Assinalando o 39º aniversário da “Revolução dos Cravos”, aqui trazemos o depoimento de Mécia de Sena sobre as reações de seu marido face ao acontecimento histórico e ainda uma carta-testemunho assinada por Jorge de Sena, datada de menos de dois meses antes de seu falecimento.
Nova Iorque, 20 mar (Lusa) – O 25 de abril entusiasmou o escritor Jorge de Sena tão rapidamente quanto o desiludiu. “A revolução acabou, naquele país só há ódio”, disse à mulher assim que regressou aos Estados Unidos de viagem a Portugal em 1974.
“Foi essa a frase que ele me disse na entrada da porta quando chegou. Ficou doente, emocionalmente doente – teve que ir ao médico e tudo – com o ambiente que no espaço de dois meses tinha encontrado em Portugal”, disse à Lusa Mécia de Sena, viúva do escritor, residente na Califórnia, Estados Unidos.
“A euforia que tinha encontrado ao chegar e a total desordem e briga no regresso. Nesse espaço de dois meses caiu das nuvens e ficou doente”.
A primeira reação após a notícia da revolução, recebida já na Califórnia, foi de euforia pela possibilidade de um regresso definitivo à terra natal.
“Se fosse possível economicamente e profissionalmente embarcar no dia seguinte ele teria ido. Disse-me que íamos no dia seguinte. Eu é que pus água na fervura, disse `Jorge, por favor, pensa duas vezes, não podes abandonar a universidade de hoje para amanhã, há que pensar o futuro com calma´. Se não ele teria ido a correr”, recorda.
Depois do regresso, de ver que os ideais tinham “dado lugar a uma luta medonha entre toda a gente, suicida”, Jorge de Sena entrou numa fase de prostração.
“Dormia, dormia, dormia… horas e horas… ele que era uma pessoa que normalmente dormia seis horas e se levantava sozinho durante a noite, acordava muitas vezes… começou a passar a vida a dormir, e era uma maneira de não pensar nisso”, afirma a viúva, hoje com 90 anos de idade, completados na semana passada.
Essa fase só foi ultrapassada com o regresso das aulas e uma nova oportunidade de trabalho na Universidade da Califórnia.
“Depois deixou de ter tempo de pensar nisso (…) passou a estar em duas universidades ao mesmo tempo, a tempo inteiro. Foi uma brutalidade, mas foi necessária, foi isso que o acordou, que o tirou da letargia desconsolada em que ele tinha caído”.
Jorge de Sena continuou a acompanhar à distância os acontecimentos em Portugal, com algum “desgosto”, e foi Ramalho Eanes quem lhe devolveu a confiança.
“O Ramalho Eanes deu-lhe uma certa esperança. Ele gostou muito de falar com ele, achou que ele tinha a calma suficiente e não iria fazer tolices (…), que era uma pessoa que poderia conseguir o equilíbrio de que o país precisava, isso tinha-o animado muito, mas infelizmente já pouco viu”.
“Se ele tem vivido um pouco mais, tenho quase a certeza que tinha ido naquele ano para Portugal para trabalhar de mãos dadas com o general Eanes, neste sentido de fazer justiça, não num caminho político mas social”, afirma Mécia de Sena.
Referência:
“A revolução acabou, naquele país só há ódio”, disse Jorge de Sena depois do 25 de abril. MSN Notícias, 20 Março 2013. Disponível em: <http://noticias.pt.msn.com/cultura/article.aspx?cp-documentid=152669312>. Acesso em: 24 Abril 2013.
