Na sua portentosa antologia Poesia de 26 séculos, Jorge de Sena incluiu as cinco traduções que fez dos Carmina Burana, seguidos da habitual nota esclarecedora — tudo abaixo transcrito. Esta nota pouco difere de um artigo publicado, também em 1971, num periódicos de Lisboa (Ver)
Ao leitor atento, certamente não escaparão os paralelismos e o forte tom de contestação que nos permitem aproximar as últimas estrofes de “In taberna” (em áudio) com o rimance final da novela seniana O Físico Prodigioso…
Alemanha–Latim Medieval
séc. XII e XIII
“STETIT PUELLA”
Era a senhor de vermelho.
Se se lhe tocava,
A túnica estalava.
Ai!
Era a senhor… Qual roseira
Sa face resplandecia,
Sa boca florecia.
Ai!
“TEMPUS EST IUCUNDUM”
O tempo é jocundo,
Ó virgens!
Com elas gozai,
Ó jovens!
Ó em mim floreço!
De amor virginal
Eu todo me aqueço!
Novo, novo amor
Vem, de que pereço.
Canta a filomela
Muito docemente
E no longe apela.
Dentro de mim ardo.
Ó flor das donzelas,
A quem eu desejo,
Rosa entre as mais belas,
A quem sempre vejo.
Só tu me confortas
Com tuas promessas,
Só tu me deportas
Pelo que recusas.
Quanto a ti me prende
Tua virgindade!
Como te defende
A simplicidade!
Cala, filomela,
Por um instante só.
Surge, ó cantilena,
Do meu peito em dó.
O tempo brumal
Esfria o que é vivo.
Mas seiva estival
Faz o homem lascivo.
Vem, minha donzela,
Ao gozo sem preço!
Vem, vem, minha bela,
Por quem eu pereço!
“POST BLANDA VENERIS…”
Depois do suave ardor
Do sexo,
Dos nervos se distende
O nexo.
Como que flutuando
Da treva a um mundo novo
Os olhos vêm vogando
Num remar das pálpebras!
Ah, como é doce o trânsito
Da posse ao entressonho!
Mas mais doce é o regresso
Do entressonhar à posse.
“OLIM LATUS COLUERAM…”
Outrora, em lago eu vogava,
Meu belo corpo encantava,
Era um cisne, e vivo estava.
Ai de mim, coitado,
Eis-me agora assado,
Muito bem tostado!
O espeto gira e regira,
E já um criado me mira,
Enquanto eu torro na pira!
Ai de mim, coitado,
Eis-me agora assado,
Muito bem tostado!
Quem me dera a deslisar
No frescor da água e do ar,
Sem um recheio a estourar!
Ai de mim, coitado,
Eis-me agora assado,
Muito bem tostado!
Nunca a neve mais brilhou,
Ou mais branca ave voou…
Mais negro que um corvo estou!
Ai de mim, coitado,
Eis-me agora assado,
Muito bem tostado!
Aqui vou eu na travessa.
Não posso voar… Já depressa
Dos dentes vejo a promessa.
Ai de mim, coitado,
Eis-me agora assado,
Muito bem tostado!
“IN TABERNA…”
Na taberna quando estamos,
De mais nada nós curamos,
Que do jogo que jogamos,
Mais do vinho que bebemos.
Quando juntos na taberna,
Numa confusão superna,
Que fazemos nós por lá?
Não sabeis? Pois ouvi cá.
Nós jogamos, nós bebemos,
A tudo nos atrevemos.
O que ao jogo mais se esbalda
Perde as bragas, perde a fralda,
E num saco esconde o couro,
Pois que um outro conta o ouro.
E a morte não val’ um caco
Pra quem só joga por Baco.
Nossa primeira jogada
É por quem paga a rodada.
Depois se bebe aos cativos,
E a seguir aos que estão vivos.
Quarta roda, aos cristãos juntos.
Quinta roda, aos fiéis defuntos.
