B) Cartas do Brasil
De Assis, a 11 de Jan. de 1960, Mécia escreve a Jorge de Sena uma carta dactilografada (a primeira, do corpus em análise) de 2 páginas com um breve post scriptum manuscrito, a qual merece uma referência especial, designadamente, pelo que denota de um sentimento profundo de expatriamento e exílio e de uma especial sensibilidade feminina para com o homem amado.
Nesta carta muito expressiva, Mécia começa por tranquilizar Jorge de Sena em relação à chegada do seu trabalho sobre Brecht passando depois a transcrever o seguinte poema de Veiga Leitão, poeta português, enviado ao casal:
“ Um – ao cabo da terra / Outro – para além dela/ Ambos – a dimensão do homem/ E de uma estrela”
Seguem-se as notícias do correio chegado, mudando-se o tom informal num desabafo de magoada desilusão e intranquilidade sentidas neste seu novo destino que é comparado a vivências anteriores e expectativas, face aos frequentes afastamentos físicos de Jorge de Sena. “Monólogo”, lhe chama Mécia, que o informa ainda de que está passando a sua tese da Bahia, trabalho denso e demorado. Noutra carta, 4 páginas manuscritas datadas de Assis, 21/1/960, Mécia reconhece o seu anterior pessimismo e retoma, no seu sentido prático, expedito e reflexivo, os comentários críticos, as informações de tudo e sobre tudo. Insiste, a finalizar, no pedido de notícias por carta (demoram 5 /6 dias a chegar) ou telefone.
Numa breve ponderação retrospectiva da correspondência de Mécia de Sena, que ela própria chega a classificar, com algum chiste, de “epocalmente camiliana”, são recorrentes temas tão diversos como a literatura e a tradução, a política, as intensas relações sociais e culturais, a amizade, camaradagem e solidariedade, os constantes contactos com editores portugueses e brasileiros, mas também os atritos, os quotidianos de muito trabalho, agitação e pouca disponibilidade financeira, os desabafos de angústia e sensação de abandono, as saudades e a dor do afastamento físico, tal a intensidade amorosa.
Por entre esta diversidade e abundância de pormenores de sua escrita metódica e sistemática, perpassa um discurso pragmático, elegante e cuidado em que se entrecruzam traços narrativos, diarísticos e descritivos de que emerge, nítida, a singular mulher e intelectual que é Mécia de Sena.
As mais de 100 cartas escritas, por Mécia de Sena a Jorge de Sena, neste período brasileiro, são cartas de uma espontânea sensibilidade literária, estética sensualidade e genuíno erotismo que caracterizam a intimidade do casal e o seu mundo de privacidade sabiamente resguardado da intensa rede de relações sociais em que sempre se moveram. Para além desse traço constante, expressam também, a par da latente narrativa de um viver quotidiano, extremamente rico e variado, as constantes confissões de amor, fortes valores morais, políticos e éticos, suas relações de amizade com escritores, intelectuais e figuras públicas proeminentes do Brasil e de Portugal, insatisfações sociais, preocupações familiares, desejos de afirmação e reconhecimento, lutas pela liberdade política e solidariedades cívicas, literárias e culturais.
2. Cartas de Jorge de Sena: “Minha querida Mécia, meu grande e único amor/…meu imenso amor”
Afere-se das cartas recebidas de Jorge Sena quanto da sua leitura se verte no tom das respostas que merecem a Mécia. A sua análise exaustiva permitiria demonstrá-lo. Tal não se mostrando aqui possível, resta-nos seleccionar para análise algumas cartas de Jorge de Sena e destacar desde já uma delas, por nos parecer mais representativa, sem porém deixar de seguir os traços de leitura-escrita que transparece das cartas analisadas.
Nessa carta de 6 páginas, datada de 24/7/63, e expedida do Rio de Janeiro, Jorge de Sena atento ao desejo repetidamente expresso por Mécia de sempre ter notícias suas, escrutina minuciosamente as últimas cartas recebidas e enviadas, tantas das vezes trocadas através dos amigos e dá-lhe conta da longa demora das ligações telefónicas. E antes mesmo de responder à carta de Mécia, conta longa e pormenorizadamente tudo quanto fez entretanto no Rio, desde os frequentes almoços e encontros com numerosos amigos e conhecidos, como Adolfo Casais Monteiro, António Pedro, Agostinho da Silva, etc. com destaque para uma incompreensível conversa ditada por despeito, com um amigo português, “relatório de raiva feroz” que o deixa amargurado e triste, sentimentos só ultrapassados com o jantar amistoso com outro amigo, brasileiro, as suas idas ao cinema e as críticas à má qualidade dos filmes no Rio, até à descrição minuciosa das longas pesquisas na Biblioteca sobre as várias edições (1616, 1645 e 1666-68, todas cotejadas) das Canções de Camões e outros assuntos candentes do momento, editoriais ou políticos, como a possível edição de trabalhos senianos (ex a Tipologia deixada na Agir por Meyer) ou a notícia de carta confidencial recebida de S. Paulo, por um dos do grupo, sobre reunião de democratas em Praga para preparação dos destinos da Pátria a que Jorge de Sena contrapõe a ida a Argel, Paris e Roma.