DEPOIMENTO SOBRE O 25 DE ABRIL, EM FORMA DE BREVE CARTA A ARTUR PORTELA FILHO*
Santa Barbara, Califórnia, 12 de Abril de 1978
Meu caro Amigo e Camarada
A sua carta de 5 do corrente, com a tão amável solicitação do depoimento em epígrafe acaba de chegar-me (e até que não foi muito, nestes estranhos tempos em que a liberdade democrática faz que o correio leve umas duas semanas a chegar daqui aí e vice-versa). É uma honra e uma distinção a pergunta, a que não quero deixar de corresponder. E não só por isso. O caso é que, há umas duas semanas, remeti para um jornal de Lisboa uma Carta Aberta a um membro do Governo, que creio ser das coisas mais duras que já vi escrevi. É possível que, entretanto, tenha saído. De qualquer modo, o pedido seu, vindo após que aliviei a acumulada náusea, cai como sopa no mel, para colocar em serena perspectiva, e sem desânimos que sinto alastrarem por esse país adiante, o 25 de Abril. Mas sucede que, de repente, na minha vida a ocasião é má, e buscarei limitar-me o mais que puder a verborreia notoriamente sábia, e sem dúvida independente. Porque me encontro a braços com uma luta terrível contra uma doença das que não perdoam, se a gente se descuida, e submetido a intensivos tratamentos. Não deixar de ser irónico que isto suceda a quem há dois anos resistiu a monumental ataque de coração que, segundo todas as regras e leis, o deveria ter reduzido a cisco. Mas, meu caro Amigo, ainda que eu seja duro de roer, é algo difícil a gente resistir a tanto mau olhado conjugado de uns três continentes. As minhas aventuras clínicas – que espero muito brevemente transformar em precioso conto de puro humor negro – não são para aqui. Mas, antes de entrarmos em comento do 25 de Abril, que este lugar sirva para um gesto de refinado mau gosto, daqueles com que me agrada beliscar os delicados. E é anunciar, para tristeza dos meus autênticos amigos e de quantos me têm ajudado a levar a cruz de ser português (ainda que com um passaporte brasileiro que incomoda e, ao mesmo tempo, tem sido útil a tanta gente, e ainda que emigrante que não é daqueles que pede pé de meia para o único patriotismo que a essa classe se solicita, o bago mandado para a santa terrinha), que agora é altamente incerto quanto eu dure. Notícia que, por outro lado, trará delíquios de ansiedade em expectativa de notícias a quanto canalha e hipócrita em sucessivas gerações me faz a vida negra há quarenta anos de literatura que se cumprem exatamente este ano. No entanto, será bom que essa gente se lembre de que eu posso bem vir a ser como aquele cadáver de uma bastante mpa peça do Ionesco que nunca admirei muito, o qual não fazia senão tornar-se maior e mais inamovível. Longe de mim a ideia de isto significar vaidade póstuma, mas é o que às vezes sucede que os defuntos fazem aos vivos mais defuntos que eles. Em todo o caso, juro não ter a mínima intenção de competir com outro cadáver, cuja realização ocupa afanosamente tantos patriotas, e que, segundo a geografia, tem cerca de 90 000 quilómetros quadrados, e ainda dá pelo nome de Portugal (a não ser que, como sucedeu a Lourenço Marques, e para melhor se apagar um passado a todos os títulos vergonhoso, como o de todos os povos antigos e modernos, decidam mudar-lhe o nome que eu adequadamente, e para fazer pendant com o Maputo das Áfricas, propriamente que, só familiarmente, passasse a ser, Bonaputa, em homenagem a tantos dos seus mais vorazes filhos).
Posto isto, não é segredo para ninguém que o 25 de Abril não foi de facto uma revolução, mas uma ampla mistura de muitas, na maior parte todas escondidas uma das outras, tal como claramente se tem verificado na contradança de sucessivos golpes e contra-golpes, nunca inteiramente bem sucedidos, nem inteiramente mal sucedidos, em que, desde então, os inquéritos nunca se concluem, as amnistias de toda a espécie alternam com as demissões, etc., etc., tudo se passando, segundo a melhor tradição salazarista de que todos, por mais que não queiram, são filhos, nas câmaras e antecâmaras civis e militares, nunca chegando o povo a saber o que é que realmente se passou ou não passou, já que até parece que, nos ataques mútuos, todos se combinam para deixar na sombra os rabos-de-palha, que todos sabem que os outros têm, quando não são os outros que seguram pela sua ponta o dito rabo (de palha). Não há como o poder ou a ebriedade do poder para revelar, quando longa experiência de liberdade é ainda breve e inquieta, a que ponto os políticos de farda ou à paisana, mesmo nas melhores das intenções, usam continuamente dos métodos autoritários ou de combine secreta da tradição fascista, no mais absoluto desrespeito pelo povo que tem o direito de saber, mais do que ninguém. Porque os políticos ou quem se julgue tal não são o povo, a menos que o representem; e , nesse caso, o dever deles não é pregar a cartilha mal lida e digerida, mas auscultar o povo, e distinguir as realidades da prosa de que encheram as cabeças, nos anos da resistência em que toda a gente estava fora da realidade que só Salazar controlava e conhecia, e até os ministros dele, como mais de uma vez tive oportunidade de verificar, nos meus avatares de funcionário público. Tem sido dito que a política é a ciência do possível – e isto aplica-se igualmente ao funcionamento normal das instituições, como aos planos de golpes e revoluções redentoras que todas, como é sabido, até as traições começarem, são.
