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Av. da Liberdade, junto à Rua do Salitre em 1959

Correspondência Inédita entre Mécia e Jorge de Sena: “Vita Nuova” (Período brasileiro, 1959-65)

Ao propor-me estudar e escrever sobre a produção e recepção epistolares de Mécia de Sena no que sou, aliás, reincidente, não posso ignorar quão dilatado é um desafio que envolve milhares de cartas escritas e recebidas.

A primeira dificuldade será o desconhecimento em mar aberto, por assim dizer, da grande maioria das cartas dessa produção, que permanecem inéditas, com a ressalva devida para “Isto Tudo que nos rodeia (cartas de amor): Mécia de Sena e Jorge de Sena” (edição IN/CM, 1982) e a recente publicação “O Re-descobrimento do Brasil: três cartas inéditas” no site “Ler Jorge de Sena” onde se divulgam as primeiras três cartas escritas do Brasil em 1959, por Jorge de Sena para Mécia.

Seguindo os itinerários dessa produção epistolar com lugar de relevo na tradição da epistolografia portuguesa, de elevado valor literário que, designadamente, na observância da estreita relação entre os interlocutores, permitem também conhecer aspectos sócio-culturais e políticos de espaços-tempos concretos, procura-se avançar no conhecimento do seu significado para o desenvolvimento da investigação em vários domínios da Literatura e da Historia.

Correspondência Mécia de Sena /Jorge de Sena: Do amor e da saudade, da separação e da ausência, da unidade existencial e do vivido

As 158 cartas, na sua maioria manuscritas, aqui em análise: 112 de Mécia remetidas de Lisboa, Assis e Araraquara e 46 cartas de Jorge, enviadas do Recife, do Rio e de S. Paulo, entre 1959 e 1965, são um contributo incontornável para um melhor conhecimento de aspectos essenciais da vida e da obra de Jorge de Sena e informam-nos ainda sobre uma multiplicidade de assuntos relativos a edição e produção literária, e respectivos quotidianos vivenciados e comentados, nesta fase decisiva de suas vidas.

Em ambos se mantém a estrutura formal clássica das cartas, com uma parte mais ou menos curta de desenvolvimento, uma conclusão e um prólogo com invocação nominal sempre acompanhada de expressões muito carinhosas.

Diversamente das cartas de Mécia de Sena, numerosas, diárias e geralmente curtas e muito concretas, escritas a partir de Portugal entre Agosto e Outubro de 1959 e depois, já no Brasil, mais espaçadas, as cartas de Jorge de Sena são em menor número e menos regulares mas em geral mais longas e quase sempre imbuídas de um pendor reflexivo e especulativo sobre a vida e os acontecimentos narrados. Mécia quase nunca se afasta de uma das características principais do género epistolar, a brevidade e mantém-se fiel às outras duas: a clareza e a propriedade.

Entretecidas na esfera do privado, nelas assomam a dor e angústia das saudades, as adversidades e vicissitudes do dia-a-dia, as cumplicidades, a coragem de ousar e mudar de vida, o profundo companheirismo e atenção de Mécia e Jorge de Sena na sua primeira separação física mais prolongada de casados e já pais de 7 filhos.

Estas cartas deverão pois ser objecto de uma leitura capaz de colher e transmitir, com sensibilidade, recato, fiabilidade e imaginação interpretativa, a sua dupla dimensão de história vivida e criatividade literária.

1. Cartas de Mécia : Meu amor/ Meu muito querido Jorge

As primeiras cartas deste período, escritas numa regularidade mais que diária, num curto período de 2/3 meses, são, fundamentalmente, o testemunho impressivo e ininterrupto de uma paixão amorosa feminina exemplarmente resistente a toda e qualquer adversidade.

Configuram-se como pormenorizado e agitado diário de bordo extremamente completo das hesitações, incertezas, motivos, circunstâncias e preparativos da decisão de fundo e partida definitiva do casal Sena para o seu exílio voluntário no Brasil (1959-1965), onde não faltam os registos das impressões de estupefacção e dor provocados pelo mesmo, apesar da vasta rede de amigos em que se contam muitos dos prestigiados intelectuais da cultura portuguesa e brasileira.

