Jorge de Sena: A poesia olhando a História (com ecos de Álvaro de Campos)

Neste ensaio, Helena Barbas examina as relações entre poesia e história na obra de Jorge de Sena, partindo de bases clássicas — onde a poesia épica e a tragédia tinham nos mitos os seus esteios. Apesar das muitas transmutações operadas ao longo dos séculos, a autora reconhece na poesia seniana “uma nova versão de tragédia”, na qual a história recupera “o seu estatuto primordial de logos”. 

 

«aqui passaram todos: almirantes, / ladrões e vice-reis, poetas e cobardes, / os santos e os heróis, mais a canalha / sem nome e sem memória …”.» («Camões na Ilha de Moçambique», Poesia III). 

 

Dos LLoyd Georges da Babilónia
Não reza a História nada.
Dos Briands da Assíria ou do Egipto
Dos Trotskys de qualquer colónia
Grega ou romana já passada,
O nome é morto, inda que escrito

Só o parvo de um poeta, ou dum louco
Que fazia filosofia,
Ou um geómetra maduro,
Sobrevive a esse tanto pouco
Que está para lá trás no escuro
E nem a história já historia.

(Gazetilha, Álvaro de Campos)

 

O PRIMEIRO PARALELISMO POESIA/HISTÓRIA a marcar todo o pensamento ocidental estabelece-se implicitamente em Platão e declaradamente em Aristóteles, a partir das respectivas concepções (antagónicas, dado as diferentes cosmogonias) da relação entre a arte e o mundo. Platão entende as Ideias como o verdadeiro real, de que a Natureza é reflexo – acusa a arte de mimésis, de ser o reflexo de um reflexo; Aristóteles considera que o verdadeiro real reside na Natureza, cuja imitação será a suprema qualidade da arte.

Esta velha divergência institui-se como demarcação base entre as estéticas idealistas e materialistas, entre uma interpretação idealista e materialista da arte, resistindo a leituras posteriores da relação entre a arte e o real – neste caso, a poesia como arte, e a história como real – e ainda às tonalidades que a evolução epistemológica lhe tem vindo a dar.

Na teoria e na prática, poesia e história surgem ligadas na sua origem: a primeira vai buscar os seus temas à história (ainda como lenda e mito); a segunda recorre à poesia como meio de transmissão para garantir a sua permanência, divulga-se pelas epopeias.

O amálgama épico inicial (poesia, história, mito e direito) fragmenta-se, dando lugar a outros géneros. O poder do mito é minado pelo cristianismo; a veracidade da narrativa desafiada pela história e pelo direito. A síntese épica divide-se em duas vias paradoxais: uma de carácter ficcional, orientada porém para os ideais do Belo, do Bom e do Justo; outra mais empírica, dirigida para o Real. Na primeira vão enquadrar-se os impulsos estéticos e éticos; na segunda, descobre-se como componente a história aspirando à verdade dos factos.

Diz Hecateu de Mileto: «Escrevo de acordo com o que me parece ser a verdade, pois as histórias [logos] dos gregos são, em meu entender; muitas e ridículas»  [1]. É a partir de um desejo, e de um conceito de verdade, que a história se afasta da poesia. Deixa de ser logos, como já fora em Hesíodo; torna-se uma exposição de informações para manter na memória os actos grandiosos e as razões dos conflitos, como afirma Heródoto [2]. O conceito evolui, e a história passa a pretender-se não só verdadeira, mas ainda científica e imparcial, como o exige Tito Lívio [3].

Ao contrário do poeta, o historiador tem por ofício explanar uma evidência e para tal deverá adoptar um determinado critério. A sua notícia exige um suporte empírico passível de verificação – os documentos, ou os factos. Por si, generalizava e sintetiza. Não concebe o passado colectivo da humanidade como composto de um número infinito de acontecimentos, actos ou actividades isolados, todos eles igualmente significativos e importantes por resultarem da dor individual – o sofrimento humano que o discurso histórico postula, mas que sempre soube não poder penetrar – diz Tucídides: «a causa mais verdadeira [dos conflitos] é a menos evidente na exposição» [4]. Por outro lado, há um apelo a o historiador como testemunha da verdade. É responsabilizável perante uma realidade exterior ao seu discurso; o seu trabalho é sempre referencial, e susceptível de controle. Era.