O facto essencial, porém, e tanto faz que as pessoas tenham sensibilidades – como agora se diz – «pluralistas» ou «monolíticas» (recusando-me eu a mencionar uma espécie de gente, incertamente humana, que se diz, quer ou sonha fascista, a qual, por sua vez, nas paixões boçalmente partidárias de muita esquerda que não devia ser boçal, já que «esquerda» é por necessidade uma forma superior de inteligência, é constantemente confundida com «direitas» ou com gente conservadora que não será obrigatoriamente reacionária e que, gostemos ou não, tem o seu lugar e o seu papel, no leque político «pluralista», tal como, ainda que não seja bonito dizer-se, o desempenham adentro dos sistemas unitários dos Estados ditos socialistas), o facto, repito, é que a Revolução plural DE Abril de 1974 trouxe o que não havia há décadas: a liberdade, e uma liberdade como pode dizer-se que hoje não existe tanta (e também com tão desvergonhada e irresponsável licença a que os governos, para sacanearem o partido do lado ou passarem a mão pelo pêlo do partido do outro lado, nada fazem para controlar naquela naquele mínimo necessário a que um país saia do atoleiro e sobreviva), em nenhuma parte do mundo. Todos sabemos que, em várias ocasiões, nestes agitados anos, os atropelados aos direitos civis e às liberdades de numerosos cidadãos foram muito grandes, envolveram desvergonhas que não estão corrigidas e nada têm que ver com a justiça social, etc., etc. – e é triste que essas coisas sejam ditas em jornais e periódicos menos afectos à democracia ou à situação vigente, que as não denunciam (excepto em honrosos casos de criaturas que, nas hora de ser incerto se alguns sujeitos tidos por homens os tinham no sítio, mostraram que as mulheres os podem ter, e potentes, em forma de metáfora e de voragem) para que se corrijam os males, mas como parte de orquestrada companha de sinistras direitas para desacreditar na opinião pública um regime que tem problemas de sobra que o desacreditem ante um povo e que nunca disseram que a liberdade é cara, e o socialismo ainda mais, E, se não é orquestrada (porque a gente deve evitar propagar tais paranoias de que os fascistóides se sustentam), é como se o fosse. O mal está em que, as chamadas «esquerdas» desde sempre não têm feito por falar a verdade, que mais que ninguém lhes competia dizer e denunciar, mas, ao contrário, «por vender o seu peixe», sem escrúpulos e sem rebuço. E a falta de escrúpulos nada tem que ver com as pessoas respeitarem ou não a chamada moral burguesa (quando tão fervorosamente a respeitam em tudo o que diga respeito à moralidade burguesíssima), mais sim com não terem nem categoria, nem direção responsável e inteligente, para lá do fanatismo que faz as vezes das frustações que essas pessoas a si mesmas se criaram, ou por serem realistas por demais, ou por de menos, cujo resultado final é a mesma lástima. Choram todos pela Revolução que não fizeram ou, às últimas horas, se sabe muito bem que recuaram de fazer: e passam a vida a acusar o vizinho, em vez de fazerem aquela auto-análise (a sério, e não meramente ritual, como o bater no peito das avozinhas deles quando iam à confessa), sem a qual as posições políticas se não adequam às realidades. A insistência na agitação pela agitação, sempre, nestes casos, menos defende o ganho e o perdido, do que faz o jogo das direitas. E faz sobretudo o jogo de uma coisa infinitamente mais trágica, e que é a irresistível atracção de certo tipo de comunistas pelo catastrofismo (positivo, se é a revolução deles o que triunfa, e negativo, se não é), em que se incluem o fascínio porquanto seja as Diretas que sonham de os esmagar e pôr fora da lei, e a consequente atracção fundamente freudiana por regressarem ao líquido fetal da barriga da mãe, ou seja a clandestinidade em que tudo se manobra e nada se sabe ao certo, sobretudo a quem cabe a responsabilidade de seja o que for. Não podem eles acusar-me de antipatia que não tive nunca: e ninguém melhor do que os menos decentes deles sabe como, apesar de décadas de pertinazes esforços, nunca conseguiram fazer de mim, por mais que me esfaqueassem de golpes baixos e falsos, o anti que não sou e nunca serei, por várias razões: a minha crença e filosofia marxistas sem pitada de socialismo de ida e volta, e a minha inabalável consciência democrática em que todos têm um decisivo papel a desempenhar, o qual em nada, nada, trai ou é «revisionismo» (porque pode ao menos ser aquele maquiavelismo realista que é timbre, ou deveria sê-lo, de todo o partido revolucionário, não no sentido das manobras de pura manipulação, mas no sentido de adaptar à realidade uma política que não tem de ser alterada para integrar-se naquela). A clandestinidade é ima tentação terrível que não dever ser cortejada, sobretudo por aqueles que tão longamente se habituarem a subsistir na autocracia dela.
