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Fortaleza de São Sebastião, Ilha de Moçambique

Entrevista em Moçambique, julho de 1972 [fragmento]

Em 1972, durante sua viagem ao continente africano, Jorge de Sena concedeu uma entrevista à Rádio Moçambique, no dia 19 de julho, a ser transmitida no programa "A noite e o ouvinte", produzido por Manuel Tomaz e Leite de Vasconcelos (o entrevistador). Censurada logo depois de sua gravação, esta entrevista nunca foi transmitida. Tratam-se, na verdade, de 86 minutos de intensa reflexão crítica, histórica e literária de tudo aquilo que rodeou a vida e a obra de Jorge de Sena. Nas claras e longas respostas, encontra-se vasta gama da conhecida erudição de Sena, articulada com um notável empenho pedagógico e um refinado senso de humor, que revelam o grande tecido de considerações estéticas, políticas e históricas, dentre outras, de que se fez o pensamento seniano. Após 38 anos, coube à Antena 2 a primeira transmissão radiofônica desta verdadeira "relíquia" (no dia 2 de novembro de 2010, quando Sena completaria 91 anos). E mais detalhes sobre as circunstâncias que a cercam podem ser ouvidas em http://www.rtp.pt/antena2/?t=Jorge-de-Sena-1919-%96-1978.rtp&article=1570&visual=2&layout=5&tm=5, no vivo testemunho do próprio jornalista Manuel Tomaz, a quem se deve sua preservação.
 

 


Imagem: Jorge de Sena e a Ilha de Moçambique. Fotografia de Rui Knopfli.

 

MT – Suponho que não vale a pena fazer qualquer espécie de apresentação ao público. Jorge de Sena é suficientemente conhecido e vai perdoar-nos o facto de não antecedermos de qualquer título o nome de Jorge de Sena. Vamos começar por perguntar ao poeta Jorge de Sena como chegou à poesia, se houve algum itinerário que o conduzisse a ela, nomeadamente um itinerário de leitura e de análise de outros poetas.

JS – […] O que me aconteceu foi o seguinte: eu escrevi sempre, sem ter consciência disso, desde quando era criança, e por volta de, suponho eu, quando tinha 16 anos, comecei a escrever conscientemente do que escrevia. […] Eu conhecia bastante, nesse tempo, os clássicos, […] conhecia vários poetas estrangeiros das línguas que podia ler e estimava, e procurei ler mais, mas só depois é que eu comecei a conhecer os poetas modernos portugueses. Eu vivia tão fora do que fosse vida literária em Portugal que nem sabia que eles existiam. E aconteceu uma coisa muito curiosa: eu mostrava alguns dos meus primeiros poemas a colegas meus, primeiro de liceu, e depois de faculdade. E havia um par de amigos meus que tinham uma paciência, coitados, de ouvir aquilo tudo que eu mostrava. E uma das coisas que mais influência teve, por curioso que pareça, na maneira como eu me tornei independente na forma de escrever, foi a estreiteza de um dos meus colegas, que tinha a convicção de ser um dos homens mais inteligentes do mundo (sempre teve, coitado), e era um homem muito inteligente, realmente, mas que não entendia e que não conhecia nada de poesia moderna, e quis constantemente insistir em que aquilo tudo que eu escrevia não era poesia, nada daquilo era poesia, nada daquilo eram versos, nada daquilo tinha regularidade nenhuma, era uma coisa perfeitamente inclassificável. E foi, talvez por uma espécie de oposição ou reacção contra aquela atitude dele tão rígida, e de outras assim, que eu fiquei um poeta moderno sem me dar conta. Quando depois eu comecei a ler mais poesia moderna, muito admirado verifiquei que eu era um poeta moderno e não sabia.

MT – Ora, a poesia portuguesa, desde que Jorge de Sena começou a escrever, passou por vários caminhos, sofreu várias influências, e falou-se de várias correntes, ou existiram de facto várias correntes na poesia portuguesa. Jorge de Sena alguma vez sentiu-se incluído em algumas dessas correntes?