No momento em que o conceito de verdade se pluraliza, esta medida torna-se variável: «Não é um invariante transhistórico, mas uma obra da imaginação constituinte» [5]., afirma Paul Veyne, e continua falando sobre esta imaginação que subjaz ao evoluir do conhecimento, que relativiza o conceito de verdade, fazendo-nos aceitar que nada seja verdadeiro nem falso: «a verdade é o nome que damos às nossas opções de que não queremos abdicar; se abdicássemos delas, di-las íamos seguramente falsas por tanto respeitarmos a verdade» [6].

Relativizada, uma verdade torna-se homónima e analógica de outras, origina uma verdade plural (a verdade é que a verdade varia, de Nietzsche), um sistema de verdades fabricadas, ou diversos programas de verdade, contraditórios entre si, pertencentes a um tempo e espaço heterogéneos e plurais, e dependentes da esfera de crenças, igualmente sinceras e profundas, adoptadas no momento.

Deste modo, a história – como as outras ciências – é verdade e ficção em simultâneo, porque é uma verdade nunca definitiva, que se estabelece, ainda segundo Veyne, a partir de uma ficção interpretativa.

É a analogia dos sistemas de verdade que nos permite entrar nas ficções romanescas, de achar vivos os seus heróis e também de descobrir um sentido interessante nas filosofias e pensamentos de antigamente. E nos de hoje. As verdades, a da Ilíada e a de Einstein, são filhas da imaginação e não da luz natura [7].

Ou, como já foi dito por Álvaro de Campos: «O binómio de Newton é tão belo quanto a Vénus de Milo. / O que há é pouca gente para dar por isso» [8]. Será a imaginação subjacente à interpretação do historiador que encena os factos históricos, ou as marcas deixadas por eles, sob a forma de um discurso –«Transformando as realizações de muitos anos/ Numa hora de ampulheta» [9]. Curiosamente, com a Nova História, recai agora sobre o historiador, e por razões idênticas, a secular acusação de falsidade de que o poeta se conseguiu ilibar após o Romantismo. Diz Sena, em O Poeta é Um Fingidor, «a verdade em poesia, aquela verdade não perturbada pelos factores ocasionais e aquela verdade que é visão, resultarão da elisão da antinomia verdadeiro-falso, elisão essa que irá processar-se através de um ultrapassamento do em-si do poeta, ao qual tradicionalmente se identificava a essência da poesia que o poeta materializava, existenciava objectivamente» [10].

O historiador é acusado de ilusionismo, de transformar em discurso sobre o real a fabricação de um texto a partir de restos documentais: a montagem ficcional dos fragmentos de que se compõe a história. Por outro lado, embora atravesse vários graus de sofisticação, o seu objetivo mantém-se o mesmo: manter vivo o passado para que possa servir de exemplo, positivo ou negativo, ao presente. A sua imparcialidade é, por mais esta razão, fictícia. Os impulsos éticos, gradualmente escamoteados, emergem discretamente por detrás do desejo de proporcionar ao presente um ponto de referência necessário a uma comparação: «nós teremos mais ardor para contemplar e imitar as vidas belas, se não ignorarmos sequer as que são más e merecem a censura…» dizia Plutarco [11].

A história (seja geral ou específica, seja eventual, serial ou quantitativa) tornou-se vulnerável. Chega-se ao ponto de se aventar (com Paul Veyne) que uma vez que a história não existe, tudo é histórico. Recuando perante o risco de uma posição iconoclasta, Le Roy Ladurie considera antes que a sua força e a sua fraqueza residem no facto de ser «...uma mistura entre as ciências humanas, por um lado, e a literatura,o romance, as belas artes, o cinema, o teatro e a ópera por outro» [12]. De ciência com pretensões ao exacto, ao construir de leis universais, revela-se como uma arte de tratar os restos, uma arte de memória e encenação.

Recupera, de certa forma, a sua qualidade inicial de lenda e mito: p ode ser a legenda, no sentido original do termo, o exemplo que deve ser lido e que poderá ser seguido ou evitado; é o mito, em que se não distingue entre os seres, as acções ou os acontecimentos reais, e os imaginados ou desejados. Em Sena, a história é olhada como o ponto de confronto necessário ao presente e ao real e o recurso ao passado histórico vai manifestar-se como desejo de vencer o tempo.

