De José Saramago

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Profundamente emocionado morte Jorge partilho sofrimento família e tristeza do país inteiro” — eis as palavras do telegrama que Eduardo Lourenço enviou de Vence a Mécia ao saber do falecimento do amigo Jorge de Sena, aos 59 anos de idade, na Califórnia. O passamento ocupou o noticiário dos periódicos e várias crônicas-necrológios foram assinadas por significativos nomes da cultura em língua portuguesa, dentre os quais Carlos Drummond de Andrade, Vergílio Ferreira, José-Augusto França. Também José Saramago se deteve nessa morte, mas em texto que nega ser um necrológio, publicado no Diário de Lisboa, a 12 de junho de 1978, a seguir transcrito. Nele, evoca principalmente o Sena epistológrafo, o “possesso” no “Discurso da Guarda” e, acima de tudo, o “Português e desprezado”.

 

José Saramago

 

Como se sabe, José Saramago, pela Fundação que leva seu nome, promoveu a 10 de julho de 2008, uma concorrida sessão de homenagem a Jorge de Sena no Teatro Nacional de São Carlos, com o título de “Um regresso”. Dela, participaram como oradores, dentre outros, Eduardo Lourenço, Vítor Aguiar e Silva e o então ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, além do próprio Saramago. Este frisou: “Ele amava com desespero a sua pátria. Sentia como poucos o significado do desencontro entre um cidadão e a sua pátria“. Sem dúvida, a homenagem serviu de forte estímulo à trasladação dos restos mortais do escritor para Portugal, consumada no ano seguinte (ver http://fundjosesaramago.blogspot.com.br/2008/07/o-reencontro-de-jos-saramago-com-jorge.html).

 
Também conheci Jorge de Sena. Não muito bem (se alguém se pode gabar de tal), mas por aquela via que talvez dê para conhecer melhor: as cartas. Contadas, foram pouquíssimas as falas que trocámos. Escritas, são larguíssimas dezenas (ou centenas?) as páginas que de um lado e do outro se escreveram. Eram elas de razão editorial, mas quem alguma vez recebeu carta de Jorge de Sena, sabe que nela sempre esteve, além do motivo imediato que a justificasse, um outro motivo que em todas obsessivamente se exprimia: o autor delas. Diz-se que Jorge de Sena era vaidoso, egocêntrico, parece mesmo que megalómano. Talvez fosse tudo isso e muito mais, talvez concentrasse em si quanto de defeitos a espécie humana tem vindo a coleccionar: seria uma outra singular forma de grandeza. Mas Jorge de Sena usava o admirável impudor de não poupar precisamente as palavras que mais riscos comportassem. E, pelo que julgo saber, nunca Jorge de Sena terá sido tão franco, tão brutalmente afrontador, como nas cartas que escreveu. Se algum dia se publicar a correspondência de Sena, receio bem que metade da catedral literária portuguesa vá pelos ares. E se é de revulsivos desses que estamos a precisar, temos a medicina à mão.

Este artigo não é um necrológio, muito menos um elogio fúnebre. Há evidente indecência no habitual derramar de louvores e lamúrias quando morre alguém que justamente foi para o outro mundo com a boca amarga de repugnância por incensadores póstumos e carpideiras. A morte de Jorge de Sena é uma vergonha para Portugal. Não foi português o cancro que o matou, mas é portuguesa a indiferença que torna as mortes mais dolorosas. Não sei que últimas palavras foram as de Jorge de Sena, se teve tempo e paciência de as ditar para a história, se não preferiu o desprezo do silêncio precisamente para calar palavras de desprezo. Se uma carta pudesse ter escrito, estou que não seria uma carta, mas um rugido. Mas Portugal é um país de surdos, depois de ter sido um país de mudos.

Revejo Jorge de Sena, exactamente há um ano, acompanho na televisão o seu gesto de provocação desesperada, a imprecação lançada contra os ouvidos rolhados dos espectadores de perto e de longe, e pergunto a mim mesmo quantos Jorges de Sena precisarão ainda de morrer para que enfim esta terra comece a valer pelo que saiba e cultive, e não pelo que de si mesmos cuidam os atletas da mediocridade nacional que foram e desgraçadamente continuam a ser os que em nosso nome falam. Na Guarda, Jorge de Sena tocava a rebate, possesso, quase patético, algumas vezes (que importância tem isso?) roçando o ridículo para melhor insultar o corte que o ouvia. E, feito o seu número, tendo dito muito mais do que se lhe pedira, tendo posto diante de um País inteiro a sua profunda ferida (sua, de ambos), foi-se ao que lhe restava de vida, um brevíssimo ano, para continuar o que sempre fizera: escrever. Se algum dos portugueses de agora encarnou dramaticamento a dignidade de ser escritor, esse foi Jorge de Sena. lsso que Jorge de Sena soube ser melhor do que ninguém, e não falando agora no que a sua obra representa, é provavelmente a grande lição quo aos escritores portugueses conviria aprender. Ou não mereceremos sequer o pão que comemos.

Em geral, quando morre um escritor, um artista, a benevolência colectiva acode a pedir que se esqueça o homem e se fale da obra, vem isso da velha impregnação cristã do perdão dos pecados, e do pequenino orgulho de nos julgarmos cada um de nós senhores desse perdão, só porque continuamos vivos. No caso de Jorge de Sena, prefiro não esquecer o homem que mal conheci. Prefiro reflectir sobre os seus defeitos de carácter, apurar razões que não se dêem por satisfeitas com as banais (mesmo que rigorosas) explicações que a psicanálise dá. E ver se são defeitos. Ver se não se trataria antes de uma hipertrofiada consciência do valor do homem, da inteligência do homem, da acção transformadora do homem. E concluir, enfim, se este patriarcal país, se esta pastosa e desvertebrada classe intelectual (em sentido lato) que do país melhor ou pior se vai servindo, não estará antes precisando de adquirir urgentemente alguns dos defeitos de Jorge de Sena. Se não formos capazes de lhe continuar a obra, ao menos prolonguemos o homem.

Têm agora a palavra os críticos, os historiadores, os que decompõem e recompõem. Por mim, que não chego a tanto, tirarei da obra de Jorge de Sena o que for capaz de receber e manterei os ouvidos bem abertos à sua furiosa voz, à sua cáustica insolência, ao seu infinito gemido de ser Português e desprezado.

(in Diário de Lisboa, Lisboa, 12 de Junho de 1978.)