“E aqui tens, faltam-me ainda umas leituras na BN e no Gabinete P. de Leitura onde ainda não fui. No Gabinete do Livro apareceu-me o Joel Pontes que me fez grande festa. E agora a carta. Espero que tenhas ao menos conseguido que a encomenda do Parthenon não seja devolvida até eu voltar. Pela minha carta já sabes que vi as provas do Bernardino em S.Paulo.”
Seguem – se as suas opiniões quase sempre indexadas ao que D.Mécia entender sobre assuntos de família e bens próprios, como a sua casa em Portugal. E insiste com a mulher para que vá ao médico.
Ora, se do anterior conjunto de cartas femininas é ilustrativo do que foi e como foi vivido por Mécia de Sena quer o afastamento físico de Jorge de Sena e a curta fase preparatória da decisão da partida definitiva para o Brasil, quer a sua vida em Portugal, com ele longe, já no seguinte sub-conjunto de cartas de Jorge de Sena, podem seguir-se, em traços largos, aspectos dominantes da carreira e biografia literária, cívica e política de Sena, nos anos 1960/65 no país cuja nacionalidade adoptou por razões de natureza académica e onde desenvolveu intensa produção literária e actividade de investigação e docência, como investigador e professor universitário doutorado em Assis (São Paulo) e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, ou ainda de intervenção política, como co-fundador da Unidade Democrática Portuguesa, membro do conselho de redacção do jornal Portugal Democrático e participante em actividades do Centro Republicano Português, de São Paulo.
A leitura que se faz deseja-se orientada pela advertência que o próprio Jorge de Sena faz em relação ao lugar especial que atribui às cartas de Mécia: “É evidente que convém distinguir entre cartas de “expediente profissional”, cartas de amigos e, neste caso, cartas da Mécia.” bem como pela percepção que tem da intensa correspondência trocada entre ambos: “E nós que podemos estar a fazer uma escrita de felicidade”.
Efectivamente, assim é o diálogo entretecido de cultura e literatura que emerge nítido das cartas de Jorge de Sena agora em foco e que iremos ilustrar com a selecção de alguns fragmentos de 12 cartas do escritor.
Logo em 1959, numa belíssima carta de amor enviada por Jorge de Sena do Recife, em 7/8/59, para Mécia, então ainda em Lisboa, ele colhe fotograficamente e assim regista na memória, o momento inicial do doloroso afastamento da mulher, seguido de uma profunda sensação de liberdade ganha.
“…saudade e amargura de não estares ao meu lado sobrelevam a sensação estranhíssima de respirar o ar livre do Brasil, que logo no avião começou. Revejo o teu “vulto” na porta de embarque…e de tanto sermos um, foi esta a separação mais dolorosa… mas cada vez mais somos um só, vivemos mais um no outro, meu Amor, não é?”
Um mês depois, Jorge de Sena escreveria assim, do Rio de Janeiro em 29/9/1959, como sempre, carinhoso, mas dando então notícia de diligências feitas para tratar de papelada oficial necessária à sua permanência no Brasil e à partida para aí da sua família, em Outubro de 1959:
“Meu amor, minha muito querida Mécia…Para simplificar, e porque fui ao Consulado por causa da licença militar e levar os retratos que me haviam pedido e tirei, fiz a declaração imediatamente, aproveitando a amabilidade deles. Aqui vai ela.Escrevo-te do correio para não perdê-lo. Espero que não haja encrenca com o engano dos dois nn no nome, tanto mais que a assinatura vai reconhecida. Beijos, beijos, beijos, infinitas saudades do teu que te aperta contra o coração. Jorge”
Numa deslocação de Jorge de Sena a S. Paulo, este escreve daí uma longa carta de 4 páginas, datada de “quarta – feira, 20/1/60” e endereçada a “ Meu amor, minha querida Mécia”, que envia “em mão” pelo seu colega brasileiro da Universidade de S. Paulo, o professor emérito de Literatura Portuguesa, António Soares Amora. Começa por indagar do bem-estar da mulher e dos filhos para logo desabafar:
“Que saudades tenho, que desirmanado, que desamparado fico sem ti!”
