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As Revelações da Morte, de Chestov

  • Categoria do post:Ensaio

Publicado pela primeira vez em 1960, o texto que reproduzimos a seguir foi escrito como prefácio à edição da obra de Chestov, com tradução e notas de Jorge de Sena, pela Livraria Moraes Editora. A tradução, na realidade, iniciara-se cerca de duas décadas antes, por encomenda de Adolfo Casais Monteiro, para uma editora que acabaria abandonando o projeto. 
Léon Chestov — pseudónimo de Lev Isaacovitch Chvartsman — nasceu em 1866, em Kiev, capital da Ucrânia e uma das mais antigas e prestigiosas cidades da civilização russa; aí, oriundo de rica família judaica, estudou Direito; tomando posição contra a Revolução de 1917, emigrou para França em 1920, onde são publicados em francês estudos seus anteriores ou novos livros, e morreu em Paris, em 1938. A sua obra, em que os escritores são chamados a depor «contra as evidências», a par dos filósofos, teve uma influência enorme na formação de uma mentalidade existencialista, influência pouco reconhecida ou confessada, mas real. E, hoje, este franco-atirador do pensamento filosófico, representante típico e último de um individualismo que se serve da cultura para aniquilá-la misticamente, é menos lido do que merece, e menos estudado do que valeria a pena, já que o «existencialismo» se tornou, com um Heidegger ou um Jaspers uma regressão ontológica, se acomodou (com Sartre) às tendências sociais do tempo ou (com um Marcel e Cia.) à religião estabelecida: tudo coisas que encheriam de raiva Chestov, e o fariam emitir novas torrentes de ironias dialécticas.

Seria limitar Chestov supô-lo muito dependente de Dostoievski e de Tolstoi, cuja amplificação crítica ocupa tão grande lugar na sua obra e é o próprio cerne desta que traduzimos e estamos prefaciando, e com os quais aliás, Nietzsche surge associado. Também Kierkegaard ou Plotino, Shakespeare e Santo Agostinho, S. Paulo e Tchecov, entre muitos outros, ocupam lugar preponderante nas meditações de Chestov: se um dos seus primeiros trabalhos é Shakespeare e o seu crítico Brandes (1898), em que ataca o grande crítico dinamarquês e a filosofia de Taine, um dos últimos. Vox Clamantis in Deserto (1936), é dedicado ao estudo de Kierkegaard, cujo pensamento é decisivo para a compreensão de Chestov.

Como Kierkegaard ou como Nietzsche, Chestov, no fundo, não adere a nada nem a ninguém, e sobretudo a nenhum pensamento sistemático. Mas Kierkegaard e Nietzsche ainda são metódicos, isto é, ainda buscam, para lá dos sistemas que se despegam da realidade ou a traem, um método próprio que lhes permita transcender os limites da personalidade individual. São moralistas, no mais lato e elevado sentido do termo. Chestov não é, de modo algum, um individualista, senão na medida em que pessoalmente se ri — num riso trágico — de tudo o que não seja a vivência última, o aniquilamento da morte, a união fideista com Deus. Para poucos pensadores, como para ele, é verdade a ironia de Schopenhauer, quando anunciava que «a morte tornou-se a Musa dos filósofos»… Chestov não é um moralista: pelo contrário, na sua fúria contra os sistemas, contra a epistemologia, contra a ciência, contra a religião, contra a vida social, é um imoralista. Não à maneira de Nietzsche, que o é buscando um ultrapassamento da moral normativa, sonhando com uma ética da solidão humana. Mas como quem, fiado apenas na revelação divina, tem por somenos tudo o que respeite às ilusões ou às realidades da vida. O seu testamento espiritual, Atenas e Jerusalém (1938), se continua as intuições fundamentais de Potestas Clavium (de 1916, e traduzido para francês em 1928), segundo as quais o individualismo moderno de um Dostoievski ou de um Nietzsche é um sucedâneo da grandeza isolada dos Padres da Igreja Grega ou do paulinismo primitivo, põe claramente a oposição de Chestov a tudo o que seja a orientação civilizacional do materialismo moderno (dialéctico ou idealista), em nome de um espiritualismo que se recusa, simultaneamente, a aceitar a validade categorial do pensamento ou a estruturação social das ideologias, para apenas querer ver tudo — um tudo que é uma ascese por negação e não por sublimação — sub specie aetemitatis.

O pensamento deste homem esquálido e barbilongo — que, além de estudar em Kiev, fez estudos filosóficos em Berlim e Moscovo onde a sua tese sobre «As condições da classe operária na Rússia» foi proibida pela censura czarista, e que se opôs ao Comunismo porque se oporia a tudo que, numa visão civilizacional ocidental, desse a primazia às condições materiais da vida sobre a contemplação da morte — ou melhor, sobre o ver a Vida com os olhos da Morte — é um pensamento extremamente dissolvente, e não admira que o grupo da Nouvelle Revue Française o tenha recebido entre os colaboradores da revista.

Mas dissolvente, em que sentido?