A) Cartas de Lisboa para o Brasil
A partida de Jorge de Sena para o Brasil e sua ausência é documentada na torrente de escrita epistolar de Mécia de Sena, a que, para sua ansiosa contrariedade sempre assinalada, Jorge de Sena responde, a espaços mais irregulares.

Em carta de 7/8/59, alusiva ao desembarque de Jorge de Sena no Recife, seguindo daí para Salvador, com vista a participar, a convite do governo brasileiro, no IV Colóquio Internacional de estudos Luso – Brasileiros, entre 10 e 21 de Agosto, na Universidade da Bahia, Mécia regista o que irá ser uma constante nesta correspondência: o recurso a intermediários portadores das cartas, estratégia a que ambos recorrem, presumivelmente, por atrasos de correio, insuportáveis.

“Escrevo-te ao cuidado do Eduardo Lourenço porque não encontro a morada do Casais.
É uma e meia da noite, e a estas horas irás já tu muito longe de todos nós.
Estou ainda atordoada destes últimos dias, e da tua partida com gente a mais, todos, memo os mais íntimos, varados, por ser possível que tanto nos queiramos. Mas sempre fico entristecida quando verifico que como não és nunca franco comigo, como vives enganando-me… e nem sequer em casa ao sair me tinhas dito toda a verdade. É isso que não compreendo em ti, que não me habituo a admitir, que faz que eu viva numa permanente e angustiante expectativa do que aconteça e que ainda hoje aconteceu…Acaba sempre tudo por desabar por sobre a minha cabeça quando precisamente em maiores dificuldades me encontro. (…) Temo que o desejo imenso que tens de, compreensivelmente, saires daqui te faça aceitar qualquer situação que aí te ofereçam. …Talvez o Urbano [Tavares Rodrigues] te possa deixar algum dinheiro e pago-lho aqui quando ele voltar. Mas só se vires que é muito necessário porque tudo é pouco…” [ a escrita da carta é retomada às 9h da noite] De manhã telefonou a Helena Moura avisando que o serviço de correio no Brasil é incrível…e oferecia que o pai te levasse notícias nossas. Como o avião parte à uma da noite irei ao aeroporto a ver se consigo quem leve os restantes exemplares da antologia e entregar a carta.
Vieram provas que vi nada tendo encontrado que me parecesse de te perguntar. (…) Mais nada, meu amor, senão que aguardo o teu regresso e que as horas da tua ausência me são intermináveis. (…)

Carta de 8/9/59 (deve ser 9/8/59) – descrição minuciosa, com grande sentido crítico, de episódios e membros da delegação portuguesa ao Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, na Bahia (designadamente, o historiador Veríssimo Serrão, o director do Arquivo Histórico Ultramarino, Azeredo Perdigão da Fundação Calouste Gulbenkian, escritor Vitorino Nemésio, professores Lopes de Almeida e Costa Pimpão, o diplomata André Gonçalves Pereira, o crítico literário Gaspar Simões, e outros.). Afectuosa e apaixonada, diz o que sente: as saudades e o desejo premente de notícias que dificilmente chegam, a imensa falta provocada pela ausência do companheiro e o temor manifesto de que ele decida ficar no Brasil:

“Meu querido Jorge, temo tanto que te entusiasmes a ficar aí, numa aventura que não temos o direito de tentar! E essa gente aí é tão falível, tão de promessas vãs!…E sobretudo temo que uma resolução tua seja razão de uma longa separação nossa, meu amor, e tu sabes como te quero, como só sei viver junto de ti, palpavelmente junto de ti. (..) E entretanto, meu amor, e como sempre, só da tua vida dependo, só tu preenches a minha. Que saudades dos teus braços, meu querido Jorge! …beijo-te ardentemente.”

