Não há dúvidas de que o Congresso Internacional Sena & Sophia: centenários, organizado pelo Real Gabinete Português de Leitura e pela Cátedra Jorge de Sena, da UFRJ, foi uma grande celebração do centenário de nascimento de dois autores maiores da literatura portuguesa. A materialização deste evento se deu com o livro, que reúne ensaios de 42 autores que versam sobre Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen e os diálogos que suscitaram. Lançado em dezembro de 2020 pela editora Bazar do Tempo, o volume já recebeu importantes resenhas críticas, incluindo esta de Isabel Ponce de Leão, publicada recentemente pela revista Colóquio/Letras. Ao final, segue uma lista com todas as recensões feitas até o momento e seus respectivos links para leitura.
Isabel Vaz Ponce de Leão
Gilda Santos, Luci Ruas e Teresa Cristina Cerdeira (org.)
Sena & Sophia: centenários
Rio de Janeiro, Bazar do Tempo / 2020
O presente volume resulta do Congresso Internacional Sena & Sophia: centenários,decorrido no Rio de Janeiro entre 2 e 5 de Setembro de 2019 e promovido pelo Centro de Estudos do Real Gabinete Português de Leitura e pela Cátedra Jorge de Sena da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Longe de se circunscrever à dimensão de um banal livro de atas, capitalizador de intervenções dispersas, presentifica-se um volume coletivo, organizado de acordo com rigorosos pressupostos científicos e metodológicos, que assinala o centenário do nascimento de dois vultos maiores das letras portuguesas. Acalentando uma certa matriz comemorativa, preserva a memória zelosa da transmissão geracional de valores, um pouco na senda de Borges que em História da Eternidade (cito de cor) sugere que a conservação é uma forma digna de criação. Nele estão gravadas, para os vindouros, mensagens edificadoras de um poder simbólico. A banalização de efemérides tem propiciado brutais esquecimentos a que o presente volume cria uma séria oposição.
Tratando-se de dois autores portugueses, com naturais ligações ao Brasil (Sena mais do que Sophia), é interessante observar-se o espaço geográfico da sua conceção, a naturalidade das organizadoras – Gilda Santos, Luci Ruas, Teresa Cristina Cerdeira –, bem como a colaboração maioritária de investigadores do país irmão. Saúdo a publicação do volume também pela forma como antecipa a comemoração do bicentenário da Independência do Brasil numa celebração à fraternidade entre povos irmãos de sangue e afetos.
Sena & Sophia: centenários apresenta uma judiciosa estrutura triádica, introduzida por um falso aparato paratextual. De facto, em jeito de introdução, sob o título “Celebrar Sena & Sophia” (9), Teresa Cristina Cerdeira refere a estrutura da obra através de claras instruções de leitura que não se alheiam de um profundo conhecimento dos dois autores, acirrando, desde logo, a curiosidade do leitor; longe de se quedar num mero texto introdutório, configura um manifesto das potencialidades dos objetos de estudo com incidência na amizade que os ligava. Esta despretensiosa nota introdutória converte-se, pelo seu rigor, em texto ensaístico. Em jeito de prefácio, aqui denominado “Átrio: em redor da mesa”, Luís Filipe Castro Mendes declara que Sena e Sophia “escreve[m] no princípio do mundo” (19), convocando o poder genesíaco de “Os Trabalhos e os Dias” de Jorge de Sena e de “Arte Poética” de Sophia. A descoberta do mundo e a sua visão agónica, a aceitação da vida e a morte, o otimismo e o protesto, a luz e a sombra, a justiça e a dignidade são temas e motivos que se digladiam e convergem numa evolução pessoal e política dos dois escritores. É esta a antecâmara, o tal falso aparato paratextual, da estrutura triádica a que acima aludi; poemas de Sena e Sophia são usados como sugestivos separadores em clima de reciprocidade e, também eles, fornecem linhas de auto e heteroconhecimento dos autores e denotam uma sensível gnose das suas obras por parte dos organizadores.
