Em dezembro de 1971, Jorge de Sena vê publicado este artigo em Contravento nº 4 e o vol. I da sua Poesia de 26 Séculos, que inclui poemas dos Carmina Burana seguidos de nota com texto muito semelhante ao da revista. No periódico lisboeta, encontram-se traduzidos do latim os poemas “In taberna…”, “Post blanda veneris…” e “Stetit puella”. No livro, há ainda “Tempus est iucundum” (em áudio) e “Olim latus colueram…” (Ver).
Desde 1936, as frequentes e incontáveis execuções mundo afora da vigorosa obra de Carl Orff, coreografada ou não, nos aproximam desse universo medieval marcado pela irreverência que ressuma desses versos sedutores dos goliardos, que dormiram por séculos num códice iluminado.
A importante colectânea de poesia latina medieval (e também em alemão antigo), Carmina Burana, deve a sua popularidade moderna sobretudo à obra coral-sinfónica do compositor alemão Carl Orff, de 1936, em que ele usou alguns dos poemas dela (o primeiro e o terceiro destas traduções pertencem à selecção que o músico fez) para criar uma obra brilhante, algo estilisticamente ecléctica, mas que capta e transmite maravilhosamente a graça, a ironia, a violência satírica, ou a extrema delicadeza também, da colectânea, e principalmente o quanto nela estua de vida e de amor por ela. Post blanda Veneris é uma das esplêndidas estrofes (e destacadamente célebre) de um mais longo poema do mesmo cancioneiro, Dum Diana vitrea, que, com outros poemas anónimos aí recolhidos, alguns estudiosos identificam como dos perdidos poemas de amor do grande filósofo medieval Pedro Abelardo (1079-1142), cuja paixão por Heloísa, e o subsequente crime da sua castração pela família dela, como a carta que, quando ele morreu, Pedro-o-Venerável, abade de Cluny, dirigiu a Heloísa então freira, consolando-a e garantindo-lhe a união com ele na eternidade, são fonte das lendas de união na morte e de adeus “até ao fim do mundo” (ver a este respeito o capítulo sobre Abelardo e Heloísa, no 2.° volume dos nossos Estudos de História e de Cultura, em publicação na revista Ocidente *.
Os Carmina Burana foram descobertos na biblioteca do mosteiro alemão de Benedictbeuern, nos princípios do século XIX, e primeiro publicados em 1847. São uma magnificente colectânea de poesia de amor ou de poesia satírica, ou da pura alegria de viver, em que uma linguagem de alto refinamento estético se alia à máxima desenvoltura e a um total, por vezes, desbocamento da expressão. O cancioneiro reflecte o espírito dos que teriam sido os autores de grande parte dos poemas: os clérigos vagabundos, “vragrantes”, foragidos de convento ou das escolas conventuais (quando não estudiosos ilustres) – o espírito goliardo. Tem sido discutido quais serão os limites de composição dos poemas coligidos; e a crítica erudita, hoje, inclina-se para que o manuscrito seja do século XIII e recolha poesia composta neste século e no anterior, embora não seja de excluir que alguns poemas sejam do século XI ou mais antigos. Isto significará que, se vários poemas serão contemporâneos dos que foram recolhidos nos nossos cancioneiros galaico-portugueses (Vaticana, Ajuda, Biblioteca Nacional) que recolhem poesia do século XIII e primeira metade do século XIV, muitos outros dos Carmina Burana lhes serão anteriores. Note-se, por exemplo, a identidade de estrutura entre Stetit puella e as nossas cantigas paralelísticas dos cancioneiros. Uma irreverência que excede em muito a violência por vezes grosseira das nossas cantigas de escárnio e maldizer (tão admiráveis muitas delas, mesmo com grosseria e tudo) é timbre dos Carmina Burana: por exemplo, o poema da Taberna, aqui traduzido, parodia a certa altura um hino de S. Tomás de Aquino. Por outro lado, a subtileza da sensibilidade e das imagens nada fica a dever aos mais lúcidos requintes da poesia moderna, como é o caso da estrofe atribuída a Pedro Abelardo. Ao contrário da poesia latina clássica, os poemas latinos de Carmina Burana usam a rima consoante final (que reproduzimos onde e como aparece), e que terá começado a surgir no Ocidente em hinos religiosos no século IV (de que o Stabat Mater e o Dies Irae são exemplo), e se terá propagado à poesia em língua vulgar depois, na Europa. Um dos grandes monumentos da poesia medieval, este cancioneiro desenterrado da biblioteca de um mosteiro é um extraordinário correctivo às ilusões de uma Idade Média só bárbara ou só de cavalaria romântica, que tanto ainda subsistem, pois que responde àquela com a arte superior dos seus poemas, e a esta com a desinibição completa que virilmente exibe.
* 1.º vol., Lisboa, 1967; 2.º vol. em fascículos de Ocidente.
In: Poesia e Cultura, Porto, Caixotim, 2005 p. 161-3