Em missiva de 10/8/959, 3 dias após a partida de Jorge de Sena para o Brasil, Mécia regista a emoção sentida com a primeira carta que dele recebe e faz um registo fotográfico do seu quotidiano:

“…Ia eu a sair a porta com o pequeno para casa da Eunice, quando o carteiro chegou com a tua carta. Nem queria acreditar, meu amor. Foi como se finalmente alguma coisa me prendesse à terra, e um pouco de calor teu me chegasse.
Realmente nunca me custou tanto a separar de ti, nem saberei bem explicar porquê. Um temor da travessia do atlântico, um temor de que fiques por aí e eu me veja entre o desejo invencível de ir e a necessidade de ficar, sei lá mas talvez simplesmente e de cada vez mais não suportar estar longe de ti e saber que mesmo uma carta leva dias e pode nem chegar, de modo que sempre trocaremos correspondência de surdos.
Eu sei que não será possível eu ir e só para te fazer a vontade fui tratar do passaporte.
(…) Meu querido Jorge, és tudo quanto na vida desejo e quanto a vida me faz desejar. Compreender-nos-ão um dia os nossos filhos? Bem o desejo porque significará que encontrariam com quem se identificar. Beijo-te, meu amor, com uma infinita ternura, beijo-te sempre.”

Constante, a angústia da separação não impede o sistemático relatório de progressão da publicação da obra de Jorge de Sena, como se pode ver nesta carta de 12/8/959 (recebida a 17/8/59, conforme anotação manuscrita de JS):

“ Por certo ainda hoje não terei notícias tuas da Bahia que o transbordo do avião retarda. Estou ansiosa por saber como achaste o Casais, que tal é esse ambiente, como te pareceu assim em conjunto a heteróclita representação portuguesa. (…)
Vi já a prova da crítica do Monumental que devolverei, hoje mesmo, e mais umas páginas da Literatura que também devolverei, ou melhor, virão buscar hoje mesmo, se quiserem. Nada encontrei que impedisse a devolução imediata.
O Agostinho da Silva mandou o caderninho sobre o Fern. Pessoa. Meu Deus, mas o homem está louco de todo ou é da minha vista?
Veio também a página do Comércio com o teu artigo em grande relevo.(…)
Como estará decorrendo o Colóquio? (…)
A humanidade é vil, é pérfida e aquelas patacoadas do Agost.da Silva ainda me irritaram mais, bem se vê que está longe desta esterqueira há muitos anos para ter esperança de que este povo faça alguma coisa na vida. O paraíso terreal! Mas que gente!!! (…)
PS Os pequenos mandam-te sempre muitos beijinhos, bem como te mandam lembranças os amigos e conhecidos… Maria Lamas, etc, etc, etc. toda a gente com quem achego de falar”

Noutra carta datada do mesmo dia, a referência aos muitos amigos que a procuram e dele pedem notícia – outra regularidade desta correspondência.

“Esteve aqui há pouco e por pouco tempo o Cardoso Pires com a Maria Lamas (são íntimos e até compadres). Ela falara nas “Libertinagens e ele mostrara curiosidade em ver e ela veio cá pedir se eu me importava de lhe mostrar.
Esteve a fazer grandes elogios da tua Antologia. Acha o teu prefácio magnífico. Como toda a gente mostrou o seu pasmo por tanto que consegues produzir. (…)
Precisava de acabar a minha tradução mas não consigo por mais que faça, nem sequer chegar à regularidade que precisava das 12 páginas diárias. (…)
Não haverá um deserto qualquer para onde vamos os dois? Ou será que mesmo aí sairia de debaixo da areia qualquer verme para nos incomodar? Porque aí não há suficientemente longe, ainda há Pimpões que lá cheguem! (…)

Em carta de 14/8/959, o relato minucioso do trabalho de tradução e correcção de provas (ex. Literatura Inglesa), do numeroso correio que chega (recortes de jornais assinados, revista Vértice, Revista do Livro…), dos múltiplos afazeres quotidianos e ainda, apesar do estado de abatimento provocado pela morte da mãe, a convivência social e cultural, sempre presente no seu dia-a-dia:

“À noite, a convite da Maria Lamas, fui ao “Restelo” ver a “Grande Estrada Azul”. Uma coisa italiana bem feita, sem concessões de happy end mas muito lenta de acção, com interpretações boas mas não excepcionais. Uma coisa um pouco deprimente ou o meu estado de espírito é que anda deprimido. (…)”
A 15/8/959, Mécia exprime um contentamento indescritível com a chegada de carta de Jorge de Sena, através de mensageiro pessoal, regularidade também de toda a correspondência deste período, aliás, como a referência a dificuldades económicas resolvidas com empréstimos de amigos e dinheiro de traduções feitas por Mécia e Jorge de Sena, como a do “Hamlet” proposta de Luís de Sousa Rebelo, por 6.000.00, “uma ridicularia” mas “não há mais ninguém para a fazer”.