Pede que lhe envie o correio importante que haja chegado ou lho leve quando for ter com ele, deixando-lhe a decisão do que achar melhor, isto é, entregando-se nas suas mãos.
Descreve-lhe a viagem agradável que fizera com um dos filhos que levara consigo de passagem para a fazenda do amigo Décio, em Orlândia, depois de Ribeirão Preto, a cerca de 400kms de S. Paulo e a quem, diz, não deu dinheiro algum pois era ainda novo e não pareceria bem, não deixando porém de indagar da mãe “Que achas?”. Descreve-lhe em pormenor, tudo o que fez, os assuntos tratados no Instituto de Estudos Portugueses, as reuniões em que participara com amigos e camaradas sobre relações problemáticas no exílio e a participação, por alguns dos envolvidos, no golpe de estado em Lisboa do 11/ 12 de Março de 1959, i.é, a “Revolta da Sé”. Descreve actividades realizadas, políticas, ou de escrita, no jornal do Estado de S.Paulo:
“… No encontro no “Estado” tive de suprimir do artigo as referências, as notícias, a discriminação das obras completas do Sá –Carneiro. Mesmo assim, ainda ficaram de mãos na cabeça com o tamanho do artigo. O Bianchi e o Décio mostraram-me a carta que tinha ido para aí a dizer que eu não me ralasse com ter saído o artigo do Neves sobre o mesmo assunto. O Amora que agora foi lá recebera os 2.000; por isso não vai ser preciso por agora levantar dinheiro. …
A Conferência da Amnistia que afinal foi autorizada…dasabou em cima de mim. Eu pertencia com o Victor e o Sertório à Comissão de Resoluções e sou o redactor de todas as mensagens que serão expedidas. Além disso pediram-me para redigir …os entremeios da prosa do folheto que apresenta a documentação sobre “plenários”, “prisões”, demissões”, etc. Um folheto informativo que será distribuído aos delegados. Nem tempo tive ainda de pegar na crítica ao Nobre que no “Estado” esperam, nem de ir à Biblioteca. Ainda ontem à noite marchei para casa do Vítor onde havia reunião das comissões, com mais sossego do que na União dos Escritores que é uma balbúrdia. O Casais chega amanhã do Rio mas calcula que exigiu que lhe pagassem a viagem. Falarei com o Vítor para que ma paguem também, não te parece?. O trabalho merece alguma compensação , e ele tem dinheiro e nós não temos.”
Nesta carta, para além de outros assuntos seus do dia-a- dia, pede-lhe para ver com o Amora umas correcções a um trabalho seu, indicando-lhe concretamente o local dos livros que usou e a consultar. Sempre preocupado com Mécia, fala das diligências feitas para lhe conseguir um ortopedista e despede-se assim:
“Como vês meu amor nem tempo tenho para me coçar – mas sempre minha querida Mécia para pensar em ti. A pensar em ti mal durmo (hoje pela madrugada sonhei com o major Sequeira que nos ia processar, imagina tu! ), mal ando, mal faço tudo. Sem ti, sabes bem como nada sou e nada valho. Começo a nem saber falar sem ti ao pé de mim, como nem sei dormir sem ter-te a meu lado. E sem os teus braços, a tua boca, o teu corpo, não sei sequer, meu Amor viver. Beijo-te muito, muito, muito, aperto-te os seios com as mãos como tanto gosto – sou inteiramente teu. Dá lembranças à Clara, beijos aos pequenos. Recomenda-me aos amigos daí. Com imensas saudades aperto-te contra mim. Teu do coração. Jorge.”
Em carta de 4 páginas, datada de 6ª feira, 19/7/963, Rio de Janeiro, Jorge de Sena conta pormenorizadamente a sua viagem a partir de São Paulo e chegada ao Rio onde, diz, trabalho e contactos correram bem, com tempo ainda para conviver com os amigos, ir ao cinema e ao calista. Destaque para os seus comentários a aspectos característicos da situação no Rio de Janeiro e em Portugal, e reflexões existenciais:
“Imagina tu que o hotel – e o que me valeu foi ter telefonado de casa do Pimentel a fazer reserva – está custando como todos, a módica quantia de 3700 crzs!! Mais de quatro contos…só para dormir: amanhã vou fazer umas investigações a saber se estão todos assim pois que é uma dor de alma gastar assim o dinheiro.