 

O TEMPO E A HISTÓRIA

 

Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos – nem mais
nem menos –
Para com eles ajustar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se
não vê)…
[…]
Imagens de jogos ou de paciências
ou de passatempos –
Imagens da vida, imagens das vidas, Imagens
da Vida
Verbalismo…

(Apostilha, Álvaro de Campos)

 

Quer a sociedade, quer o indivíduo que se interrogue sobre si mesmo, que tente compreender e compreender-se, que busque situar-se, tem que se apoiar numa reflexão segunda (termo de comparação), que não pode ser outra senão a sua própria história. Diz-nos Sena: «a História tem que estar presente na compreensão da própria e pessoal humanidade, com a qual lhe é dado compreender a dos outros...» [13]. Preenche assim uma necessidade de passado e de fundamento em relação ao real, que se poderá traduzir na procura de raízes:

 

Raízes? Como – por metáfora – se ganham
Ou se perdem? Sendo filho? Sendo pai? As duas
                                                               coisas?
Vivendo aqui na pátria mais ou menos do que
                                                   quantos anos?
Perderam-nas Camões e Mendes Pinto no Oriente?
Ganhou-as Eça nos seus exílios de Cônsul?
Manteve-as fumos de ópio aquele Camilo
apenas Pessanha por Macau ? Ganhou-as
Pessoa tão inglês de sul das Áfricas,
No seu tão esperto exílio de Lisboa?
E o Vieira padre e brasileiro na Bahia,
largara-as lá por Roma à Cristina da Suécia?

(«Raízes». Poesia III, p. 206)

 

Tentando reatar com os desaparecidos, o indivíduo recorre à história para simbolizar o seu lugar, para se situar numa rede complexa de forças e analisar as suas relações com o social – a começar pelas instituições: a pátria, a família. Mas, em primeiro lugar, p ara saber se era noutro tempo, que se deveria ter nascido:

 

desta vergonha inominável que é
ter de existir num tempo de canalhas
de umbigo preso à podridão de Impérios
e à lei de mendigar favor dos grandes.

(«Hei-de ser tudo o que… », Visão Perpétua, p. 175)

 

Ou de outro modo, noutro lugar. Saber se é ou não arbitrário viver nesta sociedade em vez de qualquer outra:

 

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de ter nascido nela.

(«A Portugal», 40 Anos de Servidão, p. 89)

 

Ainda que nalguns casos se equiparem no degradado das gentes, ao passado são atribuídas as características de uma Idade de Ouro mítica, que fazem ressaltar a coloração férrea do presente. Porém, mesmo por denegação, não se espera um eterno retorno. É uma história linear que serve de instrumento crítico, e justapõe a diferença de outras organizações, outras leis e outras modas à realidade do presente, relativizando-o no tempo – um tempo que «nos afina e nos apura». Depois, por si só, o tempo não existe, e dele se toma consciência a partir dos «lugares que acabam»:

 

 Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta, ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.

(«Noutros Lugares», Poesia III, p. 90)

 

O presente é sempre vivido e construído individualmente – a «narração» histórica que cria a humanidade, ou a voz individual que, a partir da infância («As Crianças Cantavam» , Poesia II, p. 32) , vai dando forma à vida, construindo a memória pela acumulação e registo de experiências. Crescer é afastar-se de um silêncio inicial que advém da ausência de conhecimento do tempo, quebrado pela soma dos instantes:

 

Um intervalo
se abre de outro intervalo que foi,
e outra rasura no fluir do tempo
se instala,
da antiga em mim como de mim na antiga rasura.

(«A Chuva Torna», Poesia II, p. 33)

 

São os momentos entre os intervalos, os fragmentos – pessoais, ou históricos, mas sempre individualizados pela sua irrepetibilidade – que se instituem como memória, e se organizam verbalmente em algo de contínuo.

Do mesmo modo que o presente é indissociável do passado, também o é do futuro, dado que ambo s nele se fundem e por ele se definem. O presente p ode então ser considerado como um instante contínuo de confluências pelo que, quanto mais vasto for o conhecimento do passado, tanto mais vivas e fortes forem as suas experiências, tanto maiores as probabilidades de se vir a definir como um padrão para o futuro. Por tal, mais rico será o presente alargado pelo excesso de vida, de experiências, que é a pluralidade de emoções: «O que é preciso é que o artista sinta por certo número de Outros, todos diferentes uns dos outros, uns do passado, outros do presente, outros do futuro» [14]. Um sentir que é conhecimento adquirido não só pela memória das vivências individuais, mas também pela experiência imaginária das experiências dos outros:

 

parado que ouves, não mais é que o tempo
de hoje em que vives só alheias vidas
de ti alheadas qual de ti vividas.
 
Por outro tempo te criaste impuro,
difuso e firme, no clamor dos versos
que os tempos de hoje reconstroem como
delidas cartas um fogacho acendem.