Em 17/8/959, confessa:

“ (…) finalmente nesta tua carta há já um começo de diálogo, que até agora as nossas cartas têm sido conversa de surdos, perdidos um do outro” e termina: “Meu, amor, vivo das tuas cartas e do teu amor. Beijo-te com muitas saudades…” para logo noutra carta do mesmo dia desabafar: “… isto aqui é atoleiro por todos os lados e ainda por cima é pobre, ao nível dos dez tostões que é a coisa miserável, desconsoladora. Não haverá no mundo uma Parságada qualquer para onde vamos? Meu amor, o mundo é nojento e a humanidade está ao nível do mesmo. E a vida é tão breve e tão poucas as coisas que nos dá meu querido. É-me insuportável estar sem ti, sem te abraçar, sem me sentir nos teus braços com a minha cabeça no teu peito quente, acolhedor, que eu sei pertencer-me como eu te pertenço inteiramente.”

Em carta de 17 e 18/8/959, Mécia de Sena, esgotada, ganha alento nesta confissão de amor:

“Pudesse a minha boca procurar a tua e não mais pensaria em nada… que os teus braços me protejam mesmo à distância e pensando neles eu tenha o repouso que tanto necessito”

No dia seguinte, em nova carta noticia os muitos comentários positivos ao estudo de Jorge de Sena sobre Florbela Espanca saído na Ática e indaga: “ Não percebo que voltas vais dar depois da Baia, mas entretanto o saberei por certo”, terminando por perguntar se as teses do congresso serão publicadas e se haverá hipótese de Sena publicar no Brasil uma antologia poética, lembrando por fim os presentes para os miúdos.

A 20/8/59, Mécia dá notícia da falta de pagamento por parte das editoras portuguesas e adverte Sena sobre as faltas na Junta Autónoma das Estradas (JAE), seu local de trabalho em Portugal.

Entretanto, nem um “torcicolo e problemas de fígado” a impedem de sair sob “um luar lindíssimo e temperatura muito agradável” para assistir a uma palestra, em companhia da escritora feminista Maria Lamas a qual esteve: “falando sempre muito de ti por quem ela tem verdadeira admiração”. Ainda na mesma carta, estranha: “Disseram-me ontem que os jornais brasileiros não entram cá, porque?!”

Em carta de 21/8/959, comenta: “os jornais de cá nem uma só vez, citaram, a propósito do Colóquio, qualquer nome fora do Perdigão, do Marcelo e do Reinaldo como se tivessem sido estes sempre os astros do Colóquio.”

A 22/8/959, manifesta a incerteza sobre o regresso de JS, desejando: “ Que venhas em breve, meu querido Jorge, para minha tranquilidade, que tranquilidade é estarmos juntos mesmo nesta inquietação tremenda que é a nossa vida aqui”; e prevendo ser esta carta a última a escrever-lhe para o Brasil, pergunta-lhe se recebeu uma carta que lhe enviara por Manuel Bandeira quando não sabia ainda que endereço usar.

A 23/8, em carta bem mais longa, em que acusa, com grande alegria, a recepção, através de intermediários, de 2 cartas de Jorge de Sena, com mais de 1 semana de atraso, diz “a Emissora está farta de anunciar uma série de palestras entre as quais a tua no dia 27 …na Baía”, e refere-se à boa recepção que em Portugal tem tido o Colóquio, e às diversas atenções e simpatia que tem recebido da tipografia:

“Entretanto foram para cá tantos os telefonemas, os recados, as idas e vindas nestes últimos três dias que parecia uma fita dos irmãos Marx. (Claro que quase não pude trabalhar na tradução e…só consegui, não sei como, ver as primeiras provas de mais um caderno da Literatura…tive algumas dúvidas, mas como entretanto me tinham mandado o original inglês lá resolvi…”.