O Salazar arranjou nova maneira de chatear as pessoas … o Nuno Fidelino de Figueiredo foi à Europa com a mulher e os filhos e tinha a intenção de passar um mês ou dois, primeiro em Lisboa, com os pais. Sabes o que lhe fizeram sendo ele já brasileiro? Declararam-no indesejável no aeroporto e não o deixaram desembarcar. Ele reclamou, entrou o cônsul em acção (o Negrão, não, é claro) e deram-lhe um visto de trânsito para 3 dias, e no 3º dia meteram-no no avião para Paris. A coisa agora é feita com elegância. Não é verdade?… Foste ao médico já?… Não deixes de ir mesmo que te sintas melhor…Não imagines que mesmo o ferro de que somos feitos não se gasta: gasta porque lhe temos dado muito uso.
Que vida a nossa! Como gostaria que estivesses aqui comigo onde inclusivamente com a tua mania de utilidade concreta (como se as pessoas não pudessem ser úteis só de existirem, D. Mécia!) me ajudarias a fazer render mais as pesquisas. Será que alguma vez levantamos a cabeça? Sabes que chego a ter medo de que isso aconteça algum dia? Será que somos daqueles que vivem longamente assim ou morrem quando a vida lhes melhora. Assim tivéssemos para aturarmo-nos a mesma energia que temos no amor e na luta pela vida, mas não se pode ter tudo….
Dá muitos beijos aos pequenos todos. E para ti vai com a minha saudade e o meu amor o grande e apertado beijo do teu Jorge.”
Noutra carta de 6 páginas, datada do Rio em 24/7/963, Jorge de Sena escrutina minuciosamente as últimas cartas recebidas e enviadas, através dos amigos, e dá conta da longa demora das ligações telefónicas. Conta demorada e pormenorizadamente tudo quanto fez entretanto no Rio, desde os frequentes almoços e encontros com numerosos amigos e conhecidos: Adolfo Casais Monteiro, António Pedro, Agostinho da Silva, e outros. Refere-se a uma incompreensível conversa com um amigo português marcada pelo despeito, “relatório de raiva feroz” que lhe provoca amargura e tristeza só ultrapassadas em jantar amistoso com um amigo brasileiro. Fala das idas ao cinema, critica a má qualidade dos filmes no Rio e descreve minuciosamente as longas pesquisas na Biblioteca sobre as várias edições das Canções de Camões (edições cotejadas de 1616, 1645 e 1666-68). Aborda ainda outros assuntos candentes, editoriais ou políticos, como a eventual edição de trabalhos seus (ex a Tipologia deixada na Agir por Meyer) ou a notícia de carta confidencial recebida de S. Paulo, por um dos do grupo, para uma reunião de democratas em Praga para preparação dos destinos da Pátria a que por Sena foi contraposta antes a ida a Argel, Paris e Roma:
“E aqui tens, faltam-me ainda umas leituras na BN e no Gabinete P. de Leitura onde ainda não fui. No Gabinete do Livro apareceu-me o Joel Pontes que me fez grande festa. E agora a carta. Espero que tenhas ao menos conseguido que a encomenda do Parthenon não seja devolvida até eu voltar. Pela minha carta já sabes que vi as provas do Bernardino em S.Paulo.”
Seguem–se as suas opiniões sempre indexadas ao que Mécia entenda e insiste com a mulher para que vá ao médico,
“…essa aversão á medicina é pecadilho infantil. Afinal que queres tu? É complexo de auto-destruição? Os médicos também tratam isso e com pílulas. …
Hás-de concordar que não serão os remédios que fôr preciso comprar que desequilibrarão o nosso orçamento em teu favor, prejudicando o papel de anjo isento que só trabalha e não custa dinheiro que te obstinas em representar. Podes continuar a ser anjo e mais eficaz com pílulas angelicais contra os rins e vísceras maléficas. Estou e não estou brincando. Achas – e é verdade – que já não consegues aguentar o trabalho e os filhos? É sem saúde que esperas aguentar melhor?”.
