Mencionado por José Augusto Cardoso Bernardes no testemunho que nos concedeu, desentranhamos de arquivos mortos este breve artigo que assinou n’O Figueirense, há mais de 20 anos, a propósito do romance de Jorge de Sena.
“SINAIS DE FOGO” NA FIGUEIRA
José Augusto Cardoso Bernardes
“Para aquele lado, a praia estava quase deserta; e o areal encurvava-se até ao Cabo Mondego, com os barcos varados, e um ou outro vulto perdido na areia. Entre os barcos, e também sentados na borda das muralhas, havia pescadores cosendo redes…” p. 109.
Muitas descrições como esta referentes a espaços da Figueira podem ser encontrados em “Sinais de Fogo”, um romance de Jorge de Sena publicado postumamente, em 1979. As situações aí descritas têm, sobretudo, a ver com a animação estival na década de 30 e vão desde o bulício da zona da praia e do Bairro Novo, até às cercanias de Buarcos (onde, por vezes, se alugavam quartos à hora para amores furtivos) e de Tavarede por onde jovens verancantes, apaziguadas as ardências do meio-dia, estendiam os seus passeios de lazer e de namoro.
Mesmo para quem não tenha conhecido a Figueira daquele tempo (o romance ocupa-se de apenas de alguns meses do ano de 1936) não é difícil, ainda hoje, reconhecer os locais descritos no livro. Os cafés e as pensões do Bairro Novo, por exemplo, não deveriam ser muito diferentes. Naquela altura fervilhavam de espanhóis: turistas na sua maioria, mas também alguns refugiados da guerra civil que entretanto eclodira no país vizinho.
O romance tem um nítido suporte autobiográfico: o narrador e personagem principal chama-se mesmo “Jorge” e o “Tio Justino”, professor de um colégio local, frequentador incontido do jogo do Casino e inveterado mulherengo, inspirou-se numa figura real que muita gente ainda lembra. A sua quinta dava para a estrada de Tavarede e nela se refugiaram, realmente, muitos perseguidos políticos e estrangeiros.
A intriga que atravessa o romance é, também, se não real, bem verosímil pelo menos. As personagens principais são jovens em férias na Figueira a quem a vida social e recreativa da cidade proporcionava, naturalmente, borgas e “rapaziadas”, convívios chiques de chá ou de praia, encontros e desencontros mais ou menos duradouros. O pano de fundo de toda a acção é porém, a Guerra Civil de Espanha e os ecos que ela ia tendo no nosso país nesse Verão que de 36. Esse acontecimento constitui de resto, a base do encontro dos jovens com os problemas políticos e sociais do seu tempo.
Apesar disso, “Sinais de Fogo” não se confina aos limites de um romance de espaço social. A categoria romanesca que mais avulta, em termos de história e de discurso, é a final a personagem e o seu processo de maturação. Uma maturação que se desdobra em vários planos com destaque para o plano cívico (em que sobressai a figura tutelar do “Tio Justino”) e para o plano existencial, que implica a descoberta da vida e o confronto com as grandes questões que ela coloca ao jovem e ao adolescente de ontem e de hoje.
O livro de Jorge de Sena é, assim, um livro de circunstâncias pessoais e políticas. Mas é muito mais do que isso: é também, sob o ponto de vista literário um dos mais importantes romances portugueses deste século.
E não é só pelo facto de se relacionar com Figueira que merece ser lido.
In: O Figueirense, Figueira da Foz, 7 set, 1990, p.8