E é ainda o amor incólume ao desgaste da vida, do casamento e do cuidado com os filhos, que continua a manifestar-se, como sempre:

“…a carta que me trouxe o Urbano foi para mim como um banho lustral, meu querido Jorge. Fico tão envergonhada quando me dizes coisas como estas, meu amor. Só realmente o amor que tenho por ti, me pode fazer avolumar tanto aos teus olhos. E vê lá eu acho sempre que te dou pouco…Só realmente quando me possuis eu creio não ser possível a ninguém, nem humanamente, uma dádiva mais total. É como se simultaneamente estivesses todo em mim, estando eu dentro de ti, abarcada pelos teus braços e pelo teu corpo, numa envolvência indescritível. E tudo te devo, meu amor. Quanto gostaria neste momento de pôr as minhas mãos na tua cabeça, nos teus olhos, na tua cara, como tanto gosto de fazer deitada a teu lado, às escuras, para ir moldando nas minhas mãos os teus contornos inesquecíveis e sentir aquela felicidade transbordante, sequiosa de ti, e apaziguada por ti, ‘quando deitada à tua beira sei que se rasga eterno o véu da graça’. Só desejo viver o suficiente para dizer um dia aos nossos filhos o que acima de tudo devem querer e como se o obtiverem nada mais contará para eles”

Em carta de 27/8/959 mostra-se preocupada com a demora do regresso e com o bem estar de Jorge de Sena em sua digressão pelo Brasil (Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo…) há cerca de 1 mês, repleta de solicitações e trabalho, mas também de contentamento.

Refere-se à amizade de JS com os Barradas de Carvalho, inteira-se das novidades do Colóquio, conta-lhe do convite do Jacinto Ramos para a estreia da peça “O Catão” de A. Garrett, e informa-o que o Ruy Belo (da Aster) fora buscar os poemas de Malarmé e um estudo sobre o mesmo, despendindo-se assim:

“Meu amor, deixei para o fim o agradecer-te o poema que me mandaste. Achei-o belíssimo, querido, mas como de costume quando a tua poesia me abrange, sinto-me enleada, e não sei como agradecer-te senão beijando-te”.

No dia seguinte, noutra carta, depois de desabafar, prossegue noticiando, com seu sentido crítico:

“ …Depois, isto de não saber nunca ao certo, onde estás ou para onde vais, aumenta a minha própria instabilidade. (…) Meu amor, não creio que o Brasil nos sirva. Está demasiado perto e tem demasiados contactos com esta piolheira. Há-de ter sempre a marca indelével deste povo irremediável que primeiro, lhe pisou descalço, o solo. (…)
Os jornais por cá não deram especial relevo ao Colóquio, salvo no respeitante à delegação oficial que só faltou dizer a que horas S. Exa ia ao WC.
Também esses brasileiros podiam ter sido um bocado menos pródigos em “honoris causas”. Quase já não dá honra nenhuma merecer tal honra depois desta distribuição quase ao domicílio. Mais do que a política de boa vizinhança exigiria não creio que fosse preciso e não há dúvida que se excederam. E afinal o Perdigão deu-lhes mesmo o coice. Tinha de se vingar da classe turística.”

Em carta mais breve de 29/8/59, diz com alguma preocupação, que pediu os ordenados dele a “Livros do Brasil”, conta-lhe dos muitos que a visitaram pedindo-lhe notícias suas, e continua a comentar a recepção na imprensa portuguesa ao Colóquio da Bahia:

“A notícia que correu exactamente nos D. da Manhã e do Notícias põe elogios à delegação oficial e também abrilhantava o Paço D’Arcos e tu…”
Confessando-se “perplexa e estonteada” com recente missiva de Jorge de Sena, de 30/8/959, em que pela primeira vez se refere à hipótese de ficar no Brasil, escreve:

“Antes de mais preocupa-me o estado de cansaço em que dizes estar. Isso não pode ser, Jorge. Como vais enfrentar cá depois um ano inteiro ou começar vida aí se as coisas para isso se proporcionam? Estou aflitíssima meu querido Jorge. Que tal é o Juscelino?
Hoje vem no jornal que houve barulhos em Niteroi. Fico preocupada mais ainda. A vida aí sofreu nova alta. Até onde chegará enquanto durar o sangradoiro de Brazília?
Como vai o Thiers arranjar-te esse dinheiro se não deres a tal lição na Faculdade de Filosofia? Isso em moeda portuguesa são 3 contos e tal?
Amanhã telefonarei ao Lyons de Castro. Também telefonarei ao Serrão e ao Rebelo.
Mas meu Deus, ficas a conhecer toda a gente….”

