Na cerimônia de entrega do “Prémio Jorge de Sena–2012” a Jorge Fazenda Lourenço, Margarida Braga Neves, em nome do júri, leu algumas páginas condizentes com a ocasião. Destas, destacamos o trecho abaixo, que nos parece oportuníssimo, por trazer novamente à ribalta a premência de medidas eficazes para preservar, em Portugal, o rico acervo de Jorge de Sena.
O ACERVO DE JORGE DE SENA CONTINUA A PREOCUPAR…
Margarida Braga Neves
Para além da inesgotável arca pessoana, existe um outro grande acervo do século XX que continua em grande parte – e para preocupação nossa – a 10.000 Km de Portugal, instalado numa residência sem condições especiais de segurança nem de climatização, para mais numa zona como a cidade de Santa Bárbara que é periodicamente flagelada por fogos florestais devastadores. Claro está – e é da mais absoluta justiça referi-lo aqui – que esse espólio tem vindo a ser cuidado há longas décadas, com a maior devoção, por aquela que é a sua maior especialista – Mécia de Sena, a viúva do Poeta – que lhe tem dedicado o melhor do seu vasto saber e da sua extraordinária capacidade de trabalho. Contudo, e dada a sua avançada idade, é chegado o momento de as autoridades que tutelam a cultura em Portugal assumirem plenamente as suas responsabilidades e concluírem de uma vez a transferência já iniciada e entretanto suspensa de tão importante acervo para a Biblioteca Nacional de Portugal, que é o lugar mais adequado à sua preservação, estudo e divulgação.
Se após trinta anos em solo estrangeiro os restos mortais de Jorge de Sena repousam finalmente em solo pátrio, como sempre foi seu desejo, é tempo de, pela mesma ordem de razões, o imenso espólio que nos legou ser acolhido e instalado na instituição mais vocacionada para tal efeito, disponibilizando aos investigadores da sua obra, nas condições mais adequadas, os materiais que, com inexcedível generosidade e o maior espírito de colaboração, Mécia de Sena sempre disponibilizou a todos aqueles que, ao longo dos anos, a procuraram na sua residência em Santa Bárbara.
Por ocasião da entrega deste prémio, num dia que se reveste do simbolismo [4 de Junho de 2013 assinala o 35 º aniversário da morte de Jorge de Sena, em Santa Bárbara, na Califórnia, em 1978] cabe talvez recordar que Jorge de Sena apenas recebeu um prémio em Portugal, o Prémio António Ramos de Almeida – 1976, atribuído a uma colectânea de ensaios, Maquiavel e Outros Estudos (1974), por ocasião da Feira do Livro do Porto. A sua obra poética ou ficcional nunca foi premida.
Em contrapartida a Itália foi incomparavelmente mais generosa, tendo-lhe atribuído o 15º Prémio Etna-Taormina, que anteriormente apenas galardoara um autor de língua portuguesa, o poeta brasileiro Murilo Mendes. O prémio foi entregue a Jorge de Sena em Catânia, na Sicília, em 1977. No discurso de agradecimento, o poeta teve palavras duras para aqueles que, no seu país de origem, lhe negaram ou roubaram as honras à última hora, acentuando que “Pela primeira vez na vida, por estranho que pareça recebo um prémio de poesia” (p.203). E prosseguiu a sua intervenção proferindo palavras, que continuam e continuarão a ecoar, tanto pela justeza da dimensão ética que é a sua, como pela peculiar definição de poesia enquanto testemunho que nelas (se) formula:
“ [Esta] é (…) a poesia de um homem que viveu muito, sofreu muito, partilhou a vida pelo mundo adiante, sempre exilado e sempre presente com uma vontade de ferro. Mas é uma poesia que sempre que se forma, não sabe nada, porque é precisamente a busca ansiosa e desesperada de um sentido que não há, se não formos nós a criá-lo e a fazê-lo. Quis sempre que essa poesia fosse o testemunho fiel de mim mesmo neste mundo, e do mundo que me deram para viver. Mas uma testemunha que cria no mundo aquele sentido que eu disse, e, ao mesmo tempo, deseja lembrar aos outros que há uns valores essenciais muito simples: honra, amor, camaradagem, lealdade, honestidade, sem os quais a vida não é possível, e toda a poesia, por mais sábia que seja, é falsa. Uma testemunha de que, sem justiça e sem liberdade, as sociedades humanas não dão ao homem a dignidade que é a sua, e que ao poeta cumpre afirmar. Não uma testemunha passiva mas activa. Porque é esse o papel da poesia. Pode ela ser panfleto, ou ser visão mística, ou ser sátira, porque ela pode ser tudo. Mas tem de ser activa, não só no sentido meramente panfletário, mas no de, herdando tudo o que a Antiguidade e o passado nos legaram, criarmos a língua do presente e a língua do futuro.” (Poesia e Cultura: 205-206)
Essa língua do nosso tempo e dos tempos por vir que os grandes poetas criam e de que nós, seus estudiosos, temos o privilégio de ser os arautos.