O país atravessa horas difíceis, medonhamente difíceis, em que parece que os partidos desesperadamente apenas desejam sobreviver-se uns aos outros, à custa uns dos outros, e necessariamente, ainda que o não diga nem confessem, à custa do povo português, cujos anseios tosos proclamam representar. Por certo que presentarão, mas não dessa entidade algo abstracta e vaga em boca de políticos em situação semelhante, mas apenas, cada qual, daquele sector da população, que é partidário, ou simpatizante (ou como se tornou instituição nacional da eterna esperteza saloia em Santa Comba, «submarino»). O povo descrê – p que é uma tragédia que esperamos ainda reparável, com energia, coragem, e decência – daquele triunfal e magnificente liberdade que recebeu e goza há quatro anos. Tem numerosas razões para tanto, na complexa e contraditória situação económica-política – em que uns se fazer paladinos de uma revolução que houve em certos sectores (com muita desordem e pouca-vergonha em outros), enquanto outros anseiam pelo regresso aos bons tempos da Ordem, que tudo reponha como dantes com a palha em Abrantes. E isto porque ninguém insiste em esclarecer o povo, efectivamente, acerca do que a democracia seja. Todos o que no fundo querem é desacreditar o vizinho, mesmo que isso seja feito à custa da ignorância de um povo inteiro, ou grande parte dele, se em que o povo português tenha, parece-me. Aprendido muito mais que os seus rotantes português. Nestes quatro anos. Mas é um aprender desaprendido, aberto a não se perceber que querelas partidárias, coligações estranhas, compromissos insólitos, etc., não são de modo algum um escândalo público (parecem-no, por haver liberdade de informação, que não deve ser dominada por governo algum em seu proveito, sob pena de desacreditar-se irremediavelmente), mas o inevitável funcionamento da democracia mesma em toda a patê com os seus defeitos e limitações, preferíveis a qualquer ditatura em que sabemos muito bem que as mesmas combines, as mesmas querelas, etc., etc., se passam, apenas na sombra daqueles encontros a que os actuais políticos são excessivamente dados. Escândalo público é o erro que se não critica, o desmando que se não liquida, a tripa-forra que faz a gente pensar que a maior parte de algumas pessoas o que queriam era almoçar e jantar no Grémio Literário e nos restaurantes do faduncho de luxo, e dormir – perdão da palavras – com as putas do Estado Novo. Isso sim, que é escândalo e desvergonha públicas, e é o que o povo mais claramente vê, na hora em que lhe pedem que aperte o patrioticamente o cinto.