Queixa-se de problemas nos olhos que lhe dificultam o trabalho na biblioteca, para logo passar a outro assunto, de implicações políticas:
“…Quanto à história do Kim [talvez o amigo Timás Kim dos Cadernos de Poesia] a coisa tem de ser considerada cuidadosamente; Um dos meus capitais –nossos – é a política que tenho mantido e o respeito que me têm. Pode ser que o Kim tenha tido uma inspiração nem duvido. E de resto se eu recebesse garantias da PIDE ( e pode-se ou deve-se confiar nela?), quem não pensaria que depois do que tenho dito e feito eu não traí? Um lugar em Lisboa, para educar os filhos, só com 6 ou 7 contos por mês, pelo menos. Quem mos dá? Quando voltar escrever-lhe- ei. E acho a história dos Cadernos muito divertida sobretudo num momento em que se fazem “sondagens” e se dará um golpe que provavelmente porá os comunistas em pânico. Eu estou tão cansado do Brasil como tu…mas a verdade é que sou (talvez até Agosto…) catedrático e vou escrevendo e editando coisas que lá ninguém me editaria…. e sempre vamos educando os nossos filhos… Mas tudo isto é para conversarmos longamente. Claro que se houver o golpe do Lacerda, aí regressamos a toque de caixa… mas ao menos de graça. (…)
Mas estas coisas desde que os livros saiam e eu possa escrever já não me aquentam nem arrefentam. O caso na faculdade envolvendo alunos que são também meus, é outra coisa. Os meus olhos não aguentam mais. Amanhã, telefonar-te-ei, e poderemos falar emocionalmente, já que tudo vai aqui tratado. Beijos muitos aos pequenos. E as saudades e o beijo do teu do coração Jorge.”
Em carta de 4 páginas enviada do Rio de Janeiro, a 31/1/965, iniciada como de costume pelo ponto da situação da correspondência entretanto trocada com Mécia, e seguida do relato comentado de peripécias do quotidiano (custos elevados de hotéis e restaurantes, incómodos vários de óculos e sapatos novos, metereologia de calor húmido comum a S.Paulo e contrastante com as securas de Araraquara …), encontramos, como de costume, a referência a vários temas e assuntos: encontros e conversas com os amigos (Casais, Pimentel, Lemos e outros), a boa recepção que em vários locais tem tido, (ex. Real Gabinete Português de Leitura), frequentes idas ao cinema (caríssimo, 500 e 600 cruzeiros), compras de livros, alguns em tradução brasileira para Mécia poder ler, dinheiros recebidos/a receber, desabafos de cansaço forte e memória fraca. Comenta a desatenção dos filhos que nem dão pela sua falta habituados que estão já às suas viagens, e continua preocupado com a saúde de Mécia com quem comenta ainda Lawrence e Balzac.
Na carta seguinte, mais curta, enviada do Rio em 5/2/965, é o convite recebido de Wisconsin, aceite, mas que como diz preferiria que fosse de Illinois, “menos nos confins do mundo” e as conjecturas da preparação da partida da família para essa nova etapa de vida que é o assunto principal. Não faltam as notícias dos almoços com amigos como Cleonice Berardinelli.
Do Rio de Janeiro, Hotel Nice, a 17/8/965, nova carta de 4 páginas em que retoma o assunto da preparação nos serviços de emigração e embaixada, da próxima partida para os U.S.A, com a notícia de que lhe são ofertadas 5 passagens por Scarabótolo que lhe promete recomendá-lo para director do Centro de Estudos Luso-Brasileiros na nova Universidade de Essex, Inglaterra, e que dele dá as melhores referências a adidos culturais dizendo querer prendê-lo pela gratidão porque o Brasil não pode perder um homem assim.. Comenta intrigas várias em universidades, meios de adidos culturais e outros de que teve conhecimento por diversas fontes, incluindo Maria de Lourdes Belchior com quem falara ao telefone e pede urgentissímamente a Mécia que avise o amigo Borba que está a ser alvo, pelas costas, de traição nos meandros institucionais, fornecendo indicações precisas sobre o que deverá fazer para não perder o lugar de direcção que tem.
Volta a queixar-se do calor insuportável do Rio, refere-se aos contactos feitos com agências de viagens aéreas e diz ter passado na Editora Agir onde mantém colaboração, a tratar de assuntos e também nos Livros do Brasil onde encomenda livros para enviarem ao amigo José Blanc em Portugal. Nesta, como aliás noutras cartas, ainda a referência a pedido/remessa de dinheiro dispendido e necessário para o dia a dia.
Em nova carta, 3 páginas, laconicamente datada de “seg. feira, 14h30m” [Setembro +/- 20, 1965, anotação posterior] diz ter chegado bem a casa de amigos onde se instalou com dois dos filhos e refere ter já o visto permanente, pelo que pede a Mécia que vá ter com ele, com os filhos: “Vem portanto já, já, já. Quem sabe se não poderias tomar um ónibus nocturno?”
