no Suplemento Literário de O Comércio do Porto, de 9 de fevereiro de 1954.
Camilo Pessanha morreu em Macau, em 1926, na China que tanto amou e da qual tão limpidamente escreveu algumas das melhores páginas da nossa literatura de “viagens”, como soe dizer-se. (…)
Camilo Pessanha pertence cronologicamente à geração que, em Portugal, aparece como introdutora oficial do simbolismo que seria mais correcto e mais lato chamar de esteticismo, pois que tal precisão verbal permitiria observar o panorama todo, sem dele separar a eclosão da poesia chamada “modernista”. A geração de Pessanha é a de António Nobre e de Raul Brandão, nascidos no mesmo ano que ele (ano áureo, diria o Acácio, com o meu desvanecido assentimento), aos quais não podemos, por infelicidade histórica e cronológica, juntar o nome do poeta singular, tão estranhamente parnasiano já, que foi António Feijó e tem, sob certos ocultos aspectos, algo de comum com Pessanha.
(…) Mas Camilo Pessanha que, como os poetas do Renascimento, circulou manuscrito, de amigo para amigo, e é publicado em volume em 1920 apenas, já no âmbito da revolução “modernista”, não se limita a ser um parnasiano atardado que o simbolismo afinou ou um esteticista para quem o exotismo tenha sido uma sua profunda virtualidade da alma: é o mais puro (senão o único, com algum Gomes Leal) simbolista da poesia portuguesa e um dos mais extraordinários artistas que em nossa língua haja escrito. Longe de procurar envolver em numerosos e rendilhados versos a expressão de indefiníveis ou vagos estados de alma – que foi a pedra do esteticismo e de certos aspectos saudosistas que tomou –, a sua natureza reticente e delicadíssima e o seu gosto seguro de poeta verdadeiramente culto enclausuraram-se em sugeri-los obliquamente, pela transposição quase mallarmeana dos factos, aliada a uma quebrada melancolia do dizer, que só tem paralelo em Verlaine. A sua poesia não representa, porém, nunca um inaudito esforço verbal para fixar o que quer que seja, como ela veio a ser no génio de Sá-Carneiro. Antes a selecção dos elementos imagísticos representativos de diferentes planos – a circunstância anotada, a situação espiritual a definir, e a emoção peculiar com que, para contrastá-la, o poeta se dá a definir uma e anotar outra –, antes essa selecção e o variável jogo da interpenetração dos planos (que, em Sá-Carneiro, se fundirão completamente, e em Carlos Queiroz, com pessoal humour, se cindirão ainda mais) produzem, numa linguagem quase sempre singela ou de ironicamente amaneirado pré-rafaelismo, e em ritmos regulares em que a subtil hesitação métrica se contraponha com versos inexoravelmente cadenciados, um puro milagre de murmúrio rigorosamente verbal, cuja alada forma a língua portuguesa nunca tivera e não tornou ainda a ter.
O que epocalmente representará a atitude mental de Camilo Pessanha, ao reencontrar no Oriente o seu “país perdido”, como o significado (já post-simbolista, que o aproxima de Yeats e de Rilke, também morto em 1926, “abandonado nas alturas do coração”) da sua clássica aceitação da fuga do tempo e da sua naturalística aceitação da realidade convivente da morte, e ainda o seu tão simbolisticamente exacto desdém do sentimentalismo – importará muito esclarecê-los. Mas, com admirável lucidez, não disse Camilo Pessanha – e, lucidamente, como o não diria de si próprio um poeta liberto “das falsas e convencionais emoções”? –: “Arte essencialmente subjectiva, a poesia (…) impossível é dar-se a conhecer indirectamente o valor estético das (…) obras, como é fazer-se compreender a beleza de uma sinfonia ou de uma romança, por outra maneira que não seja fazendo-a ouvir.”
Porque, na verdade, e é essa a sua qualidade de puro simbolista, para Camilo Pessanha a poesia foi criação, não apenas de formas originais e de sensações inéditas, mas e sobretudo de poemas (isto é, pessoal expressão e não expressão de uma personalidade que se tem por original). Os seus sonetos e mais versos não podem viajar como as tabatières à musique dos parnasianos, de que falou Claudel. Imponderáveis como são em sugestividade e ambiguidade magistrais, pesa neles a sua própria existência objectiva, e é preciso, pois, ouvi-los. E quem ouve, ou ouve subjectivamente, ou não ouve nada.