Pois ponham-se todos a dieta, como manda a igualdade democrática! E escândalo maior, inadmissível, inaceitável, quase se diria revelando nem escreverei de quê, por puro horror, serão ataques ao Presidente da República, símbolo vivo da democracia e das instituições, por precárias e defeituosas que sejam. Ainda que se possa crer que haja razões para atacar alguém que puseram a defender uma constituição que não lhe dá poder quase nenhum, há algo que sagradamente é intocável: a dignidade da função mesma. Foi com estas e com outras que a Primeira República cavou a sua sepultura. Não é o que sonhámos por décadas, aqueles que sonharam e lutaram. Não é sequer o que convém a quantos oportunistas descobriram que, por enquanto, a democracia lhes redia que era um gosto. Nem se quer é também o que no fundo interessa e importa à extrema-esquerda que sabe muito bem o amor que certo Ocidente lhe tem, sem que seja certo que o Oriente acorra. No fim das contas, queiram ou não, e com o devido respeito por um continente magnífico, nós não somos África (ainda que uma certa cegueira masoquista às vezes faça as pessoas duvidar se muita gene em Portugal é na verdade cidadã do país, ou de algum dos novos países, mas que não necessitam, por uma questão de estômago que possuem, de tão rebaixada devoção, como se se tivessem tornado em substituto da Nossa Senhora de Fátima). E, a propósito do final do parêntese, creio oportuno – ou talvez tremendamente inoportuno e por isso mesmo conveniente – lembrar aos devotos mais devotamente saudosos dos bons tempos daqueles bispos que abençoavam o Salazar & C.ª com muita água benta, que jamais, em parte alguma, a Igreja deve imiscuir-se em política enquanto tal, e muito menos jogar na carta suja de misturar a «desordem democrática» com os perigos que as devoções podem ocorrer, mais, é claro, a permanência da cristandade. Eu tenho maior respeito pelo catolicismo. Mas posso resumir politicamente o resto do meu respeito, numa proposta que não é a primeira vez que apresento. Toda a gente sabe que, por século, a presença do papa na Cidade Eterna tem sido um bico-de-obra para a Itália: E toda a gente sabe que as Nações Unidas em Nova York são um bico-de-obra para as ditas cujas bastante desunidas mas é o melhor que se pode arranjar. Ora o Vaticano é um colossal repositório de tesouros pertencentes ao património da humanidade. Enquanto grande parte dos investimentos da Igreja estão nos Estados Unidos, aonde está também uma das maiorias concentrações de católicos do mundo. Pois o que se deveria fazer para boa harmonia, e maior esclarecimento de toda a gente, é bem simples: instalar o Vaticano nas Nações Unidas, em Nova York, com o papa, os cardeais assistentes, os bispos sub-assistentes, os cónegos auxiliares dessa gente toda, e mesmo as condessas e baronezas romanas que, há séculos, têm papel preponderante em todas as questões, desde anular-se um casamento a fazer-se um novo santo. E pôr as Nações Unidas em Roma, guardando «unescamente» aquele palácio imenso e aqueles tesouros esplêndidos (menos, é claro, aquelas catedrais feitas de caixas de fósforos que a gente é obrigado a admirar a caminho da Capela Sistina e dos biquínis que continuam a cobrir a nobreza criadora de Miguel Ângelo). Posto isto, retome Portugal o fio da sua História, de que não tem que envergonhar-se: esse sentimento de vergonha foi sempre uma das manobras dos imperialismos que desejam desarmar o espírito de um povo. Reze, se quer, pragueje, se lhe apetece, politicalhe o que necessite. Mas tendo sempre presente que há uma democracia a defender de tudo e todos, um povo que mobilizar para a tarefa de reconstruir uma pátria mesmo que seja a ranger os dentes de raiva por não ter tido as revoluções que queria, e um país em que acreditar e fazer acreditar, para lá de tudo o que possa assacarse a qualquer governo. Tudo o que não seja isto, só tem um nome que, noutro contexto mais acima, eu não quis escrever: traição. Depois, o futuro dirá, porque o mundo dá muita volta. Estes quatro anos foram um acervo de contradições, de sonhos, de delírios, de absurdidades, de realização, etc. Que queriam que eles fossem, no jogo de forças que divide o mundo e comanda tudo em toda parte? Pois cocem-se consolados, que ainda estão com muita sorte que cumpre a todo o custo não perder. E viva a República!
Grato pela oportunidade, subscreve-se o
Jorge de Sena
[*] Publicado com o título de “Longa experiência de liberdade que é ainda breve e inquieta. Depoimento de Jorge de Sena em forma de carta a Artur Portela” no dossier “25 de Abril” da revista Opção, Lisboa, 27 de abril de 1978.