Por fim, uma carta de 8 páginas enviada do Rio, numa 6ª feira de muita chuva, sem anotação de qualquer outra data. Como sempre, no Rio, o seu quotidiano é um corropio de afazeres, de manhã à noite, em que nunca está sozinho, sempre em contactos de trabalho, almoços e jantares com os mais diversos amigos, visitas a outros para planear e fazer avançar trabalhos de edição e/ou intervenção política, como desta vez os preparativos por Meyer da publicação das suas “Tipologias” ou o almoço com Sarmento Pimentel e Paulo de Castro em que “tudo ficou maquinado para o nosso corte com os comunas”, as pesquisas na Biblioteca onde o seu amigo Emmanoel lhe facilita os microfilmes – desta vez, “o Camões todo”, o “celebrado sumário dos Reis de Portugal” e outras fontes. A estas notícias, juntam-se ainda as novidades dos sucessos ou problemas dos amigos no Brasil ou em Portugal.
São recorrentes as referências, também aqui, às dificuldades de dinheiro e carestia de vida no Rio : estadia no hotel a 2.000 e refeições a 800 e 1000 cruzeiros. Conta os assuntos que tratara no Instituto e na Cultrix em S. Paulo. Como continuam também mesmo que entre parêntesis, as referências mordazes e críticas à situação de Portugal e aos que de lá trazem “notícias importantes…”:
“Não há nada, ninguém espera que aconteça nada e contam com o …Exterior! Seria de anedota se não fosse trágico”
De novo assoma o cansaço de uma vida errante e cheia de obrigações e responsabilidades várias:
“Estarei na sexta feira em Araraquarara. Nem que vá no trem que chega a desoras. Já não sei andar assim sozinho, vagabundo, metido em quarto de hotel, encontrando pessoas, etc., etc…. Virei animal doméstico. E cada vez mais me exaspero de viajar sem ti. Como seria bom se pudesses estar aqui comigo, só comigo! É uma coisa que quase já não sabemos que seja.”
Refere-se ainda a diligências feitas para tratar de subsídios, fala de outros amigos que encontrara na livraria Leonardo Da Vinci, dos comentários positivos feitos ao seu novo livro de Contos “Andanças”, e das notas históricas que pretende acrescentar a Afonso Henriques em estudos seus em fase de provas quase a terminar:
“Aqui tens, querida, o relatório destes quatro dias vertiginosos e chuvosos…. E as pessoas ficam arrepiadas quando digo que não tenho ninguém para trabalhar comigo!
(…) Minha querida, que saudades tenho de ti da tua presença, do teu amor (senhora saiba – e como sei! que ele está sempre comigo!”
Noticia que um seu plano de nova publicação foi muito elogiado, comenta um filme fraco mas divertido que viu e lembra os filhos: “Muitos beijos para os pequenos a quem espero levar uns fantoches de mão que vi na rua se ainda voltar a encontrá-los.”
Como se pode observar as cartas de Jorge de Sena para Mécia, são no geral, fragmentos de um diário quotidiano amoroso, afectiva e psicologicamente intrincado na estreita e profunda relação com sua mulher, companheira certa de todos os momentos, sincronamente correspondido, mas também uma sequência de relatos de vida mais ou menos circunstanciados, em que se destacam as múltiplas actividades, iniciativas, contactos, relações e projectos literários, académicos e de intervenção cívica, cultural e política, em que constantemente está envolvido no Brasil, com particular destaque em Assis e Araraquara, mas também no Rio e em São Paulo, onde se deslocava frequentemente, por temporadas mais ou menos longas.
Enquanto o registo epistolar revela em Mécia de Sena, a sua capacidade gestionária, proficiência e suporte à actividade criadora e profissional de Jorge Sena – um intenso e regular trabalho d(n)as margens, porém, socioculturalmente activo e influente, qual esteio essencial à constituição de uma formação social moldada por valores culturais; na escrita epistolográfica de Jorge de Sena, são dominantes o mundo do trabalho académico e da intervenção directa literária e cultural, o exercício activo da liberdade cívica e política, com ênfase particular na divulgação da língua e da cultura nacional de origem. Mas tal divisão de trabalho ao nível dos papéis feminino-masculino é subvertida pelo desejo vivo que alimenta um dispositivo maquínico de escrita comummente vivida que veio a revelar-se, sublimado, na tenacidade com que Mécia tomou para si, após o desaparecimento físico de Jorge de Sena, a sobrevida numa obra tecida pela experiência de vida intensamente partilhada.
Nesta correspondência de uma fase fulcral das vidas de Mécia e Jorge de Sena, diário escrito a quatro mãos, como se de execução de uma partitura musical se tratasse, assiste-se à experimentação comum da escrita e à construção de um diálogo cultural e político ininterrupto entre Portugal e Brasil através das impressões e notícias trocadas entre ambos.