A primeira parte, “Sena: ‘Capitão de tempestades’” (29), inspirador título em parte roubado a um poema escrito por Sophia em Maio de 1978, aquando do falecimento do amigo, é composta por dezasseis distintos ensaios que estudam a obra do autor de Sinais de Fogo passando pelas suas facetas de poeta, ficcionista, crítico literário, tradutor, pensador, sem negligenciarem necessárias contextualizações espaciotemporais, e evidenciando temas que lhe são desde sempre adjacentes (morte, liberdade, contestação, negatividade…). Por pessoalíssimos critérios evidencio dois: “Fazem cá Um Barulho com a Morte do Gajo!: a Morte de Jorge de Sena na Imprensa Portuguesa” de Inês Espada Vieira (69-82) e “O Pick Up de Jorge de Sena: sobre o suporte material da Arte de Música” de Rui Vieira Nery (185- 216). Ambos demonstram que as áreas do saber são tributárias umas das outras e é isso que as enobrece. Quanto ao primeiro, é um estudo, lúcido e honesto, sobre a cobertura da imprensa, especificamente de doze jornais, à morte de Jorge de Sena através de editoriais, depoimentos, notícias, reportagens, homenagens, colunas de opinião. Com dados objetivos fica demonstrado que a “imprensa generalista de referência contradizia a ideia tradicional de afastamento do País de Jorge de Sena” (81). Era preciso que tal fosse esclarecido, e foi. O segundo, de natureza extraliterária, ocupa-se de Arte de Música, “a mais bela declaração de amor da poesia à música” (208). Demonstrando que, para além de poeta, o autor foi um “musicólogo” atento a grandes intérpretes e compositores da música ocidental, evidencia também que Sena, sustentando embora a autonomia dos dois sistemas sígnicos, põe a descoberto a complementaridade das suas mensagens e o domínio temático da música na poesia. Rui Vieira Nery completa o ensaio com um precioso anexo em que se elencam “Os Poemas de Arte de Música e as Músicas a Que Se Referem” (209-216).
A segunda parte – “Sophia: ‘no esplendor da maresia’” (237) –, seguindo a reciprocidade acima referida, é titulada com um verso de Sena. Os doze textos que a enformam abarcam temas e motivos electivos desta Menina do Mar como sejam o telurismo sobretudo marítimo, a busca da justiça e da unidade, a Grécia e os mitos, o feminino sem feminismo, questões metapoéticas e metaliterárias recorrentes na prosa e na poesia. Deles destaco “No Centro do Reino de Ártemis: A Viagem de Sophia ao Brasil” (285-317) de Eucanaã Ferraz e “‘No Reino Terrível da Pureza’: A Prosa Dispersa de Sophia” (319-333) de Federico Bertolazzi. O primeiro realça o real amplexo entre os países irmãos configurado em textos de imprensa, notas e telegramas de embaixadas, academias e universidades e apontamentos e cartas da própria Sophia que reforçam o seu “desejo de religação a um plano cósmico” (290) ainda que percorrendo topoi terráqueos. “Adorei o Brasil” (295), diz a autora de Geografia em carta a Jorge de Sena, mostrando as paisagens e o povo sem deixar de mencionar nomes grandes das letras brasileiras como Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade… porque um país será sempre um compósito de todas as suas valências, na tal tentativa de religação ao cosmos também através das palavras que “recuperam sua substância total” (303). Assim o diz em “Brasil 77”, onde indica, através de uma intensa musicalidade, “o lúcido amor pela ‘aventura’ de construir ‘no centro do reino de Ártemis’ um território justo, de ‘formas justas’” (317). Já o segundo, aborda a faceta de ensaísta de Sophia, por vezes deslembrada, através de um pertinentíssimo mergulho na sua prosa dispersa, grande parte em jornais e outras publicações periódicas, ou programas televisivos e radiofónicos. Nela se refletem as suas preocupações humanas, culturais e literárias sendo destacada “a qualidade poética de reflexão sobre poesia e arte que ela conduz a par e passo com a sua própria arte” (320). Por outro lado, é posto em evidência o pendor ensaístico de reflexões da autora de “Arte Poética” sobre escritores – Torga, Sena, Camões, Cinatti… – e artistas plásticos – muito particularmente Maria Helena Vieira da Silva –, que, pelo seu legado, se projetam no desejado cosmos.