Sopesa depois as dificuldades e problemas que terão de resolver com a mudança para o Brasil:

“…Isto quer dizer que tens possibilidades de que ainda me não falaste? …
Penso que haveria uma possibilidade de se arranjar uma demora aí tua. Conseguires seres convidado para o Congresso da Estrada …dar-te-ia ensejo a uma demora até fins de Setembro o que seria já um prazo mais largo para resoluções tão graves como a que estarás sopesando.
Como poderíamos nós de repente, plantarmo-nos aí com uma familória como a nossa e sem ninguém que me ajudasse? Como mandaríamos dinheiro para cá? Como poderia eu fazer viagem sozinha com 5 ou 6 crianças e 3 praticamente de colo? Tudo é preciso pensar meu amor, e esta tua carta deixou-me desvairada de problemas e de desejos desencontrados. Como me aguentaria eu aqui, pouco tempo que fosse, sem um chavo de lado nenhum? (…)
Meu amor, contigo estarei sempre bem seja onde for…”

E num post scriptum de 31/8, relata todos os contactos feitos para acompanhar a publicação de trabalhos de Jorge de Sena e tratar de inúmeros assuntos da vida do casal.

Em carta de 31/8/1959 começa por expôr-lhe uma dúvida na tradução de uma frase do livro Expresso – Oriente, pedindo-lhe resposta rápida para devolver o trabalho à gráfica, facto ocorrido outras vezes. Regozija-se com o sucesso de palestra entretanto feita por Sena, pergunta-lhe se irá ainda à Baía e ao Ceará, preocupa-se com a incerteza e o receio de que ele acabe por não encontrar no Brasil possibilidades de ficar e de, mais desesperançado, vir encontrar novos problemas em Portugal, na JAE e no trabalho e relações com as editoras (Portugália, Morais, etc.).

Noutra carta datada de 2/9/59, mais curta, em que não deixa de informá-lo dos trabalhos com as editoras, confessa-se “grega com as provas da Literatura”, e “Estou cansadíssima do sarau das provas”.

Numa segunda missiva datada do mesmo dia, diz-se convencida de que ele “regressará”, consolando-o, se as suas expectativas de ficar se gorarem:

“…’dar o salto’ com tanta coisa cá entre mãos e difícil de realizar. …Sei que te é insuportável viver aqui…Não posso portanto, naõ tenho coragem para poder ser razão, mesmo pequenina, para que não procures por todos os meios sair daqui. Peço-te só que penses com calma e não acredites excessivamente nas pessoas: uma coisa é a afabilidade para quem está de visita, outra para quem está em permanência …”

As muitas incertezas sobre se Sena ficará ou regressará do Brasil que serão constantes nas cartas seguintes de Mécia, manifestam-se também nesta carta:

“Os pequenos andam um pouco pressentindo no ar qualquer alteração. Falam em ir ter contigo, fazem projectos vários e desencontrados. De resto, toda a gente pergunta, toda a gente opina, toda a gente aconselha, toda a gente…e ninguém dentro dos nossos reais problemas”

Em carta de 4/9/59, comenta uma entrevista de Pedro Támen, na rádio, pergunta pelas suas aulas na Faculdade de Filosofia, pelas suas andanças no Brasil (Ouro Preto, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro…) se aí ficará ou não e/ou se virá buscá-los. E em duas cartas do dia seguinte, depois de receber duas cartas do marido, de S. Paulo que lhe falam da sua decisão de ficar no Brasil e estar já a tratar da sua ida e dos filhos, projecta soluções e preparativos para a mudança da família. Recomenda-lhe que escreva a pessoas com quem tém compromissos de trabalho e promete enviar-lhe a tradução de Brecht pelo amigo França e pedir a Ilse Losa para que lhe envie também o que tiver já feito de tradução.

Três dias depois, a 8/9, conta-lhe a sua ida a Sociedade de Escritores onde se encontrou com a família de Jaime Cortesão (historiador exilado no Brasil), e vários autores portugueses: Ferreira de Castro, Vitorino Nemésio, Cardoso Pires, Paulo Quintela, Piteira Santos, Manuel Nascimento. Recomenda-lhe que troque o seu visto por um permanente, no que terá ajuda de amigos, para “evitar mexidas de emigração” aconselhando-o a preferir S. Paulo “onde o clima é muito melhor e a vida, com todos os seus defeitos, muito mais bem organizada”.