A abordagem feita, especialmente suscitada pela figura de Mécia de Sena e seu papel de charneira neste diálogo epistolar inédito, assenta num registo biográfico das cartas, instrumento interpretativo dos contextos histórico-culturais em que Mécia de Sena e Jorge de Sena são protagonistas de especial interesse e relevância.
Relevou-se a vertente documental desta produção epistolar, cuja expressão, simultaneamente, íntima e pública, revela aspectos e meandros importantes para um conhecimento mais pormenorizado da vida-obra seniana, evidenciando-se a grande importância socio-histórica, a vários níveis, desta correspondência, espaço potencialmente rico de pensamento, cultura, história e literatura. Sendo que a mesma convive muito de perto com a marcante experiência dos exílios e a profunda consciência de seu significado político, social e histórico, que a vão impregnar com evidente capacidade de resistência, estas dimensões são igualmente relevadas.
Índice de Correspondência Mécia de Sena /Jorge de Sena (Brasil, 1959-1965)
(cartas invariavelmente precedidas dos invocativos “Meu amor”, ou “Meu muito querido Jorge.”
1. De Mécia de Sena para Jorge de Sena
1. Lisboa, 22/2/59, (1 pág.)
2. Lisboa, 24/2/59, (2 págs)
3. Lisboa, 24/2/59, (2 págs)
4. Lisboa, 7/8/59, (4 págs)
5. Lisboa, 8/9/59 [deve ser 9/8/59], (2 págs)
6. Lisboa, 9/8/59, (3 págs.)
7. Lisboa, 10/8/59, (3 págs)
8. Lisboa, 12/8/59, (2 págs)
9. Lisboa, 12/8/59, (2 págs)
10. Lisboa, 14/8/59, (4 págs A5)
11. Lisboa, 15 e 16 /8/59, (4 págs A5)
12. Lisboa, 17/8/59, (4 págs A5)
13. Lisboa, 17-18/8/959, ( 4 págs A5), seguida de uma cartinha da filha Isabel
14. Lisboa, 19/8/59, (2 págs. A4)
15. Lisboa, 20/8/59 , (4 págs A5)
16. Lisboa, 20/8/69 , ( 4 págs A5)
17. Lisboa, 22/8/59, (4 págs. A5)
18. Lisboa, 23/8/59 , ( 8 págs A5)
19. Lisboa, 27/8/59 , ( 4 págs A5)
20. Lisboa, 28/8/59 , ( 4 págs A5)
21. Lisboa, 29/8/59 , (4 págs A5)
22. Lisboa, 30-31/8/59 , ( 4 págs A5)
23. Lisboa, 31/8/59 , ( 6 págs A5(
24. Lisboa, 2/9/59 , (4 págs A5)
25. Lisboa, 3/9/59 , ( 6 págs A5)
26. Lisboa, 4/9/959 , (2 págs A4)
27. Lisboa, 5/9/59 , ( 2 págsA4)
28. Lisboa, 5 – 6 /9/59 , ( 4 págs A4)
29. Lisboa, 7/9/59 , ( 2 págs A4)
30. Lisboa, 8/9/59 , ( 4 págs A4)
31. Lisboa, 8/9/59 , (1 pág. A4)
32. Lisboa, 9/9/50 – [ sem invocativo e continuação da carta anterior ] (1pág A4)
33. Lisboa, 11/9/59 , ( 3 págs A4)
34. Lisboa, 11-12/9/59, (4 pags A4)
35. Lisboa, 12-13/9/59 , (2 págs A5)
36. Lisboa, 13/9/59 , ( 4 págs A5)
37. Lisboa, 14/9/59 , (2 págs A4)
38. Lisboa, 15/9/59 , ( 3 págs A5)
39. Lisboa, 16/9/59 , ( 4 págs A5)
40. Lisboa, 16/9/59 , ( 4 págs A5)
41. Lisboa, 17/9/59 , (4 págs A5)
42. Lisboa, 18/9/59 , (2 págs A5)
43. Lisboa, 19/9/59 , (2 págs A4)
44. Lisboa, 19/9/59 , ( 2 págs A 4, papel timbrado da Portugália Editora)
45. Lisboa, 20-21/9/59 , ( 2 págs A 4, papel timbrado da Portugália Editora)
46. Lisboa, 21/9/59 , ( 2 págs A 4, papel timbrado da Portugália Editora)