Sexta, às putas nossas manas,
E sete às bruxas silvanas.
Oito, aos manos invertidos.
Nove, aos frades foragidos,
Dez, se bebe aos navegantes,
Onze, é para os litigantes,
E doze , dos suplicantes,
E treze, pelos viandantes.
Pelo Papa e pelo Rei
Bebemos então sem lei.
Bebem patroa e patrão,
Bebem padre e capitão,
Bebe o amado e bebe a amada,
Bebem criado e criada,
Bebe o quente e o piça fria,
Bebe o da noite e o do dia,
Bebe o firme, bebe o vago,
Bebe o burro e bebe o mago.
Bebe o pobre e bebe o rico,
Bebe o pico-serenico,
Bebe o infante, bebe o cão,
Bebem cónego e deão,
Bebe a freira e bebe o frade,
Bebe a besta, bebe a madre,
Bebem todos do barril,
Bebem cento, bebem mil.
Nenhuma pipa se aguenta
Com esta gente sedenta,
Quando bebe sem medida
Quem de beber faz a vida.
E quem de nós se fiou,
Sem cheta s’arrebentou.
E quem de nós prejulgava,
Se quiser, que vá à fava.
“CARMINA BURANA” – Esta importante colectânea de poesia latina medieval (e também em Alemão antigo) deve a sua popularidade moderna, sobretudo à obra coral sinfónica do compositor alemão Carl Orff, de 1936, em que alguns poemas desta colectânea são postos em música. Quatro desses poemas Stetit puella, Tempus est iocundum, Olim latus colueram, e ln taberna são aqui traduzidos integralmente (Orff não usa os textos completos do segundo e do terceiro). Post bland Veneris é uma maravilhosa estrofe de um mais longo poema do mesmo cancioneiro, Dum Diana vitrea que, com outros poemas anónimos aí recolhidos, alguns estudiosos identificam como dos perdidos poemas de amor do grande filósofo e escritor medieval Pedro Abelardo (1079-1142), cuja paixão por Heloisa, e o subsequente crime da sua castração pela família dela, como a carta que, quando ele morreu, Pedro-o-Venerável dirigiu a Heloisa então freira, consolando-a e garantindo-lhe a união com ele na eternidade, são fonte das lendas de união na morte, e de adeus “até ao fim do mundo”. O cancioneiro que ficou conhecido por Carmina Burana foi descoberto na biblioteca do mosteiro alemão de Benedictbeuern, nos princípios do século XIX, e primeiro publicado em 1847, mas só em 1930 começou a aparecer numa monumental edição crítica ainda inconclusa. É uma magnificente colectânea de poesia de amor, ou de poesia satírica, ou de pura alegria de viver livremente, em que uma muito artística e admirável linguagem se une à maior desenvoltura e ao desbocamento malicioso da expressão. Reflecte o espírito dos que teriam sido seus autores: os clérigos vagabundos, “vragrantes”, foragidos de conventos, de escolas conventuais, ou cábulas de universidade (quando não refinados estudiosos) – o espírito “goliardo”. Tem sido discutido quais os limites de composição dos poemas coligidos, e a crítica, hoje, inclina-se para que o manuscrito seja do século XIII e recolha poesia composta neste século e no anterior, embora não seja de excluir que alguns poemas sejam do século XI ou mais antigos. Uma total in’everência é timbre dos Carmina Burana – por exemplo, o da Taberna, aqui traduzido, parodia a certa altura um hino de S. Tomás de Aquino. Ao contrário da poesia latina clássica, os poemas latinos de Carmina Bumna usam a rima consoante final (que reproduzimos onde e como aparece), que começara a ser usada em hinos religiosos latinos no século IV (de que o Stabat Mater e o Dies Irae são exemplo), e se propagou depois (?) à poesia em língua vulgar na Europa.
In: Poesia de 26 séculos. 3a.ed. Porto: ASA, 2001. pp.80-84 (poemas), pp.296-7 (nota).