JS –[…] Eu senti-me sempre incluído em diversas correntes. As correntes é que nunca me consideraram incluído nelas. […] Estando eu a par do que se passava e sendo eu muito curioso de conhecer literatura, eu ia sabendo do que se passava nas outras literaturas e não estava, portanto, a descobrir a pólvora. […] Por exemplo, eu creio que fui neo-realista, eu creio que fui surrealista etc. ao mesmo tempo, ou antes, das pessoas que apareceram depois com os “ismos”. Quer dizer: eu fui neo-realista quando conheci os neo-realistas, juntamente com eles. […] Quando apareceram os Cadernos de Poesia (que primeiro foram organizados, como se sabe, por José Blanc de Portugal, Rui Cinatti e Tomás Kim…) […] comecei a colaborar com eles – atitude, digamos, de vários dos neo-realistas, que o neo-realismo estava ainda a aparecer nessa altura, as obras ainda estavam por vir… O que havia eram as polêmicas, em grande parte como já costumava acontecer com os movimentos literários… E acontece que muitos desses neo-realistas eram nossos amigos pessoais (e continuaram a ser, como ainda são hoje), outros não eram, e, de uma maneira geral, catalogaram Cadernos de Poesia como sendo uma coisa que era o contrário deles. Mas os Cadernos de Poesia não eram o contrário deles, nem desde a primeira hora, até porque… as pessoas habitualmente ignoram, ou não sabem, ou nunca viram uma coleção dos Cadernos de Poesia, que é hoje uma coisa muito rara. […] Toda a gente, de todas as cores (menos para um certo lado), todas colaboraram nos Cadernos de Poesia, e todas foram convidadas a colaborar nos Cadernos de Poesia e colaboraram neles, o que prova evidentemente que os Cadernos de Poesia não eram contra eles, senão tinham-nos excluído. Mas fazia parte, evidentemente, do mito (e há sempre os mitos polémicos em todas as coisas), de que as pessoas eram contra aquilo […] E houve sempre outra coisa que nunca se entendeu, e que eu desejaria explicar: em Portugal é muito difícil, e sempre foi – e isso vem dos próprios defeitos da maneira de como a literatura é ensinada tradicionalmente – que as pessoas não sejam todas arrumadas numa prateleira, com uma ficha de catálogo, com um rótulo de um “ismo”, de um isto ou daquilo ou daquilo outro, e, quando as pessoas não acertam numa coisa destas, estamos todos perdidos, porque os historiadores literários estão habituados a arrumar tudo segundo o catálogo e quando encontram uma pessoa em quem não podem pôr um rótulo simples, deixam-nos ficar no fundo da página, não é? E é o que costuma acontecer. E aconteceu connosco, com todos nós. Uma das coisas mais curiosas, por exemplo, é falar-se assim do “grupo” dos Cadernos de Poesia como se os Cadernos de Poesia tivessem sido um grupo. Os Cadernos de Poesia não foram um grupo; foram uma série de pessoas que fundaram uma revista com a intenção de que a qualidade poética, dentro de certos limites de exigência de consciência do mundo, fosse preservada, numa altura em que, de um lado, nós tínhamos a presença, os homens da presença, a gritar pelo documento humano etc. etc. (e nunca diziam à gente como é que as pessoas escreviam fosse o que fosse) ou, do outro lado, tínhamos outros sujeitos a exigir que as pessoas se comprometessem aqui, ali e acolá. E todos a escreverem da mesma maneira, como os presencistas escreviam, e os presencistas e eles todos a escreverem como se escrevia antes de existir o Fernando Pessoa, não é? E esse é um dos raros segredos que a Crítica Literária não costuma sublinhar e é assim. E a atitude que nós assumimos coletivamente não foi a de um movimento. Foi, digamos, a de reagir, não contra as idéias, mas contra o facto de, no meio daquilo tudo, as pessoas se esquecerem de que a poesia se faz com palavras, a poesia se faz com expressão poética, a poesia se cria como um objecto estético, e não são necessariamente as idéias, ou as boas intenções, ou o documento humano, que faz seja o que for um objecto estético: é a própria arte com que as coisas são feitas.

MT – […] Ainda há pouco tempo eu ouvi alguém, aliás na rádio, a referir-se ao que deve ser a poesia, frisando até, ou enunciando até certas normas, significando uma função social da poesia e a necessidade daquilo que os ingleses poderiam chamar um commitment ou os franceses um engagement. Qual é a posição do Jorge de Sena em relação a estes aspectos?

JS – Bem, eu acho que eu fui sempre, nesse sentido, um poeta engagé, ou se quiser um poeta commited. A única coisa que eu nunca fui, não sou e creio que agora já é tarde para ser é estar commited ou engagé a qualquer programa que me seja imposto por alguém. Eu sempre estive commited ou engagé às idéias que me impus, ou que eu aceitei eu mesmo. Quer dizer que eu nunca aceitei quaisquer programas partidários de qualquer espécie. Eu nunca pertenci a nenhum partido político, não pertenço e creio que nunca pertencerei… Da mesma forma que nunca pertenci a secções de futebol, a clubes de classe, a outras coisas; que sempre fui a pessoa menos associativa do mundo, porque acho que associação, nesse sentido, é o oposto da coisa que mais estimo, que é a convivência humana. Eu acho que conviver é muito mais importante do que a gente associar-se para comer bacalhau, ou a gente associar-se para celebrar o aniversário do Infante D. Henrique, ou a gente associar-se para salvar o universo, inclusivamente, porque há numerosas formas de salvar o universo, o que faz que todas juntas não cheguem para isso.

MT – Poeta português, e não apenas por linguagem, Jorge de Sena não vive em Portugal. E como, portanto, pode assumir, longe, a realidade [literária] portuguesa?

JS – […] Quando nós estamos de longe, temos pelo menos uma possibilidade, que é escapar àquele problema que sempre existe de, no meio da floresta, não se ver floresta por causa das árvores. E também aos erros de perspectiva, que fazem a gente julgar que uma árvore pequenina que está ao pé de nós é muito grande, e que uma árvore muito grande que está longe de nós é muito pequenina. E é exactamente isso: quando a gente está de longe vê-se melhor, corrigem-se melhor as coisas. Além do mais, eu penso que […] ninguém tem a obrigação de ser o registro civil de tudo que se publica num país. A gente tem sempre tempo de esperar algum tempo, de saber quem é que se afunda e desaparece, quem é que fica. E aqueles que ficam a gente vai ler depois. Não há necessidade de ler todas as semanas tudo o que se publica. Até porque eu acho […] que todas as literaturas normalmente são feitas de obras notáveis e de obras relativamente medíocres. E se a gente passar a vir todas as semanas a ler 80% de porcarias e 20% de obras boas, a gente acaba por medir as coisas boas pelo nível da porcaria, não é?

 

Para ouvir a gravação completa da entrevista: clique aqui.

Para ler a transcrição na íntegra: clique aqui.