A verdadeira apoteose acontece na terceira parte – “Sena & Sophia & Outras Vozes: ‘Cartas Poemas e Notícias’” (389) – titulada, mais uma vez, com um verso do poema que Sophia escreveu aquando da morte de Sena. Onze ensaios, atentos às obras dos homenageados estabelecem com elas e por elas, pontes entre os dois autores e entre outros gigantes das letras como o são por exemplo Gastão Cruz, Cecília Meirelles, António Pedro, Natália Correia, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Adília Lopes… Trata-se da parte mais original e criativa da obra. Chamo particular atenção para o rigoroso texto “Discurso Epistolar entre Jorge de Sena e Sophia” (443-457) de Maria Otília Pereira Laje que vê nesta correspondência uma “impressiva crónica da cultura e sociedade” bem como um “arquivo vivo de criação para uma aproximação abrangente, mais por dentro, aos dois escritores, universos literários e poéticos” (456). A referida correspondência merece também a atenção de Rui Pedro Vau que em “A Correspondência entre Sena e Sophia e o Diálogo com o Cinema da Poesia de Rita Azevedo Gomes” (481-488) releva a quebra de muros entre as diferentes artes e as suas respetivas linguagens. Deixei propositadamente para o fim “Entre-Cartas: Paisagens com Poemas, Filhos, Dois Mares e Liberdade ao fundo” (391-400) de Ana Luísa Amaral, que, através de práticas intertextuais implícitas e explícitas, faz uma verdadeira articulação dos dois autores proclamando – porque de uma proclamação se trata – que “O meu Sena e a minha Sophia convocam para mim maravilhamento e louvor, protesto e justeza, lembram-me o romântico William Blake, para quem a verdadeira inocência era a habitação para a sabedoria” (392). Um tom poético, que não oblitera o rigor científico, reivindica a subjetividade analítica e demonstra a legitimidade das “paixões pessoais” (391). A literatura precisa da paixão do leitor, de uma paixão que implique uma posse sensual e contagiante para que se torne transmissível e perdurável. Ler torna-se em gesto erótico que estimula o prazer a que Barthes alude, e assim conduz à já referida sabedoria. “O meu Sena e a minha Sophia” (392) – verdadeiro ato de amor, sentida homenagem de uma poetisa aos seus ancestrais.
O livro encerra com um poema de Jorge de Sena titulado “Sobre Um Verso de Sophia de Mello Breyner”, de acordo com a criteriosa metodologia que acima referi. Encerra bem, enobrecendo os dois homenageados, mas o virtuosismo da obra não se queda por aqui. Para além do estreito amplexo aos dois escritores, saliento as leituras extraliterárias reveladoras da necessária cumplicidade entre as várias linguagens artísticas, bem como a inequívoca demonstração de que Sena e Sophia não se limitaram aos conhecidos poemas de combate pela liberdade. São grandes e tudo poderá agora recomeçar. “Começaria realmente, então –“ (400).
Um bom livro institui-se desafio a escritas outras geradas no seu seio. Este cumpre a sua missão quer em termos de conteúdo – 40 excelentes ensaios – quer pelo rigor que as organizadoras usaram na sua estruturação formal, quer ainda pela sedutora sobriedade do seu aparato gráfico. É “Brincando com a areia” (Sophia), que se visiona “a cor da liberdade” (Sena).
Referência:
LEÃO, Isabel Vaz Ponce de. “Recensão crítica a ‘Sena & Sophia: Centenários’, de Gilda Santos”. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões críticas, nº 209, Jan. 2022, p. 270-273.
Outras recensões críticas do mesmo volume:
1 – Revista Veredas, nº 35 da AIL- Associação Internacional de Lusitanistas
https://revistaveredas.org/index.php/ver
https://revistaveredas.org/index.php/ver/article/view/692/506
2 – CLEPUL em Revista, nº 63
(que pode ser visualizado aqui e descarregado aqui)
3 – Revista Convergência Lusíada, nº 45 do Real Gabinete Português de Leitura.
https://www.convergencialusiada.com.br/rcl/issue/current
https://www.convergencialusiada.com.br/rcl/article/view/452/331
4 – Revista Metamorfoses v. 17, n.2 (2020)
https://revistas.ufrj.br/index.php/metamorfoses
https://revistas.ufrj.br/index.php/metamorfoses/article/view/47305/25484
5 – Texto Poético v. 17, n.34 (set/dez 2021), revista do “GT Teoria do Texto Poético” da ANPOLL.
https://textopoetico.emnuvens.com.br/rtp/issue/view/46
https://textopoetico.emnuvens.com.br/rtp/article/view/822/551
6 – revista eLyra Vol. 1 N.º 18 (2021): Poesia e Arquivo.
https://elyra.org/index.php/elyra/issue/view/22
https://elyra.org/index.php/elyra/article/view/425/461
7 – Revista Gragoatá, dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF,Vol. 27 N.º 57 (2022): Poesia e pensatividade: o poema filosofante
https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/51453/30904
8 – Revista Alea, do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da UFRJ, Vol. 24 N.º 1 (2022)
https://revistas.ufrj.br/index.php/alea
https://revistas.ufrj.br/index.php/alea/article/view/52187/28463
9 – Resenha de Leonardo Gandolfi publicada na Revista Cahiers do CREPAL, nº 22, da Univ. Sorbonne Nouvelle, sob organização de Olinda Kleiman e Eliane Moraes. Ainda não disponível digitalmente.
10 – Resenha de Marlon Augusto Barbosa, publicada na revista Teresa nº 22 (2022)