Em carta de 9/9/959, Mécia de Sena alvitra a hipótese de, em caso de complicações, Jorge de Sena pedir asilo político na Embaixada, e numa outra carta do mesmo dia, interroga (-se):

“ Mas como vais ter tempo de fazeres tudo com um emprego em full-time? E quando te fica tempo para vivermos e produzires num ritmo finalmente que nunca aqui te foi possível? …mas o mais que estou é assustada com a nossa separação e a ver a minha ida cada vez mais difícil, à medida que penso que terás de arranjar aí casa onde caibamos e de a encher com aquele mínimo indispensável….quem vai pagar a nossa passagem?”

Em carta curta de 11/9, adverte para o pedido de licença ilimitada do marido e inquieta-se sobre se lhe pagarão o ordenado. Seguem-se duas folhas com apontamentos para ele lhos explicar e uma relação de livros com nomes de amigos para a respectiva entrega. Pergunta-lhe o que fazer com obras que aguardam a sua crítica e se deve anular assinaturas de revistas. Noutra carta do mesmo dia faz contas do que espera receber das editoras e diz da satisfação de se lhe reunir, com os filhos:

“Custa-me imenso a deixar isto, mas estou tão contente, meu amor, por te sentir liberto, confiante e contente. Agora só penso em ir o mais depressa possível.”

Entre 12 e 19 de Setembro, sucedem-se as cartas, diárias ou duas por dia, as quais traçam um impressivo e realista painel de uma miríade de assuntos e problemas de suas vidas: os preparativos da partida ao encontro de Sena no Brasil, tudo minuciosamente exposto e organizado por acordo entre ambos, os empréstimos espontâneos de dinheiro pelos amigos, as “cunhas” de uns e de outros para resolver mil e uma burocracias, as influências para obter os vistos de saída, os custos das viagens e os preços dos camarotes, a ida da empregada que conforme prática da época apenas pagaria 2/3 do custo normal da viagem, em 2ª classe, a súbita impossibilidade da sua ida por a fiscalização concluir não ter ela meios e em só autorizarem a saída de “prostitutas ricas” para o norte de Africa e Brasil, a compra das passagens e pagamentos a fazer por Sena a partir do Brasil, já que em cruzados são mais baratos os custos, o envio de trabalhos de Sena para correcção, por avião, através de mensageiros pessoais, como por exemplo “pelo Ferreira de Castro te mandarei mais Teixeira de Pascoaes e Pessoa”, a entrega na JAE da carta de pedido de licença ilimitada e pormenores envolvidos, perguntas sobre o que dele deverá levar, requerimentos a fazer para adicionar os sete filhos ao passaporte de Mécia e para manter a casa em sua posse, referência actualizada aos inúmeros trabalhos de edição e tradução pendentes em várias editoras e aos constantes contactos de escritores, intelectuais, editores, amigos e pessoas de suas relações, como José Saramago ou Mário Chicó, necessidade da declaração de Sena a autorizar a deslocação da mulher e filhos para o estrangeiro (Brasil), relação de amizades e familiares que Ferreira de Castro e outras pessoas das suas relações têm em Assis e São Paulo, documentação que se exige às crianças, nas escolas brasileiras, muita e variada correspondência recebida por exemplo de António Pedro e Maria Lamas, pesarosa e cheia de humanidade, por eles serem mais uns que se vão, etc., etc.

“ Quando irei? Quando assentarás arraiais em Assis? Estou desejosa que me digas que estás instalado…”

Mantém interrogações como esta, em carta de 14/9 que, aliás, noutras se repetirão:

“Parece-me que estás a fazer ondas desnecessárias, Jorge. Hoje recebi carta do Casais para me convencer a ir. Serei eu que estou maluquinha? Mas alguma vez será preciso convencer-me a ir para onde estiveres? …está na tua mão e não na minha que eu vá e eu não ficarei aqui nem uma hora mais que seja mal tenha ordem de seguir.
Relê as minhas cartas, vê o que tens a fazer, faz as coisas com calma e sobretudo escreve-me que estar sem notícias tuas é a pior das torturas…”

Em carta de 26/9/59, avizinha-se já mais seguro e próximo o reencontro, assim amorosa e apaixonadamente antevisto:

“se tudo correr bem espero estar aí daqui a um mês. Assim pensando já os dias começam a descontar e o tempo parece menor. Depois na minha tristeza começo a temer que te deixe de interessar, que meus beijos deixem de satisfazer-te. Que dura prova é a separação quando duas pessoas se amam como nós, meu querido. Quando passarei as minhas mãos pelo teu corpo fresco e macio? Nunca deixarei de te olhar e sentir junto de mim. Desejo ardentemente ser tua, que me possuas com aquela segurança e aquela total ausência de egoísmo em que és perfeito como não concebi nunca que se pudesse ser. “

Numa carta de 29/9/ 959 em que foi anotada e sublinhada a expressão “Vita Nuova”, numa alusão a Dante Alighieri, dá-lhe conta de uma série de telefonemas de amigos entre os quais se conta Sophia de Mello Breyner que se mostram desolados com a saída deles.

E sublinhado também segue o pedido para que ele “pergunte aí a qualquer senhora (a mulher do Lemos por exemplo…) se valerá a pena levar roupas de fazenda e de lã dos miúdos e dela, pois se tal não for necessário, a bagagem ficará bem mais reduzida”.

A 1 de Outubro, ansiosa “nunca mais saio daqui”, diz-se ainda às voltas com a papelada necessária, com a necessidade de arranjar dinheiro e admoesta-o “ porque não me escreves todos os dias ao menos um postal?” ou “vê se assentas, pelas alminhas”.

A carta do dia seguinte inicia-se assim:

“Fui hoje à Panair, tratar de tudo das nossas passagens. Põem-nos em S. Paulo por 50.000$00 com cerca de 200 kg de bagagem. A mulher do Fafe ofereceu-me o dinheiro e entre ela e Setas me arranjam. Vou, portanto logo que tenhas mandado a declaração para a Clara [a empregada] e os papéis estejam prontos. Se aí conseguires rehaver a tua passagem tanto melhor…”

A 3/10 diz estar pronta para partir a 12 de Outubro e que afinal os livros e papéis que ele lhe pediu pesam mais de 70 kgs, só para eles, duas malas. E prossegue:

“ quando eu digo a alguém a uma semana de partida que não tenho di. onde afogar-me as pessoas ficam varadas e o caso não é para menos.
Daqui em diante vou escrever-te apenas nos dias em que tiver carta tua que é para saberes como é agradável estar dias sem saber nada, sequer se as pessoas estão vivas!
É-me insuportável viver como tenho vivido e tu não te apercebeste ainda disso…
A mais do que isto é o amor imenso que tenho por ti e a minha inconsolação de estar longe de ti.
Beijos muitos da tua Mécia
4/10/59
Não veio correio.”

Em carta de 6/10 é logo anotada a “inconcebível” falta de correio dele e, a 7/10, há finalmente a notícia de chegada de carta sua, datada porém de 30/9, depois do que dá conta da iniciativa tomada para angariar novas traduções, de expediente que tratou em seu nome e da entrega e recepção ou retorno de livros no seu vasto círculo de amigos.

“Quantas saudades tenho de ti, meu amor. Estou contigo daqui a 11 dias? Deus queira…”

A 8/10 acusa recepção de telegrama quando tudo já tinha tratado na Panair e a de um telegrama expresso enviado 6 dias antes. A 9/10, Mécia diz ter reunido em sua casa um grupo de amigos em que se contava a Maria Lamas que conversaram até às 2h da madrugada sendo ele o assunto principal. Continua a mantê-lo a par dos trabalhos com as Editoras, como a Portugália, com quem vai tratando assuntos pendentes e novos, prosseguem os comentários ao “surrealismo” dos correios, e diz que finalmente sabe o que ele vai fazer em Assis, coisa que todos lhe perguntavam e ela não sabia explicar.

A 12/ 10, numa carta que será, segundo Mécia, a última antes de partir para o Brasil, temos notícia de “trapalhadas” quanto a marcações das viagens provocadas por desencontros de correio e ainda do aumento do peso das bagagens e dos livros até 100 kgs que o Padre Manuel Antunes e outros amigos a foram ajudar a separar, bem como de almoços e jantares de despedida com a escritora Sophia de Mello Breyner, a actriz Eunice Munoz e outras amizades que permanecerão pela vida fora.