Se, como queria Renouvier na sua «Classificação Sistemática das Doutrinas Filosóficas», estas doutrinas se resumem à consideração de seis oposições fundamentais (coisa-ideia; finito-infinito; necessidade-liberdade; evolução-criação; felicidade-dever; evidência-crença), temos de reconhecer que a meditação chestoviana, situando-se num cepticismo transcendental (já que o fideísmo extremado é uma atitude céptica, tal como, um grau abaixo, o ateísmo se identifica a todas as tentativas de racionalização da existência de Deus), num cepticismo que não é crítica do conhecimento mas declaração da sua inutilidade espiritual, num cepticismo que, proclamando a «suma ignorância», ao mesmo tempo nega a ciência moderna e a «douta ignorância» de Nicolau de Cusa, e se alheia da própria meditação filosófica, contra a qual é uma contra-meditação, para colocar-se à margem, não como todos os grandes pensadores se colocaram (a-sistemáticos como Montaigne, Francisco Sanches, Descartes, Schopenhauer, Nietzsche; sistemáticos como Spinoza, Kant ou o próprio Hegel, sobretudo, este, nos escritos da juventude), mas como quem se recusa a deixar-se prender nas malhas necessariamente racionais e lógicas de um pensamento que se pretende senhor de si próprio e não apenas das contradições dos outros. Chestov — e é esse o seu paradoxo central —, dialecta fulgurante, contraditor apaixonado, filosofante incorrigível, não pretende filosofar; muito pelo contrário, distinguindo entre certeza e verdade, e lutando contra as «evidências» em nome de uma fé absoluta (que ela mesma ainda é algo de possessivo e de constrangedor, algo de ilusório), Chestov abandona a filosofia pela metafísica, uma metafísica que, na definição do seu contemporâneo e compatriota (e emigrado também) Berdiaev, não pode senão ser, e não visa a ser mais do que escatologia, ciência precária do Fim último do homem.

Mas Chestov não é salvacionista. A salvação individual ou colectiva é, para ele, como que uma diminuição, quase um aviltamento, das dimensões do espírito. A sua escatologia não é humanista sob nenhum aspecto. Assim como foi inimigo — por internacionalista — do panslavismo e da eslavofilia de Dostoievski, ou mesmo Soloviev, de Rosanov, de Berdiaev, assim não considera essencial que o homem se salve, mas que veja. E é esse o sentido da sua insistência na parábola do Anjo da Morte.

Na medida, pois, em que é um céptico e um nihilista, tendencioso e brilhante, Chestov, alienando-nos da consideração dos valores humanos e dos valores éticos, num mundo que, cada vez mais, apela justamente para eles, é dissolvente — e é-o de um modo que não tinha, há trinta anos, a virulência de hoje. Quando a intelectualidade francesa o leu e assimilou, ela precisava de tudo o que lhe destruisse as pretensões «clássicas», pretensamente cartesianas, em favor de uma libertação das disponibilidades humanas, da qual a N. R. F. foi o baluarte muito literário. E foram estes aspectos negativos de Chestov que mais influiram, desencadeando meditações existenciais de grande valor, que muito devem à descoberta da «visão segunda»: um Fondane não teria escrito, antes de Chestov, a obra-prima de crítica que é Baudelaire et L’Experience du Gouffre (Paris, 1947).

Para os portugueses de hoje, Chestov poderá ser uma arma de dois gumes, se não forem revelados os seus aspectos positivos. Para os espíritos desprevenidos, pretensiosos, ou cínicos, o seu cepticismo e o seu nihilismo podem constituir mais um alimento, tanto mais fácil quanto Chestov se lê muito bem e parece a destruição da filosofia ao alcance de todas as bolsas. Henri Lefebvre, muito lucidamente, pôs em relevo que Chestov, ao exigir à morte uma revelação da ilusão da morte, ao exigir uma negação imediata do perecível, se demite de agir contra as causas da injustiça, quando a injustiça na história e o pavor do que se cumpriu se apoderam dele. Mas, para os espíritos cautos, honestos e sinceros, o seu fideísmo feroz, a amplidão da sua crítica literária que, neste livro, extrai de Dostoievski e de Tolstoi, por grandes que eles já sejam, coisas muito grandes (precisamente por não se limitar à literatura, que o não interessa como tal), até a sua má-fé de polemista contra as falsas evidências, contra o conforto do espírito, a segurança da alma, o sibaritismo da inteligência e da religião, não poderão deixar de actuar positivamente, até na medida em que os torne menos cautos de uma cautela recebida, menos honestos de uma honestidade aceitada, menos sinceros de uma sinceridade que nunca duvide de si mesma.

De resto, em Portugal, como em França, Chestov é uma sombra, hoje injustamente esquecida, mas com mais de trinta anos. A sua obra, e em especial este livro, teve grande repercussão nos meios literários vanguardistas dos anos vinte e trinta. Quase todos os homens do grupo da Presença sofreram a sua fascinação. Em 1930, nesta revista, José Marinho já estudava o «equívoco chestoviano». E o Anjo da Morte está presente nas obras de quase todos eles. Em José Régio, sobretudo, desde Jacob e o Anjo até à Farsa da Salvação do Mundo, desde o Príncipe com Orelhas de Burro a Uma Gota de Sangue, tornou-se um dos temas fundamentais da sua criação literária. Que mais não fosse para melhor compreender um grande escritor português, haveria que ler estas Revelações da Morte.

Assis, Maio de 1960.