47. Lisboa, 23/9/59 , ( 2 págs A5) acompanhada de uma cartinha do filho Pedro de 23/9
48. Lisboa, 24/9/59, Jorge, meu querido (4 págs A5), acompanhada de um bilhete do amiguinho Pito
49. Lisboa, 25/9/59 , ( 3 págs A4)
50. Lisboa, 25-26/9/59 , (5 págs A5)
51. Lisboa, 26/9/59 , (4 págs A5)
52. Lisboa, 27/9/59 – [sem invocativo] Outro dia sem notícias (2 págs A4)
53. Lisboa, 28/9/59 , (3 págs A5) com anotação “Recebi Assis a 5/10”
54. Lisboa, 29/9/59 – Meu amor, meu querido Jorge (4 págs A5) com anotação em letras grandes na 1ª página “Vita Nuova”
55. Lisboa, 1/10/59, ( 3 pags A4) com anotação “Receb. 7”
56. Lisboa, 2/10/59 , ( 3 págs A4)
57. Lisboa, 2-3/10/59, (4 págs A4) com anotação “Receb. a 14/10”
58. Lisboa, 6-7/10/59, ( 4 págs A5)
59. Lisboa, 8/10/59 , ( 2 págs A4)
60. Lisboa, 9/10/, ( 4 págs A5)
61. Lisboa, 11/10/59 , ( 4 págs A5)
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1. Assis, 18/1/60, (2 págs A4 dactilografada, com post scriptum manuscrito de 19/1)
2. Assis, 2171/60, (4 págs A4)
3. Assis, 10/6/60, (2 pág A4)
4. Assis, 3/7/60, (1 pág A4 , papel timbrado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis)
5. Assis, 8/11/60, (4 págs A4)
6. Assis, 9/11/60, (3 págs A4)
7. Assis, 11/11/60, (2 págs A4/A5)
8. Assis, 8/2/61, (2 págs A4)
9. [s.l.] 8/7/61, (3págs); a 1ª pág com a seguinte anotação “PS: veio uma linda carta do Veríssimo”
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1. Araraquara, 1/7/62, (1 pág. A4)
2. Araraquara, 18/7/63, (2 págs A4); anotação na 1ª pág “Receb. a 24/7/63”
3. Araraquara, 23/7/63, (2 págs A4)
4. Araraquara, 24/7/63, (2 págs A4)
5. Ararquara, 27/7/63, (3 págs A4)
6. Araraquara, 3/8/63, (3 págs A4)
7. Araraquara, 4/8/63 , (1 pág A4, dactilografada)
8. Araraquara, 13/12/63, (2 pág A4, dactilografada com post scriptum manuscrito)
9. Ararquara, 10/1/64 , (2 págs A4)
10. Araraquara, 11/1/64 , ( 2 págs A4) anotação na 1ª pág. “ Rec. dia 21”
11. Araraquara, 13/1/64 , (2 págs A4)
12. Araraquara , 15/1/64 , (1 págs A4)
13. Araraquara, 28/1/64 , ( 3 págs A4) rasurado o ano e escrito 65; anotação “Resp.”
14. Araraquara, 1/4/64 , ( 2 págs A4)
15. Araraquara, 31/8/64 , (1 pág. A4)
16. Araraquara, 4/9/64 , (2 págs A4)
17. Araraquara, 5/9/64 , (2 págs A4)
18. Araraquara, 2/8/, (2 págs A4)
19. [s.l.] Setembro 1965, (2 págs A4)
20. [s.l., s.d.] – Jorge (1 pág.A4)
2. De Jorge de Sena para Mécia de Sena
(cartas quase sempre precedidas do invocativo “Minha querida Mécia, meu Amor”)
1. Recife, 7/8/959
2. Rio de Janeiro, 29/9/59
3. S. Paulo, 4ª feira, 20/1/959 [rasurado o ano e substituído por 60], ( 4 págs A4)
4. Rio, 6ªf.[s.d.] , (8 págs A4)
5. Rio de Janeiro, 6ª f., 19/7/63 , (4 págs A4)
6. Rio de Janeiro, 24/7/63, (6 págs A4)
7. Rio de Janeiro 31/1/65 , ( 4 págs A4)
8. Rio, 5/2/65, (2 págs A4)
9. Rio de Janeiro, 31/5/65, ( 4 págs A4)
10. Rio, 17/8/65, ( 4 págs A4, papel timbrado do Hotel Nice)
11. 2ªfeira, 14h30m , (3 págs A4; com anotação na 1ª pág. “Setembro.+/- 20 de 1965”)
12. Rio de Janeiro 31/1/65 , ( págs A4)