Desde a trasladação dos restos mortais de Jorge de Sena, da California para Lisboa, em setembro de 2009, ouvem-se vozes a clamar pelo Panteão Nacional como derradeira morada do escritor. Com a recente transferência de sua amiga Sophia de Melo Breyner Andresen para o local, mais vozes adensaram o coro. E o tema permite outras considerações, outros passos em volta…
JORGE DE SENA PARA O PANTEÃO NACIONAL*
JULIO DE MAGALHÃES
A recente trasladação de uma poetisa (escrevo poetisa, porque é o feminino de poeta) para o Panteão Nacional, suscita, mais uma vez, a questão dos critérios a que deve obedecer a “selecção” das figuras públicas dignas do reconhecimento da nação.
Não parece que seja a Assembleia da República, cujos deputados são escolhidos pelas direcções partidárias, que se movem por interesses políticos e que não possuem, na generalidade, especiais creditações na matéria, o órgão mais habilitado a decidir quem deve, em função dos seus méritos, receber as honras de uma sepultura consagrada pela pátria. Não que a panteonização acrescente (ou retire) algo ao valor dos trasladados, mas porque, tratando-se de uma homenagem simbólica, e sendo o Panteão, por definição, um lugar de alojamento restrito, importa distinguir bem os maiores de entre os grandes. E não é certamente o Parlamento a sede própria para o efeito, ainda que se lhe possa atribuir o direito de ratificação.
Encontram-se sepultadas no Panteão Nacional figuras de nível muito desigual, mas isso também não deve estranhar-se, pois o mesmo acontece em congéneres estrangeiros. Basta olhar para o Panthéon de Paris para termos uma ideia. Todavia, essa realidade não deve confortar-nos, nem levar-nos a exageros ridículos como o protagonizado por um deputado socialista que, logo após a morte de Eusébio, pediu a panteonização do futebolista. Acho que o caso de Amália, por quem tenho, aliás, a maior admiração, foi já uma excepção evidente, para não falar da inconcebível trasladação de Humberto Delgado. É por isso que o prazo do reconhecimento dos “altos feitos” deveria ser sensivelmente alongado.
Entre os grandes nomes da cultura, Camões (se os seus despojos são autênticos) e Pessoa estão ausentes daquele templo cívico, o que não incomoda, uma vez que se encontram sepultados no Mosteiro dos Jerónimos. Já merece uma interrogação a ausência do famoso político Passos Manuel, a quem se deve a criação do Panteão Nacional, e cuja trasladação dos restos mortais foi recusada por falta de verba.
Pergunto-me porque não está Cesário Verde, um dos maiores poetas do século XIX, no Panteão Nacional? Ou porque não se trasladam para lá os restos mortais de Jorge de Sena, certamente o maior intelectual português da segunda metade do século XX?
Ignoro se Jorge de Sena, alheio a capelinhas, dispõe de “apoios” e de “conivências” bastantes para mobilizar as energias necessárias a desencadear uma operação nesse sentido, ou se tal movimento contaria com a aprovação da sua viúva, Mécia de Sena? Presumo que esta, que já autorizou a vinda do corpo do marido para Portugal, a tal não se oporia.
Assim sendo, deixo aqui o meu apelo: JORGE DE SENA PARA O PANTEÃO NACIONAL. JÁ!
[*] Blog “Do Médio-Oriente e afins”, de 11 de julho de 2014. Ver
LITERATURA PORTUGUESA DE PARABÉNS**
ANTÓNIO JACINTO PASCOAL
Não faz muito que demos passos em volta do caso Herberto, paradigma do país saloio em que vivemos, a começar pelos rebarbativos talentos que mitificam a sua existência nos exílios da imortalidade. Herberto escolheu entrar nas trevas, o que, paradoxalmente, lhe confere maior visibilidade do que supõe – aquilo que se encripta torna-se mais facilmente evocável, senão idolatrável. E, ainda que se diga “defendido contra as vertigens da dissipação”, o facto é que, na sua relação com a História, não controla o processo implacável da distribuição do livro, isto é, o resultado da sua própria criação.
Se, já com Servidões, o autor permitiu a servidão ao destino escandaloso e caprichoso da visão editorial que transformou a obra em fetiche e o leitor no seu trágico refém (também eu fiz parte daqueles que não encetaram a corrida à livraria mas receberam com moderada benevolência o “já esgotou” da ordem), com A Morte Sem Mestre esvaneceu-se, do meu ponto de vista, tudo aquilo que generosamente ligava Herberto “às fontes naturais do mundo” e o metamorfoseou, contra sua vontade, num vácuo fantasma da feira das vaidades, permeável a todo o tipo de especulações. Uma só palavra de Herberto Helder, se dela ainda fosse capaz, esmagaria o brilho das falsas pedrarias do circuito livreiro.
Nada contra o panteónico atributo a Sophia e a sua famosa “unanimidade” (seja lá o que isso for), ainda que mereça reflexão aferir critérios de selecção, lugar do arbítrio, silêncio de omissão e cedência à aporia – como estarão cotados Eugénio, António Ramos Rosa, Torga, Carlos de Oliveira, Cardoso Pires, O’ Neill (mesmo que com estrondosa gargalhada), Jorge de Sena (passe o paradoxo), David Mourão-Ferreira ou José Gomes Ferreira na bolsa de valores do luso Panteão? O que não deixa, porém, de constituir perplexidade é a declaração de Miguel Sousa Tavares sobre a escritora. Segundo ele, Sophia é uma autora “que não precisa nem de crítica nem de explicações”. Conhecemos o “complexo da crítica” a que se referiu Eduardo Lourenço, instituição que “sempre esteve desarmada diante da obra, [e que] foi sempre um corredor atrasado e impotente”. É, todavia, a crítica que legitima a obra, por mais que esta transporte no seu corpo “a única luz capaz de distinguir os vivos e os mortos” (E. Lourenço, O Canto do Signo). Porque não há obra sem leitor por mais autotélica que se queira, nem obra sem faculdade de renúncia para se submeter ao cepo. Aliás, não há obra incólume por natureza. Nem mesmo a da “unânime” Sophia.
Os exames (1.ª e 2.ª chamadas) de Português (9.º ano) esqueceram as obras de leitura obrigatória, a epopeia de Camões e um auto de Gil Vicente. Ora, neste ano decisivo, é comum os professores despenderem a quase totalidade do ano com os dois autores. Há uma obra narrativa (com frequência um conto de Eça) que passa também pelo escrutínio dos docentes. Mas nada. Em vez disso, uma entrevista ao grande Mário de Carvalho, um trecho de Machado de Assis, um texto de Gonçalo Cadilhe e outro trecho de Jorge de Sena. Nada a opor, não fosse o esquecimento do essencial. À saída da 1.ª chamada, os alunos diziam sentir-se defraudados, em “boa gíria”.
A juntar à pertinente preocupação de Maria Edviges Ferreira (PÚBLICO, 17 de Julho), talvez se possa reiniciar um diálogo sobre o que é canónico naquilo que, polidamente, se chama agora “Educação Literária”. Começando, por exemplo, por tentar perceber o que significa “unanimidade” (trinómioquantidade de leitores/qualidade literária/reserva moral (vulgo pudor)?). E, já agora, o que se entende por poesia, sobretudo poesia em contexto escolar, protegida, à boa maneira puritana, de todos os seus desvarios demoníacos.
[**] Jornal Público (Lisboa), de 22/7/2014. Ver